Absolvições e anulações da Lava Jato evidenciam necessidade de mais eficácia no Judiciário
Procurador Ubiratan Cazetta repudia a alegação de que houve conluio entre magistrados e procuradores
Uma década após a deflagração da primeira fase da Lava Jato, operação que resultou na prisão de diversos diretores da Petrobras e na condenação de políticos, o cenário atual no Brasil é outro. Ao longo desse tempo, várias das condenações foram anuladas, denúncias rejeitadas e acordos renegociados, colocando em xeque a condução inicial dos processos.
O procurador regional da República da 1ª Região e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, falou com exclusividade ao Grupo Liberal e avaliou as decisões que vêm beneficiando réus da Lava Jato e o que a Operação deixa de legado para o sistema jurídico brasileiro e para a sociedade. Confira a entrevista:
PERGUNTA: De acordo com um levantamento realizado pelo O Globo, ao menos 61 réus da Lava Jato conseguiram reverter sua situação jurídica, principalmente por meio de anulações e absolvições nas instâncias recursais. Como o senhor avalia esse panorama?
RESPOSTA: Um processo, quando se inicia, traz a hipótese de levar à absolvição. No caso específico da Lava Jato Curitiba, nós temos um complicador. Em determinado momento, se definiu que a Vara de Curitiba seria competente para um sem número de casos, naquilo que, na linguagem do direito, se chama conexão. Esta opção lá atrás da conexão, mesmo com uma decisão muito posterior do Supremo que entendeu que alguns crimes não eram de competência da Justiça Federal, mas sim da Justiça Eleitoral, causou um impacto muito grande. Do ponto de vista de quem atua no direito, a absolvição em si não é um fato inusitado. Ocorre que, quando se tem um caso tão grande e a polarização que isso trouxe, de fato, chama atenção, porque, por mais que eu consiga racionalizar isso, por mais que eu consiga colocar isso dentro de uma lógica do direito, vai sempre ficar, para quem não atua no processo, aquela impressão de que houve coisa errada, de que foi um erro, um desvio de conduta. No caso da Lava Jato, considerando o tamanho do caso, a dimensão e o número de réus, não seria problema esse número de absolvições e anulações se elas não tivessem demorado tanto a ocorrer. Houve a confirmação de decisões pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), a confirmação de decisões pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em um primeiro momento a confirmação da própria competência da Vara Federal de Curitiba pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e anos depois isso foi desfeito. É da essência do direito corrigir decisões, mas, de fato, ficou muito ruim para todos nós, para o Ministério Público, para a sociedade entender claramente por que mudou. Há erros? Sem dúvidas. A própria concentração da competência em Curitiba foi um erro. Mas há outras questões que são mais discutíveis. A competência era criminal, federal, era da Justiça Eleitoral? Eu continuo tendo dificuldade de concordar com a decisão do Supremo, que nós temos que cumprir, de que a competência era da Justiça Eleitoral e não da Justiça Federal. Processos grandes trazem problemas neste contexto e o que faltou a nós como sociedade, como Ministério Público, foi explicar claramente onde estão os problemas para que não fiquemos com aquela impressão de que um grupo de pessoas foi beneficiado e a Justiça não funcionou corretamente.
P: Em 87 de 138 processos, a falta de competência de foro foi o motivo para as anulações. O que isso revela sobre a condução inicial dos processos pela Lava Jato, na sua opinião?
R: Sem dúvida, revela um erro de compreensão. Quando nós - o sistema como um todo, o Ministério Público, Judiciário - apostamos na concentração da competência em uma única Vara, e o argumento para isso era o de garantir que aquela investigação fosse a mais eficaz possível, nós corremos um risco. O sistema como um todo falou. O STJ e o STF não viram problema na concentração da competência na Justiça de Curitiba. Isso demonstra que o sistema Judiciário brasileiro e o sistema processual penal brasileiro precisam, efetivamente, fazer uma discussão interna sobre quando se define a competência. Quais os meios rápidos para que essa competência seja fixada para que não seja, depois disso, utilizado como uma desculpa para anular um processo? Se você perde tempo na definição da competência e isso é anulado ou é remetido a um outro juiz, muito provavelmente vai perder a chance de condenar alguém por conta da prescrição. Então, o que isso demonstra, efetivamente, é que, sim, a partir das decisões do Supremo, foi um erro concentrar tantos processos em Curitiba, mas isso não foi um erro aleatório, isso estava dentro de uma lógica de garantir que um mesmo juiz, uma mesma estrutura, tivesse o conhecimento global dos fatos. E isso demonstra que nós precisamos discutir muito seriamente no Brasil regras de competência e rapidez na definição da competência das Varas para que nós não tenhamos anulações muito tempo depois.
P: Como essas anulações e absolvições impactam a percepção pública sobre a eficácia e a legitimidade da Operação Lava Jato?
R: Eu não tenho dúvida de que, por mais que eu consiga racionalizar esse tema e dentro do direito entender que houve uma decisão técnica, afastando uma competência, essa decisão técnica foi tomada muito tempo depois. Isso é um erro. Para quem não é da área do direito ou mesmo para quem é do direito e não atua na área criminal, sem dúvida nenhuma, o que transparece para a sociedade é a impunidade. E essa noção de que houve impunidade é ruim não apenas para quem acusa, mas inclusive para quem foi acusado. Porque aquele que foi acusado e que, eventualmente, tinha como provar sua inocência também continua na suspeição eterna. Então, o pior dos quadros para nós como sociedade é um quadro em que, por conta de minúcias, você acaba anulando processos e não fica visível para todo mundo o motivo dessa anulação. Se tratando de uma operação como essa, que envolvia as maiores empresas do Brasil, uma quantidade imensa de recursos desviados e pessoas ligadas ao mundo político, fica para quem não é do ramo aquela impressão de que houve um grande acordo para que tudo ficasse como sempre foi, sem punições, e isso, sem dúvida nenhuma, é ruim. Eu não estou dizendo que isso tenha ocorrido, quero deixar claro. É importante nós termos sempre em mente que as anulações decorrem de erros processuais. Mas há fatos concretos. Nós temos dinheiro apreendido, dinheiro que retornou ao Brasil, e não é pouco dinheiro. Nós temos a confirmação por empresas de que elas pagaram propinas. Nós temos imagens de pessoas saindo correndo com sacolas para guardar dinheiro adquirido de corrupção. Temos imagens de um apartamento cheio de papel-moeda, milhões de reais. Os fatos ocorreram. Se aquelas pessoas eram responsáveis ou não, se os fatos ocorreram exatamente na forma como foram descritos, é outra questão. Nós temos o dinheiro que voltou, a assunção de responsabilidade por corrupção e uma quase ínfima condenação. Se isso ocorre neste momento de polarização no Brasil, só faz piorar as coisas, porque você não consegue trazer racionalidade ao debate. E isso tudo dentro de uma operação que ficou marcada por uma cobertura jornalística, uma presença popular muito grande, é muito ruim.
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P: O ministro Dias Toffoli, do STF, anulou, recentemente, todas as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba contra Marcelo Odebrecht, alegando conluio entre magistrados e procuradores. O senhor acha que houve arbitrariedade e desrespeito ao processo legal?
R: Esse é um dos pontos mais delicados dessa questão. O Supremo decidiu, em um determinado momento, que o juiz que respondia por aquele caso, o senador Sérgio Moro, não era imparcial para julgar o caso envolvendo o presidente Lula. Essa é uma afirmação muito concreta baseada em dados concretos. Isso não quer dizer que se possa afirmar que houvesse conluio, que houvesse uma atuação conjugada. Esta afirmação é retirada de uma análise de um conjunto de mensagens obtidas de forma ilegal. Muito bom a gente destacar isso. A operação demonstrou que uma pessoa, um hacker, invadiu um número grande de telefones, obteve acesso criminoso a uma série de mensagens privadas, e não há certeza sobre a integridade dessas mensagens. Mas vamos trabalhar as mensagens como se elas fossem verdadeiras. Essas mensagens passaram a ser lidas fora do seu contexto, fora da sua sequência, para afirmar que o grupo de membros do Ministério Público que lidava com o processo lá em Curitiba tinha uma relação promíscua com o juiz, e isso não é um fato. Nós temos que, primeiro, perder um pouco do que eu poderia chamar de hipocrisia. Todos os que atuam no sistema Judiciário brasileiro sabem que é algo comum que haja uma conversa entre advogados e juízes sem a presença do Ministério Público, que haja conversa entre juízes e procuradores, especialmente quando você está falando de medidas que são sigilosas, e isso nunca foi considerado algo ilícito como conduta. Então, a afirmação do conluio é muito forte porque ela não se baseia em nenhum dado concreto. Outra coisa é dizer que o juiz era parcial ou imparcial em relação a um processo específico. A associação repudia a afirmação do conluio como algo ilícito. Nós temos uma investigação que naufragou por problemas processuais, por erros, e que precisa ser analisada como a gente analisa um acidente aéreo. Quando você tem um acidente aéreo, vai refazer aquele acidente, acessar os dados da caixa preta e tudo mais para entender onde é que está errado. Vamos evitar que isso se repita.
P: Alguns dos condenados pela Lava Jato tiveram suas penas anuladas por indultos presidenciais. Qual é a visão da Associação sobre o uso de indultos nesse contexto?
R: Um indulto é algo que faz parte da história do direito brasileiro. A ideia é que você, a partir de uma decisão do presidente da República, ao final de um ano, entenda que, em determinados crimes, não faz mais sentido que as pessoas se mantenham cumprindo a pena. Embora elas tenham sido condenadas, o presidente libera essas pessoas. No caso específico do indulto que favoreceu alguns dos réus da Lava Jato, o que é prioritário para a sociedade brasileira? O combate à corrupção deve ser levado nesta categoria? A corrupção é um crime tão grave que não deve ser objeto de indulto? Lavar dinheiro é um crime tão grave que não deve ser objeto de indulto? Essa é uma discussão que, essencialmente, compete à sociedade brasileira. Eu não gosto dos discursos muito punitivistas. Nós temos que discutir por que, como sociedade, nós aceitamos que uma pessoa que foi condenada a corrupção, que cometeu corrupção, que cumpriu uma parte da pena, seja indultada. Se a sociedade não vê problema nisso e entende que a pessoa não cometeu um crime violento, que já foi punida suficientemente, ok. De novo, nós entramos não em uma discussão do direito, mas sobre qual é o impacto para a sociedade de determinadas decisões. Aí a pergunta: a sociedade aceita ou não aceita? E, mesmo que aceite ou não aceite, esse debate está sendo travado em um contexto de racionalidade ou nós estamos muito forçados ou tensionados pela lógica das mídias sociais em que tudo vira uma decisão “sim ou não”? A sociedade é muito mais complexa do que o mundo binário de “sim ou não”. Ela tem “sim”, “não”, “talvez”, ela tem contextos. Eu, pessoalmente, em relação à corrupção, não tenho opinião formada para dizer que não deveria nunca ser objeto de indulto, porque eu acho que, em determinados contextos, dependendo do tipo de atos, do tempo de punição já cumprida, não é totalmente absurda a ideia do indulto.
P: Quais são as principais lições deixadas pela Operação Lava Jato para o sistema judiciário e para futuras investigações de corrupção?
R: Essa é a grande pergunta que nós temos que nos fazer o tempo todo como membros do Ministério Público e como sociedade. Ainda discutimos a Lava Jato dentro de chaves ou de grupos muito definidos de pró ou contra, e isso não nos leva a lugar nenhum. Nós precisamos sair do pró ou contra e olhar diretamente o que aconteceu. Nós precisamos melhorar muito a nossa forma de comunicar enquanto Ministério Público e o sistema Judiciário. A sociedade precisa entender que, quando eu processo alguém, quando eu entro com uma ação penal contra alguém, estou acusando alguém com base no mínimo de provas, indícios, que isso é uma hipótese que pode ou não vir a se confirmar. A simples propositura de uma ação penal não pode significar para o réu uma condenação. Ele, de fato, tem um espaço em que possa demonstrar que não é bem assim ou, se é assim, há condicionantes, há outros detalhes. O Ministério Público, geralmente, acha elementos suficientes para iniciar uma ação penal, mas isso não quer dizer que essa pessoa possa ser, desde já, tida como culpada. Acho que, no caso da Lava Jato, isso foi muito grave, porque nós passamos vários anos com sucessivas operações, buscas e apreensões e tudo aquilo era trazido para a sociedade sem essa discussão de que “pode ser que isso não se confirme lá na frente como uma condenação”. Outro aprendizado muito claro para nós é que o nosso sistema penal precisa ser mais ágil e precisa ser eficaz na identificação dos erros, como os erros de competência e das nulidades. Nós precisamos fazer com que não ocorra novamente que processos tramitem por quatro, cinco, seis anos, que corram várias instâncias, tribunais regionais, STJ, Supremo, que aparentemente se tenha uma certeza sobre o fato e que isso lá na frente volte a “estávamos errados”, “tem que anular tudo”. Então, acho que o sistema tem que melhorar, tem que ser mais ágil e dar respostas mais definitivas. Outra questão que eu acho que nós precisamos ir a fundo é saber como nós entendemos o processo da corrupção e o combate a isso. Nós precisamos sair do diálogo e da hipocrisia. Se você fizer uma pesquisa na sua casa, nas pessoas mais próximas a você, todo mundo vai dizer que é contra a corrupção, porque isso é óbvio. A questão é, se nós somos contra a corrupção, como vamos agir para evitar que ela se instale? Como vamos criar na sociedade a ideia de que quando eu, por exemplo, chego em uma festa de aniversário ou casamento e digo para o garçom que está me atendendo “toma aqui R$ 50 para você atender essa mesa melhor do que as outras” também é corrupção? Infelizmente, isso é uma corrupção que ocorre. O que eu quero dizer é que nós, como sociedade, precisamos evoluir e, infelizmente, isso não aconteceu no debate sobre os erros e acertos da Lava Jato. Como três conclusões iniciais eu chamaria atenção para isso: a necessidade de comunicar melhor; a necessidade de melhor funcionamento do sistema; e uma discussão social mais realista e mais concreta sobre o que é a corrupção.
P: A partir disso, como garantir a integridade dos processos judiciais e a confiança da população no sistema judiciário?
R: Nós, do sistema Judiciário, precisamos primeiro, entre outras coisas, começar a falar um português que as pessoas entendam. Embora haja questões técnicas, e toda profissão tem isso, no direito usa-se isso de uma forma excludente. A primeira coisa que nós precisamos é simplificar o que nós estamos fazendo e explicar a todos o que nós estamos fazendo, para que uma pessoa que não é formada em direito, que tem a sua vida comum, olhe para um processo e fale “estou entendendo, o processo vai começar assim e vai ter três ou quatro fases e vai chegar ao final e teremos a conclusão sobre se isso é correto ou não”. É uma simplificação da forma como isso é dito para a sociedade. Mas, essencialmente, nós precisamos olhar para o processo penal brasileiro e discutir qual é a eficácia, o que entrega e não entrega. Um dos nossos problemas é exatamente isso, essa desconfiança em relação ao sistema Judiciário brasileiro, essa desconfiança da população em relação aos resultados. Um dos nossos desafios, sem dúvida nenhuma, é olhar para o que nós fazemos e entendermos por que não está funcionando. Nós temos um encontro marcado com a população brasileira para dizer como o sistema funciona e de outro lado nós temos um encontro marcado com o próprio sistema para entender como nós faremos para que isso seja eficaz, para que os processos sejam sentenciados, para que as sentenças sejam confirmadas ou não, para que se tenha o cumprimento das decisões e para que a população saiba que funciona, existe, pode até discordar das decisões, mas esse sistema tem uma lógica interna e essa lógica interna está entregando para a sociedade um produto.
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