Indústria da saúde paga milhões para médicos em viagens e presentes, diz site
Uma fabricante de injetáveis estéticos teria gastado quase R$ 1 milhão para levar 21 médicos mineiros a um evento em Nova York, segundo a reportagem
Milhões de reais são gastos todos os meses pela indústria farmacêutica para bancar viagens, palestras e jantares de médicos no Brasil, segundo uma apuração do UOL, que descobriu, inclusive, que as empresas de saúde chegam a pagar presentes para consultórios, como cadeiras, televisores e aparelhos de ar condicionado.
Como os dados não são fiscalizados, segundo o site, é quase impossível saber quanto esses gastos representam e quem são os beneficiários. A reportagem mostra, no entanto, que, em um intervalo de seis anos, a indústria desembolsou cerca de R$ 200 milhões com médicos em Minas Gerais, estado que, desde 2017, obriga a indústria da saúde a declarar essas despesas.
Em dezembro, o mesmo site havia mostrado que as farmacêuticas monitoram as prescrições que chegam ao balcão das farmácias; e contratos, viagens ao exterior, refeições e brindes caros podem influenciar o que o médico receita.
Casos de recebimento de verba
No caso da Galderma, fabricante de injetáveis estéticos, a reportagem aponta que a empresa gastou quase R$ 1 milhão para levar 21 médicos mineiros a um evento em Nova York. Pessoas ouvidas disseram que, quanto mais o médico aplica produtos da Galderma, maior a chance de ser convidado para essas caravanas.
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Um influente ortopedista de Belo Horizonte, por exemplo, teria recebido R$ 2,7 milhões da fabricante norte-americana de instrumentos cirúrgicos NuVasive, entre palestras, consultorias e benefícios. A equipe do médico diz que ele é "representante" da NuVasive e só opera com produtos da marca.
Já laboratórios como AstraZeneca, Pfizer e Janssen desembolsaram cada um mais de R$ 2 milhões em jantares em restaurantes chiques na capital mineira. Mas, segundo o UOL, antes de comer, é preciso ouvir a propaganda do laboratório.
Os gastos são defendidos por entidades que representam as farmacêuticas, dizendo que ajudam a capacitar profissionais. E as empresas dizem que não trocam os benefícios por prescrições.
Transparência de informações
Regra em mais de duas dezenas de países, a transparência surgiu nos Estados Unidos, com o Sunshine Act, no governo de Barack Obama, em 2010. No Brasil, em 2022, Marcelo Queiroga, ministro da Saúde de Jair Bolsonaro, preparou uma medida provisória sobre o tema, que não foi assinada. Enquanto isso, o Ministério da Saúde de Lula não está debatendo o tema.
Só os dados levantados em Minas Gerais pelo UOL, ao longo dos últimos cinco meses, apontam que foram 319 mil pagamentos entre 2017 e 2022. E, tomando como base os números mineiros, é provável que os gastos desse período no Brasil inteiro sejam bilionários, afirma a reportagem.
Os dados revelam que:
R$ 198 milhões foram gastos com médicos mineiros de 2017 a 2022
70% do valor foi destinado a apenas 3% dos profissionais do estado
Dez médicos foram beneficiados com mais de R$ 1 milhão cada um
Cardiologistas, dermatologistas e endocrinologistas foram os mais patrocinados
O maior gasto foi com transportes e hospedagens, R$ 64 milhões, seguido por contratação de palestras, R$ 59 milhões
A indústria farmacêutica responde por 91% dos valores declarados. O restante está ligado a indústrias de próteses, equipamentos e materiais médico-hospitalares. O UOL não incluiu nos cálculos o que foi declarado como financiamento de pesquisa.
Cirurgião recebeu R$ 2,7 milhões
Eventos de medicina, como congressos, simpósios e aulas, são o eixo central da relação entre médicos e a indústria da saúde. O dinheiro da indústria está em cotas de patrocínio, no custeio da participação de médicos ouvintes, no financiamento de estudos apresentados e na contratação de médicos para darem palestras e aulas.
Em Minas, os médicos mais patrocinados são os palestrantes. O principal deles é um ortopedista, Cristiano Menezes, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Coluna, que recebeu cerca de R$ 2 milhões por palestras e consultorias e mais de R$ 700 mil em benefícios. No total, R$ 2,7 milhões.
O financiador de Menezes é a NuVasive, fabricante norte-americana de instrumentos de alto custo para cirurgias ortopédicas, como parafusos de titânio de R$ 14 mil. Segundo funcionários da clínica de Menezes, localizada em Belo Horizonte, é "só Nuvasive que ele usa" nas cirurgias. Se o plano de saúde não cobre a marca, Menezes "manda os laudos e o convênio autoriza".
O médico se defendeu. Em entrevista por telefone ao UOL, disse que seus trabalhos como cirurgião e como contratado da NuVasive "são completamente distintos". "Se sou uma autoridade internacional em um tipo de cirurgia e, para realizar aquela cirurgia, eu uso um produto líder, não vejo conflito [de interesses]. O conflito seria se eu não utilizasse, sabendo que o produto é de qualidade", falou. A NuVasive não se pronunciou.
Outros médicos contemplados
Entre palestrantes, outros médicos foram contemplados com mais de R$ 1 milhão, incluindo quatro dermatologistas e três cirurgiões plásticos, todos contratados por fabricantes de produtos estéticos. A maioria usa ou receita a marca do patrocinador no consultório.
Completam a lista dois professores de medicina de universidades públicas mineiras. Um deles, a reumatologista Adriana Kakehasi, da UFMG, custou R$ 1,2 milhão a 16 laboratórios. Quem pagou mais foi a AbbVie.
Alguns dos contratos de Kakehasi com a AbbVie foram para palestrar sobre um remédio da marca para artrite reumatoide, que custa mais de R$ 6.000. Ela também publicou artigo financiado pelo laboratório, que atesta que o produto é seguro. Todos os coautores são ligados à AbbVie. Kakehasi não quis comentar, enquanto a AbbVie disse que todas as "interações com profissionais de saúde são guiadas pela abertura e transparência".
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