Projeto reacende debate no Congresso sobre uso medicinal da maconha

Proposta em discussão na Câmara dos Deputados busca liberar plantio da cannabis sativa para casos específicos

Alan Bordallo / Especial para O Liberal

O debate sobre a legislação brasileira acerca do uso medicinal da cannabis sativa deve ganhar força nos próximos meses. Em junho deste ano, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou o texto base do Projeto de Lei nº 399. Apresentado em 2015, a proposta autoriza o plantio da cannabis sativa – popularmente conhecida como maconha - por pessoas jurídicas, como empresas, associações de pacientes e organizações não governamentais, para fins medicinais. A matéria ainda precisa passar pelo plenário da Câmara para seguir ao Senado Federal. Se aprovada no Congresso, pelas duas casas, segue para sanção presidencial. O percurso ainda é longo, mas animou aqueles que defendem a proposta e acreditam que ela deve facilitar a produção de remédios de difícil acesso e de alto custo.  

Por lei, qualquer médico que sinta domínio do assunto está habilitado a prescrever medicamentos à base de maconha, e hoje a Anvisa já regulamentou mais de 100 produtos do gênero. Porém, encontrar um médico disposto a prescrever cannabis sativa foi um desafio para a funcionária pública Claudia Quadros. Ela sofre de epilepsia e descreve como “deplorável” a situação que se encontrava. “Não tinha vontade mais nem de viver”, diz ela, que há dois meses passou a se tratar com óleos à base de cannabis. “Conversei com psiquiatras e neurologistas que indicaram o tratamento, mas não prescreveram”, lembra.

“Cheguei a um estado generalizado de convulsões, que desencadearam um processo de depressão. Precisei ser atendida por outras especialidades e cada vez que ia a um médico, minhas doses só aumentavam. Mas o que eu sentia era que os medicamentos não chegavam ao ponto de diminuir ou amenizar minhas convulsões”, diz Claudia, que faz uso regular de sete medicações “tarja preta”. “Cheguei a ter medicações de dosagem de 1500 mg por dia”.

Conforme relata, estava debilitada, sem se alimentar corretamente e passando a maior parte dos dias dormindo. Ela afirma que já precisava de assistência do companheiro, David Quadros, para as tarefas mais simples do dia a dia, incluindo usar o banheiro ou se deitar na cama. Suas crises epiléticas variavam entre 10 e 25, por dia, e algumas delas causavam quedas e traumas que deixaram sequelas. Em situação de desespero, ela teve o estalo que a fez procurar uma saída diferente da que a medicina convencional apresentava.

David e o filho mais velho de Claudia já falavam sobre a possibilidade do tratamento natural, mas havia algumas pedras no caminho. “Eu tinha preconceito em relação à maconha, claro”, admite. “Achava que era uma droga. Mas comecei a ler matérias, assistir transmissões sobre o assunto. Minha cabeça não compreendia algumas coisas, devido aos remédios, mas eu relia até entender. Até que vi o caso de uma criança com paralisia infantil que só conseguia mexer o pescoço. A mãe foi atrás e conseguiu o óleo e a criança passou a usar um andador. Aquilo me deu força”, relata.  

image Na clandestinidade, Jorge (nome fictício) é um dos que plantam a cannabis em casa. (Tarso Sarraf / O Liberal)

Iniciou-se então uma segunda etapa: a de conseguir a medicação. “Foi quando cheguei ao Dr. Fabrício (Brazão, médico de família e estudioso sobre o tema), que começou a prescrever para mim. Relatei a forma que estava usando e ele passou a orientar esse tratamento”, diz ela. O objetivo é que, em um tratamento integrado, em conjunto com o psiquiatra e o neurologista, Claudia passe a fazer o “desmame” progressivo dos remédios que usa, conforme apresente melhoras. Por enquanto o plano tem dado certo: um remédio já não faz mais parte da rotina. E as convulsões caíram em número e intensidade. “Hoje são duas ou três, e bem discretas. E tenho certeza que vou conseguir desmamar os outros remédios com esse tratamento”, diz ela. Hoje, Cláudia aguarda uma resposta da Abrace Esperança, única associação autorizada judicialmente a plantar e produzir medicamentos em solo nacional, para se tornar mais uma associada paraense.

Tratamento vem ganhando mais atenção e estudos, afirma médico

De acordo com o médico Fabrício Brazão, a comunidade médica reconhece que esse tipo de tratamento vem sendo objeto de mais estudos e, em ritmo lento, quebrando preconceitos. Para ele, a maconha já quebrou o tabu do “tratamento alternativo” e passado a ser um opcional. “Na clínica médica falamos em tratamentos de primeira, segunda e terceira linhas. A primeira é aquilo que é mais usado. Segunda é o que se usa quando a primeira não funciona, e assim sucessivamente. A Cannabis era um tratamento de terceira linha. Hoje é mais comum vê-la na segunda, e, em muitos casos, na primeira”, afirma.

image Médico Fabrício Brazão atende Cláudia Quadros, que está acompanhada do esposo David (O Liberal)

Mas Fabrício vê o assunto ainda em fase inicial no Brasil, onde há poucas faculdades de medicina incluindo o tema em suas grades curriculares, diferente do que, segundo o especialista, se verifica em países mais desenvolvidos. Ele próprio teve sua primeira experiência com o tema quando estava na California, nos Estados Unidos, onde afirma que consultórios médicos voltados para este tipo de tratamento eram comuns. No ano passado, já durante a pandemia, Brazão estava no estado de Massachussets, um dos pioneiros na regulamentação do uso medicinal da Cannabis. Lá visitou dispensários e começou a adentrar mais no tema. Ao voltar para Belém, se inscreveu em uma especialização em Cannabis medicinal da Universidade São Judas Tadeu, além de entrar no quinto curso de Cannabis medicinal da Universidade Federal de São Paulo, entidade que possui uma parceria grande com um movimento que impulsionou a Cannabis medicinal no Brasil. Hoje ele é associado à Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa, que reúne cerca de 23 mil artigos sobre o assunto. 

Associação de apoio ao cultivo medicinal reúne 23 mil pacientes

No total, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace Esperança) atende 23 mil pacientes. Destes, cerca de 350 estão no Pará, e 150 em Belém, segundo dados da própria Abrace. O que hoje é um ponto de esperança para tantos brasileiros surgiu de um caso de polícia. “O Cassiano (Gomes, fundador da Abrace) começou a fazer o óleo na casa dele. Dei esse óleo para o meu filho e tive resultado”, revela Luciano Lima, cofundador da Abrace e pai de um garoto portador de epilepsia refratária desde que nasceu. O menino, que tinha até 150 crises diárias, passou por vários tratamentos e até cirurgias, sem sucesso.

"Pessoas que têm filhos como o meu têm que saber que essa possibilidade existe (...) Foi um milagre. A sensação que eu tive foi a que Deus atendeu as minhas preces" - Luciano Lima, confundador da Abrace.

“As crises estavam matando os neurônios, o cérebro do meu filho estava morrendo”, conta Luciano. Desde 2012, quando passou a administrar o óleo de cannabis, Luciano e a família viram a vida mudar. Mas até chegar a esta fase, foi necessário enfrentar muitos percalços. “Vimos que a planta que vinha do tráfico era de baixa qualidade. Então o passo seguinte foi plantar”, lembra.

Informalmente constituída, o que era o embrião da Abrace já contava com 150 pacientes – e um obstáculo legal. Entre 2012 e 2014, Luciano e Cassiano procuraram um advogado, se apresentaram à Justiça e confessaram um crime. Inicialmente, a juíza federal Wanessa Figueiredo dos Santos Lima, que atendeu o caso, disse que a competência era da Anvisa – e esta devolveu a decisão para a Justiça. A juíza, então, ouviu depoimento dos 150 pacientes e expediu liminar dando segurança jurídica para a atividade. “Acabou o risco de sermos presos por tráfico de drogas”, disse.

Para Luciano, o risco iminente de prisão por cultivar uma planta no intuito de salvar vidas evidencia a problemática legislação sobre drogas no Brasil. “Aqui as leis obrigam que a gente morra. Veja a diferença que existe entre meu filho e uma criança que tem epilepsia e mora no Canadá. A mesma patologia e lá é tratada de forma acessível, que evolui. E o meu filho, por uma lei, por preconceito e por mentira não pode ter a felicidade que aquela criança tem”, desabafa.

Com o início do tratamento, Luciano diz que o filho continua tendo limitações, mas não está em um hospital prejudicado por uma medicação agressiva. “Pessoas que têm filhos como o meu têm que saber que essa possibilidade existe. Isso que penso e isso que vou defender, para que outros pais tenham o mesmo alívio que eu tenho”, explica, emocionado ao lembrar da sensação de ver seu filho reagindo bem ao tratamento com Cannabis. “Foi um milagre. A sensação que eu tive foi a que Deus atendeu as minhas preces”.

Na falta de Lei, plantio ocorre ainda na clandestinidade

Para a jurista Luciana Ferreira, que se define como uma educadora canábica, a proposta em tramitação na Câmara que autoriza o plantio da maconha para fins medicinais traz um avanço mínimo diante de possibilidades grandiosas. “É um PL atrasado, que não permite o auto cultivo e tem interesses escusos por trás, que não são o de beneficiar quem precisa, mas principalmente quem visa lucro em cima de doenças”, opina. “O que justifica proibir o indivíduo particular de plantar e produzir seu próprio óleo se uma empresa puder ter esse direito?”, provoca.

image Cultivo de Cannabis indoor (Tarso Sarraf / O Liberal)

Enquanto os congressistas ainda divergem e vão debater sobre o tema nos próximos meses, associações atuam com quem busca pelos medicamentos. “São associações que existem de fato, mas não de direito. Só em São Paulo são mais de 30 associações que fazem o acolhimento das pessoas, verificam quais suas necessidades e direcionam para médicos credenciados”, explica Luciana.

Na clandestinidade, Jorge (nome fictício) é um dos que plantam a cannabis em casa. Em um quarto, ele mantém cerca de quinze plantas, entre clones (as mudas), plantas em fase de vegetação (quando a cannabis está crescendo e se fortalecendo) e outras em floração (quando a planta amadurece e começa a desenvolver flores, último passo antes do término de seu ciclo).

Ele afirma que o que começou pelo uso recreativo virou uma convicção ao conhecer o potencial medicinal da maconha. Jorge alega que quem cultiva em casa não se seduz pela possibilidade de vender sua produção e sim defende no que acredita ser a possibilidade de fazer parte de um movimento que provém cura para um leque diversificado de pessoas. “Só para um rapaz que vive em Curitiba e trata um câncer enviei mais de 20 frascos. Se ele fosse comprar isso, pagaria uma quantia considerável. Mas os relatos que recebo dele são impagáveis. Ela não cura, mas trata e traz dignidade”, diz.

CFM demonstra preocupação com o uso dos canabinóides

O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) têm mais cautela em relação ao uso da planta para tratamento médico. Em 2019, as duas entidades emitiram uma nota com pedido de revogação de uma consulta pública da Anvisa para a regulamentação do plantio da Cannabis no país, alertando sobre possíveis “riscos para a saúde pública”.

"Diante da falta de evidências científicas que comprovem a segurança e a eficácia dos canabinóides para o tratamento de epilepsia, só é aceitável" - Conselho Federal de Medicina, em nota.

Segundo o CFM e a ABP, “diante da falta de evidências científicas que comprovem a segurança e a eficácia dos canabinóides para o tratamento de epilepsia, só é aceitável, no momento, seu uso em ensaios clínicos controlados ou, no contexto do uso compassivo, na falta de alternativas terapêuticas em crianças e jovens adultos com crises epilépticas refratárias aos tratamentos usuais em adição aos medicamentos que já estejam utilizando”.

Em entrevista à Veja Saúde sobre o assunto, no início deste ano, o psiquiatra Salomão Rodrigues, do Conselho Federal de Medicina, argumentou que dois dos princípios ativos da Cannabis sativa, o CBD e o THC (tetra-hidrocanabinol), podem ser isolados e sintetizados por métodos laboratoriais seguros e confiáveis, mas, até o momento, seus efeitos não estão bem estabelecidos. “Nada justifica voltarmos ao tempo dos extratos vegetais, em que não se sabe quais substâncias e em que quantidade estão sendo ingeridas. O CFM é contra esse tipo de uso”, declarou. A exceção seria o emprego compassivo do canabidiol para o tratamento da epilepsia em crianças e adolescentes refratários às terapias convencionais. E, ainda assim, o CBD deveria ser prescrito em associação com outras medicações anticonvulsivantes.

Flexibilizar legislação pode beneficiar criminalidade, afirma deputado

A liberação do cultivo da maconha também enfrenta resistência de parte do Congresso. Um dos argumentos é de que produtos derivados do canabidiol já são regulamentados no País pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), bastando apenas assegurar a oferta gratuita no Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, alguns acreditam que a flexibilização das regras atuais pode acabar por beneficiar a criminalidade.

image Capitão Alberto Neto (Divulgação / Câmara dos Deputados)

Durante a reunião da comissão especial que apreciou a proposta, em junho deste ano, o deputado federal Capitão Alberto Neto (Republicanos) do estado do Amazonas, por exemplo, ressaltou que a região tem a maior biodiversidade do planeta, com substâncias e plantas que podem ser utilizadas em cosméticos, alimentos, insumos veterinários e terapêuticos. “Queremos até desenvolver mais essa matriz econômica tão importante. E aqui, com esse projeto, nós trazemos uma bioeconomia, só que uma bioeconomia danosa pra nossa população”, declarou, na ocasião.

Ele diz que como profissional da segurança pública, com anos nessa luta contra o crime organizado, entende o perigo do projeto. “Quantos guerreiros já morreram, para que o Brasil não tivesse um plantio da maconha. Existe ainda em lugares pontuais, mas os maiores produtores são os nossos países vizinhos, Colômbia, Peru, Paraguai. E o mundo está interessado que o Brasil vire também um grande produtor através agora da legalização”, argumentou. “Para fins medicinais, somos totalmente favoráveis, vamos reduzir o imposto de importação, vamos zerar, fazer com que o SUS leve o medicamento a quem precisa. Agora, um plantio em todo o território nacional é uma porta muito perigosa que o parlamento está abrindo e pode não ter mais volta nesse país”, completou.

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