O Liberal na Ucrânia: Quinto dia, Odessa não esconde as feridas da guerra
Odessa fica no sul da Ucrânia, região estratégica por ter os principais portos do país que dão acesso ao Mar Negro
Foram seis horas de estrada até chegar em Odessa, no sul da Ucrânia. O ônibus antigo e a brutalidade do motorista no volante me fizeram passar a madrugada acordado, fantasiando a chegada no hotel para conseguir algumas horas de sono antes de iniciar a programação pela cidade.
Graças à mediação do Centro de Diálogo Transatlântico, uma organização que tem ajudado a marcar agendas pelo país, hoje fui acompanhado pela Ariadna Mishchuk, uma tradutora de Odessa que me levou para conversar com moradores locais e entender o dia a dia de uma das cidades mais importantes do país.
A localização geográfica de Odessa é estratégica, abriga os principais portos do país que dão acesso ao Mar Negro. Nas primeiras semanas após a invasão total em fevereiro de 2022, as tropas russas chegaram perto da cidade, mas, em nenhum momento se mostraram uma ameaça real para o governo ucraniano na região. Perder o controle de Odessa seria letal e, arrisco dizer, insustentável para a Ucrânia como país.
Diferente da capital Kiev, as ruas de Odessa não escondem as marcas da guerra. As sirenes tocam com mais frequência e há destruições em diversas áreas da cidade. Há dois meses, um míssil russo caiu em uma área residencial central, deixando vítimas e um cenário de destruição total nas proximidades. Um consultório médico que fica no andar subterrâneo de um dos prédios já foi reconstruído, mas a memória de uma médica ginecologista que estava presente na hora do ataque, ainda não foi superada.
Ela relatou que escapou da morte por um detalhe, mas alguns colegas que saíram para fumar na hora do ataque, não tiveram a mesma sorte. Desde então, a ginecologista passou a ter medo de sentar perto de janelas e nunca mais ignorou a necessidade de buscar abrigo quando a sirene toca pela cidade.
O local ainda carrega a profundidade do impacto do míssil que, em poucos segundos, foi capaz de esvaziar um bairro inteiro de civis que antes seguiam a vida normalmente. Ali perto fica uma das principais universidades de Odessa e, logo em frente, mais destruições. Um centro comercial foi completamente destruído por um míssil balístico, causando um impacto tão forte que os prédios residenciais nos fundos e a universidade também tiveram suas vidraças destruídas.
Esta é uma cidade que toma precauções muito mais rigorosas para lidar com o inimigo. O principal monumento na área portuária está completamente coberto para não ser atingido pelos russos, e a administração do porto da cidade desliga todas as luzes à noite para não chamar a atenção do inimigo.
Nas vilas próximas à cidade, quase todas habitadas por operários do porto, há dois anos que não há placas com nomes e direções da região. Propositalmente, a população arrancou todas as sinalizações em 2022 para que, em caso de invasão russa, a ausência de direções poderia confundir e retardar as ações dos adversários. A ideia contou com o apoio do Google Maps que, até hoje, não permite que as vielas sejam localizadas com facilidade.
Se não conhecer profundamente a área, um motorista qualquer terá que abaixar os vidros e sair perguntando o endereço pelas ruas. Ariadna sabia o trajeto, rapidamente chegamos na casa da Olga, uma jornalista recém curada de um câncer que vive com o filho e o marido, um ex-combatente de guerra.
A família inteira tem ligação com o exército e todos são fervorosamente patriotas. O curioso é que Olga foi criada sob cultura russa, seus pais eram militares na União Soviética, ela se acostumou a falar a língua russa durante toda a sua vida. Esse não é um caso isolado.
Por muito tempo, Odessa e o sul da Ucrânia faziam parte do império russo, e os resquícios desse passado permaneceram. A cidade sempre foi bilíngue, mas as coisas mudaram após a invasão em 2022. O uso do russo pelas ruas reduziu drasticamente e o sentimento de pertencimento à Ucrânia passou a ser tão forte que as ligações com a Rússia passaram a ser omitidas. Olga disse que, no dia após a invasão, uma regra foi estabelecida na família: a partir daquele momento, estava proibido falar russo dentro de casa.
Profundamente marcados pela guerra, Olga e o filho abriram as portas, nos serviram café e doces. Em 40 minutos de conversa, abriram o coração para falar das suas feridas, ela mais madura e o filho vivenciando os traumas de uma juventude perdida para o conflito. Olga afirma que a Ucrânia pode até ceder territórios, mas este não é o fim, e na hora certa vão recuperar o que sempre foi deles.
O seu marido não quis conversar, apareceu para buscar o café e subiu para o quarto. Quando perguntei dele para a esposa e o filho, veio a resposta mais brutal desta viagem: “ele lutou no front, está vivo, mas agora fala pouco e desaprendeu a sorrir.”
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