'Desenvolvimento é conciliável com os direitos dos povos indígenas', diz presidenta da Funai

Joênia Wapichana é a primeira indígena a presidir a Fundação Nacional do Índio em 55 anos de história da entidade

Daleth Oliveira
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Em 55 anos de história, esta é a primeira vez que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) tem na presidência uma representante legítima dos povos indígenas: a advogada indígena de Roraima, Joênia Wapichana (49). Em entrevista exclusiva ao Grupo Liberal, ela falou sobre os desafios que deve enfrentar à frente da entidade nos próximos quatro anos, prometeu retomar a demarcação de terras, defendeu o desenvolvimento da Amazônia com consulta às comunidades tradicionais afetadas por grandes projetos, e afirmou que deve dar atenção especial aos povos da região amazônica mesmo com recursos escassos. Wapichana afirmou que será necessário solicitar apoio aos outros ministérios do Governo Federal, a fim de cumprir as obrigações institucionais da Funai, ligado ao Ministério dos Povos Indígenas.

Esta é a primeira vez que a Funai é presidida por uma indígena. Também é a primeira vez que o Governo Federal tem um Ministério dos Povos Indígenas, igualmente chefiado por uma mulher indígena. Com esse protagonismo feminino, qual deve ser o rumo da pauta indígena do Brasil nos próximos quatro anos? O que as mulheres indígenas podem esperar do Governo?

As mulheres indígenas podem esperar a visão de uma mulher indígena que é da solidariedade, responsabilidade, do diálogo que as mulheres sempre têm com as pessoas, mas a partir dessa cosmovisão indígena que tem um olhar holístico para a necessidade de proteger a terra, os recursos naturais e ter um desenvolvimento sustentável que condiz com a realidade dos povos indígenas e valorizar as boas práticas indígenas. As mulheres são responsáveis, muita das vezes, pela educação das próprias lideranças indígenas, e trazem isso como forma de trabalho. Então nossa pauta terá esses princípios.

Portanto, podemos esperar diálogo, respeito, cumprimento de obrigações institucionais que traz a missão tanto do Ministério dos Povos Indígenas, quanto da Funai, que é um órgão responsável por cuidar de 14% do território nacional, a partir da demarcação de terras indígenas; e também retomar o cumprimento dessa regularização que ficou parada por muitos anos, como a demarcação, fiscalização de terras indígenas, desenvolvimento sustentável, a política pública voltada para a cidadania indígena e a recuperação de tudo que ficou negligenciado. Temos muito a recuperar na luta pelos direitos dos povos indígenas, agora com mulheres à frente deste trabalho.

Sobre essa participação indígena no alto escalão do Governo Lula, o que a senhora acha que mudará em relação às demandas do órgão a outras instâncias do Governo Federal com uma presidente indígena?

Principalmente a participação dos povos indígenas nas suas formas de se organizarem, trazendo de volta o direito à consulta que é garantida pela Convenção 169 da OIT. Essa visão específica dos povos indígenas relacionada ao exercício das principais políticas públicas, dos direitos sociais na sua plenitude. Vamos buscar as garantias constitucionais que há muito tempo não ocorre. Isso que se espera de diferente, o protagonismo indígena, buscando oportunidades além do que já existe. Eu sei que vamos ter muitos desafios pela frente, mas não vamos ficar parados, mas vamos buscar alternativas, para fazer com que esse vazio dos recursos públicos não limite a atuação nesse cumprimento institucional. 

Falando em desafio, qual o maior desafio que a senhora, enquanto presidenta da Funai, vai enfrentar nesses quatro anos?

Dar andamento a regularização fundiária dos povos indígenas com recursos escassos, porque esse é o grande gargalo. Retornar o papel da Funai na demarcação, proteção, fiscalização e inclusão com recursos que hoje são insuficientes, temos que buscar alternativas em outros ministérios. Então esse é o desafio: cumprir a missão institucional da Funai com poucos recursos.Eu sei que o Brasil se encontra numa crise, mas os povos indígenas se encontram em situação de vulnerabilidade muito grande, então nós temos que dar conta disso, inovar e buscar alternativas.

Em agosto do ano passado, a Justiça Federal determinou que os responsáveis pela proposta de construção da ferrovia Ferrogrão, entre os municípios Sinop (MT) e Itaituba (PA), realizem consultas públicas seguindo os protocolos editados pelas comunidades indígenas afetadas pelo projeto, em especial as da etnia Munduruku do alto, médio e baixo Tapajós. Entre os réus do processo, está a Funai, que na antiga gestão, deu aval à proposta. Qual sua opinião em relação ao Ferrogrão? E como será o posicionamento da Funai em relação ao projeto?

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Ainda não assumi efetivamente como presidente da Funai, ainda estou no período de transição, me inteirando da situação da Fundação. Então, depois que eu assumir de fato, terei acesso aos processos que a Funai responde, além dos processos de licenciamento e posicionamento da Funai. Nós estamos em um momento diferente. O presidente Lula se comprometeu a respeitar o direito dos povos indígenas. Então, se a Funai tiver um posicionamento contrário, tem que ser revisto. Sobre o caso específico da Ferrogrão, ainda preciso estudar o processo existente para que haja um posicionamento seguro. Mas de antemão, concordo plenamente com os direitos dos povos indígenas serem consultados nestes projetos, em todos os processos.

Sabendo que o desenvolvimento da Amazônia é uma das pautas do Governo Lula, como a senhora pretende lidar com estes projetos de desenvolvimento e infraestrutura, como ferrovias ou energia, que precisem passar por terras indígenas?

Primeiro precisamos discutir que tipo de desenvolvimento estamos falando. Porque os termos são diferentes para os povos indígenas. Você pode até falar em índice de pobreza, índice de proteção ambiental, mas para os povos indígenas desenvolvimento é água protegida, recursos naturais conservados e ter a floresta em pé. Portanto, os projetos que afetam a cultura e vida das comunidades locais podem se contradizer a esse desenvolvimento. Lógico que as infraestruturas são extremamente necessárias para se manter os direitos sociais e cidadania. Mas acredito que é conciliável, desde que você comece respeitando os direitos das populações tradicionais que não querem romper com seus direitos de consulta. Então vamos discutir os projetos planejados que vão afetar as terras indígenas e o meio ambiente para que eles se manifestem. Logo, o desenvolvimento é totalmente conciliável com os direitos dos povos indígenas, basta ter boa vontade política.

Na sua avaliação, como está a situação dos povos indígenas Amazônia hoje?

Como os povos do Nordeste e do Sul do País, tiveram as demarcações de terras paralisadas. A Amazônia sofreu muito ataque tanto do lado ambiental, com o avanço do desmatamento e das queimadas, mas também nas perseguições. O garimpo ilegal aumentou consideravelmente por incentivo do antigo governo que sempre favoreceu posicionamentos anti-indígenas. Mas as organizações indígenas da Amazônia tiveram um posicionamento aguerrido, sem ceder às pressões e sempre se posicionando pelo cumprimento das obrigações institucionais. Vinham sempre para Brasília para colocar essa pauta em evidência, apontando qual o desenvolvimento requerido pelos indígenas dentro das terras indígenas.

Hoje nós temos 98,7% das terras indígenas localizadas na Amazônia, então é necessário cada vez mais o investimento para a proteção dos recursos naturais que ali existem. Por mais que teve pressão em relação ao desmatamento, os povos indígenas se mantiveram firmes para proteger a floresta em pé, as nascentes dos rios, e fizeram tudo isso sem incentivo e sem nenhum investimento. Agora, querem colaborar nesse resgate da importância que a Amazônia tem, mas precisam ser tratados como protagonistas e detentores de direitos, como portadores de iniciativas que são importantes para a gente proteger os recursos naturais e conter o desmatamento e queimadas, deixando de ser apenas objetivo de imagens e dados.

Um estudo recente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) mostra que os povos indígenas isolados são os que mais sofrem pressão da atividade de garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia. Haverá um trabalho com partes do Governo Federal para a proteção dessas comunidades? Se sim, como será?

Existe um plano de ação movida pelas organizações indígenas na época que iniciou a pandemia da covid-19, que identificou a extrema vulnerabilidade dos povos isolados, principalmente com invasões que vieram a ser mais visibilizada a partir dos casos de violência no Vale no Javari, que resultou no assassinato do Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em que o mundo todo soube dessa vulnerabilidade. Também tivemos a morte do indígena que vivia no buraco.

Nos últimos sete anos, pouco se investiu no fortalecimento de programas que já existem na Funai, valorizando os servidores que atuam nessas frentes e dando um orçamento condizente com a responsabilidade que a Funai tem frente aos povos isolados. Mas hoje, essa mudança de governo vai nos dar oportunidade de fortalecer essas frentes com outros Ministérios sim, porque essa questão é transversal também, como o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, o Ministério da Justiça e o Ministério dos Povos Indígenas, que tem uma secretaria específica para trabalhar com esse tema. Então, temos a oportunidade de fortalecer e de ter programas realmente eficazes que tragam essa prioridade para o governo Lula.

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