Em quase 60 anos, Pará registra mais de 200 casos de escalpelamento; Portel lidera as ocorrências
Estudo da Fapespa aponta que mulheres e crianças ribeirinhas são as maiores vítimas dos casos
Um estudo inédito da Fundação de Amparo a Estudos e Pesquisas do Pará (Fapespa) traçou o perfil das vítimas de escalpelamento no Pará. O levantamento, que analisou dados de 1964 a 2022, revelou que foram registrados 207 casos de escalpelamento em 41 municípios paraenses, sendo que a maioria dos casos ocorre na região do Marajó com mulheres ribeirinhas.
O escalpelamento é uma lesão grave que ocorre quando os cabelos longos de uma pessoa entram em contato com o motor de uma embarcação. A força do motor puxa os cabelos, arrancando o couro cabeludo e, em alguns casos, outras partes do corpo.
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Uma nova nota técnica chamada "Menina, mulher e ribeirinha da Amazônia paraense e o acidente em embarcações com escalpelamento" é baseada em dados da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR) e da "Casa de Apoio Espaço Acolher". Segundo a estatística cruel apontada pelo estudo, 98% das vítimas de escalpelamento no Pará são mulheres. Deste total, 67% são crianças e adolescentes entre 2 e 18 anos de idade. O município de Portel, no Marajó, lidera o ranking de casos, com 24 registros.
Os acidentes com escalpelamento são mais comuns em comunidades ribeirinhas da Amazônia, onde as pessoas costumam usar embarcações para se locomover através dos rios. As ocorrências tiveram um aumento significativo na região do Marajó a partir da década de 1960, quando os barcos a velas e remo foram substituídos por motores.
No entanto, a assistente social Alessandra Almeida, integrante da ONG dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (ORVAM), acredita que o número de casos no Estado deve passar de 400. "Só na instituição temos 167 mulheres cadastradas, esses dados não batem com o que nos é passado", disse.
O estudo da Fapespa aponta que os acidentes com escalpelamento têm um impacto significativo na vida das vítimas, tanto física quanto psicologicamente. Além da dor e do trauma imediatos, as vítimas também enfrentam estigmas sociais e dificuldades para se reintegrar à sociedade.
Por isso, a ORVAM trabalha como uma instituição que, além de fazer perucas para as vítimas de acidente nas embarcações, auxilia no processo psicossocial dessas mulheres, para que possam se reconectar com sua autoestima. Como é o caso de Regina Formigosa, vítima de escalpelamento aos 22 anos de idade, quando teve os cabelos puxados pelo eixo do motor de um barco em Muaná, no Marajó.
Hoje, aos 50 anos, ela confecciona as perucas em sua casa e destaca a importância da iniciativa para a autoestima das mulheres. “As perucas são importantes pra gente se arrumar e ficar linda. Eu não consigo ficar sem usar o meu cabelo e, assim como eu, as outras mulheres também não tiram por nada”, disse
“A peruca mudou muito a vida das pessoas que sofrem esse acidente e nos sentimos”, diz a peruqueira.
“Quando encontramos alguém que não está usando a peruca e que não tem, a gente diz logo que vamos dar um jeito. Nos sentimos renovadas com nossas perucas”, destacou Regina.
Doações
Para a confecção das perucas, a instituição aceita doações de cabelos que tenham, no mínimo, 30 centímetros. A ORVAM destaca que não importa se o cabelo tem química ou é tingido, mas é importante avisar ao cabeleireiro que o objetivo do corte é a doação dos fios.
Após cortados, a ONG orienta que, antes de serem enviados, os fios devem ser colocados em um saco plástico. O envio da doação por ser feito pessoalmente na sede da instituição ou pelos Correios. Mais informações no site da ORVAM.
O levantamento da Fapespa aponta, além do perfil social das vítimas e do cenário dos acidentes, as políticas públicas de atenção as vítimas no Pará. Entre as medidas propostas na nota técnica estão a conscientização da população sobre os riscos do acidente, a fiscalização das embarcações e a oferta de atendimento especializado às vítimas. No entanto, para a Alessandra Almeida, andar com motor descapado deveria ser criminalizado.
"Deveria ter uma lei para punir esses barqueiros. Eles sabem que existe escalpelamento e sabem o que pode acontecer se a mulher não prender o cabelo. E ainda tem a 'cultura do risco', que é como pilotar uma moto sem capacete, eles andam conscientes do acidente e os próprios barqueiros não têm o cuidado de fazer a proteção [do motor]", destaca Alessandra.
Atualmente, a Marinha do Brasil trabalha com ações gratuitas de enfrentamento e prevenção, com a instalação gratuita de coberturas para o eixo do motor de embarcações, para não ficarem expostos. "Já que no trânsito existe lei, na parte aquaviária também deveria existir uma lei punitiva para pessoas que não têm esse cuidado", completa.
Prevenção
A Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR) é uma das instituições que operam no enfrentamento dos acidentes envolvendo eixos de embarcações no Pará. O Capitão de Mar e Guerra, Ewerton Rodrigues Calfa, conta que nos últimos dois anos, 14 acidentes do tipo foram registrados (sete em 2022, e sete em 2023). Ele detalha as ações de combate ao escalpelamento realizadas pela CPAOR:
"A capitania trabalha em parceria com empresas, organizações não governamentais e com instituições nos três níveis do governo, recebe doações de coberturas para eixos de motor e faz a instalação totalmente gratuita para quem assim desejar. Além disso, fazemos trabalhos de conscientização, por meio de palestras em parceria com as instituições que compõem a Comissão Estadual de Erradicação de Acidentes por Escalpelamento, focando principalmente no público mais jovem, já que, segundo estatísticas, as vítimas estão sempre entre 6 e 18 anos de idade. A gente sabe que hoje em dia as crianças têm mais acesso à informação e capacidade até de mudar a atitude dos adultos, bem como de se tornarem adultos conscicentes”.
O capitão enfatiza que, além da colocação de proteções nos motores e do trabalho de conscientização, a Capitania também realiza fiscalizações e doação de toucas para prevenir os acidentes, e alerta: “Se você tem cabelos compridos, proteja-se, coloque um boné, uma touca, prenda os cabelos para não correr o risco de seus cabelos enroscarem no eixo da embarcação de alguém que não tem esse cuidado de mantê-lo coberto. Então com todo esse trabalho, a gente espera reduzir o número desses acidentes e até erradicá-los. A gente sabe que é um trabalho intenso, que exige muita dedicação, que fazemos ao longo de todo o ano e que tem rendido bons frutos ao longo dos últimos anos”.
Ranking dos municípios com maiores vítimas, segundo a Fapespa:
Portel – 24 casos – 100% mulheres
Breves – 22 casos – 100% mulheres
Curralinho – 16 casos – 15 mulheres e 1 homem
Cametá – 15 casos – 14 mulheres e 1 homem
Melgaço – 12 casos – 11 mulheres e 1 homem
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