Marco temporal coloca setor rural e causa indígena mais uma vez em lados opostos

Cada parte da disputa lista razões; entenda o que cada um defende

Sérgio Chêne / O Liberal
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Em setembro, a Justiça Federal sentenciou e tornou réu o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, por desobediência a um acordo judicial em que a autarquia se comprometeu a avançar na demarcação do território mundurucu do planalto santareno, no oeste do Pará, e não o fez.

A decisão traz à tona uma das temáticas mais polêmicas no cenário nacional, o chamado marco temporal, que seria uma proposta de critério para a demarcação de novas terras indígenas. O debate se intensificou após a aprovação (por 40 votos a 21), em junho, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ), do PL 490 de 2007, o qual determina que são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988. A partir de então, será necessária a comprovação da posse da terra no dia da promulgação da Constituição Federal.

Ruralistas defendem a aprovação do marco temporal em nome da “segurança jurídica e do direito à propriedade privada”, enquanto que os defensores da causa indígena acreditam que a tese do marco tem sido usada para “travar demarcações”, uma vez que seria muito difícil provar que grupos indígenas ocuparam determinada área em 1988. A CCJ da Câmara deve aguardar o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), suspenso desde 15 de setembro por conta do pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes.

Exploração

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB) aponta: “o interesse de exploração dos territórios está por trás do marco temporal”. A afirmação é do agente missionário indigenista Haroldo Heleno, que atua há 22 anos no Cimi Norte 2 e coordena as atividades da entidade nos Estados do Pará e Amapá. Ele garante que a “munição” da luta em favor da causa indígena no debate em torno do marco temporal são as reuniões com os povos indígenas e o amparo da Constituição e das leis. Todavia, ele chama a atenção para um fator importante. “Ante,s eles (indígenas) estavam tutelados ao Estado ou à Funai; hoje, não mais, eles têm voz. É uma tese inconstitucional e estamos conversando com os parceiros sobre como o governo e seus aliados, que é uma omissão em reconhecer os direitos dos povos”, afirma o agente.

O representante do Cimi apontou o território ituna-itatá, na região do Xingu, como uma das áreas indígenas mais exploradas no Pará. “O desrespeito aos direitos dos povos” seria por conta de invasões e desmatamento. “Muitos saíram das comunidades e hoje estão na periferia de Altamira”, garante Haroldo em relação aos impactos resultantes da construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, em Vitória do Xingu. Haroldo exemplificou, ainda, no Tapajós, territórios que sofrem com ações de madeireiros e de empreendimentos ligados à atividade mineral. Muitos processos de demarcação já foram concluídos, mas ainda não homologados.

Faepa

A Federação de Agricultura do Estado do Pará (Faepa) já adotou um posicionamento firme e alinhado à diretriz da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em documento editado pela CNA, o setor do agronegócio toma por base o artigo 231 da Constituição Federal de 1988. “Que teria (o artigo) trazido uma nova regulação ao assunto, mas que infelizmente foi ‘sequestrado’ por narrativas e discursos que indicavam o agricultor brasileiro como invasor de terras indígenas, mesmo nos majoritários casos nos quais o produtor tinha a comprovação do título legítimo de propriedade de sua área por uma longa cadeia dominial”, diz o trecho do documento.

A Faepa aponta ainda, com base no mesmo documento da CNA, que “com aquele julgamento, o Tribunal, garantindo a necessária segurança jurídica no tema, estabelecendo a teoria do marco temporal e as 19 salvaguardas institucionais, ou condicionantes, que passariam a servir como orientação interpretativa para a análise dos novos casos de demarcação de Terras indígenas (TIs)”. O julgamento seria a Petição nº 3.388, referente à demarcação do território da Raposa Serra do Sol.

image Eliana Zacca: “Somos contrários à revisão” (Cláudio Pinheiro / O Liberal)

 

“É muito preocupante essa decisão do Supremo em colocar para rediscussão, um artigo que está muito claro na Constituição e que já tinha sido normatizado por ocasião da demarcação da Raposa Serra do Sol, em 2009. Para nós realmente é uma surpresa rediscutir algo que já estava harmonizado e que dava uma segurança jurídica aos produtores rurais e investidores. Somos contrários à revisão”, analisou Eliana Zacca, assessora da presidência da Faepa.

Recurso

O processo no STF foi provocado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) mediante o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, com repercussão geral, que discute o chamado marco temporal para a definição das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena. O recurso também desautoriza a ampliação de terras que já foram demarcadas anteriormente e facilita atividades econômicas em terras indígenas.

Empatado

Sem data para retorno, o julgamento ficou empatado por 1 a 1 com voto contra do ministro Edson Fachin, e a favor do ministro Nunes Marques. Até que a Corte retorne com o julgamento e a temperatura se eleve novamente nos debates, vale tentar esclarecer um pouco do que estar em jogo na tese em julgamento no STF, que deixa alerta ruralistas, governo federal, movimentos sociais representados por diversas entidades ligadas à causa indígena, além de outros setores.

Pará

Em outro caso concreto em que remete ao marco temporal, fica demonstrando que o assunto no Pará é latente. O Ministério Público Federal (MPF) elenca inúmeros processos relacionados à demarcação de terras indígenas, em variadas regiões paraenses, nos quais são defendidas o direito da população indígena no reconhecimento dos territórios. Inclusive, no dia 25, no Senado, o MPF se manifestou durante sessão a inconstitucionalidade do Projeto de Lei (PL) 490/2007, proposto para consolidar em lei a tese do marco temporal. Em outro episódio, de agosto passado, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) ordenou que a Funai concluísse, no prazo de 30 dias, a demarcação da Terra Indígena Tuwa Apekuokawera, do povo Suruí Aikewara, localizada entre as cidades de Marabá e São Geraldo do Araguaia.

O Grupo Liberal entrou em contato com a Funai, que se posicionou sobre o tema. “Em linhas gerais, o denominado marco temporal dispõe que, para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação indígena em determinada área, esta deveria estar habitada, ou em litígio comprovado, ou ainda sendo objeto de esbulho possessório, na data da promulgação da Constituição Federal de 1988”, diz parte da nota. Em outro trecho, a Funai se posiciona da seguinte forma: “Cumpre esclarecer que a discussão acerca da tese do marco temporal não diz respeito à supressão do direito de os indígenas reivindicarem terras, mas a um critério a ser incorporado nos procedimentos demarcatórios para averiguação da tradicionalidade, além daqueles já inscritos no § 1º do Art. 231 da CF/88”.

Em 2009, o então ministro do Supremo, Ayres Britto, adotou o termo “marco temporal” e, por conseguinte a bancada ruralista passou a adotar também. À época, o Supremo julgava um processo relativo à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Cadeia impactada

Ainda pelo estudo, a CNA alerta para os possíveis impactos caso o marco temporal não seja considerado pelo STF. Confira no quadro abaixo:

- As Terras Indígenas demarcadas no Brasil passariam de 119,8 milhões de hectares (14,1% do território), para 236,92 milhões de hectares (27,8% do território), com um aumento de 117,12 milhões de hectares demarcados.

- 1,5 milhão de empregos a menos.

- 364,59 bilhões de reais em produtos agrícolas não produzidos no país.

- Aumento significativo dos preços dos alimentos para a população.

- 42,73 bilhões de reais em exportações agrícolas não geradas.

ISA e o marco temporal

Se o setor produtivo agrícola lança luz sobre o efeito reverso na economia e distúrbios de diversas ordens na cadeia produtiva do agronegócio, os movimentos sociais, pela causa da demarcação e dos indígenas de maneira, acionam sua sirene de proteção das comunidades em questão. O Instituto Socioambiental (ISA) enviou uma cópia do recurso impetrado no Supremo, datado do dia 24 de agosto de 2021.

No documento de 14 páginas e em seis capítulos, o ISA refuta o marco temporal e diz que se trata de uma tese inconstitucional. No trecho específico referente ao marco temporal, o Instituto apontou em trecho: “A tese do ‘marco temporal de ocupação’ é juridicamente questionável sobre diversos aspectos. Primeiramente, porque não está expressa no texto constitucional. Sempre que as Constituições Federais, desde 1934 até a de 1988, quiseram fixar “data certa”, elas o fizeram de forma expressa: jamais deixaram ao arbítrio do julgador estabelecer quais seriam os ‘marcos temporais’ de sua aplicação”.

A Associação para Povos Ameaçados (APA), com sede em Copenhague, na Suíça, divulgou à imprensa, no dia 29 de agosto, um relatório sobre os projetos Ferrogrão (EF-170) e Complexo Hidrelétrico e Hidrovia do Tapajós, que estão em curso naquela região e resultariam em danos ambientais maciços e os direitos indígenas seriam violados. O documento foi divulgado pela APA juntamente com entidades de defesa ao meio ambiente e da causa do indígena, como o Conselho Indígena do Tapajós (CITI).

Mantivemos contato com o Sindicato das Industriais Minerais do Estado do Pará (Simineral), porém, por meio da assessoria, disse que não iria se manifestar. Apesar do contato feito, a assessoria da Agência Nacional de Mineração (ANM) não retornou. Já sobre a situação dos indígenas em Altamira, apontada pelo Cimi, a Norte Energia informou que o empreendimento não alagou nenhuma área indígena e vem cumprindo todos os seus compromissos relativos aos povos indígenas do Médio Xingu.

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