Movimento negro diz que Brasil ainda não está pronto para extinguir sistema de cotas

A revisão do sistema deve ocorrer só em 2022 - e é possível que seja extinto

Victor Furtado

É possível que o sistema de reserva de vagas, em universidades, para negros, indígenas, quilombolas e egressos da educação pública, seja extinto. A revisão do sistema deve ocorrer só em 2022. No entanto, entidades representativas do movimento negro brasileiro, de povos tradicionais e defensores da educação pública já se mobilizam para a manutenção e ampliação dessa política pública afirmativa. O temor é que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mova esforços contrários por já ter manifestado ser contra as cotas.

 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 54% dos brasileiros se autodeclara negro ou pardo. Uma maioria que é representada, politicamente, por uma minoria. Em uma nota técnica lançada no ano passado, alusiva ao 20 de novembro, o IBGE apontou que o Amapá tinha 83% da população autodeclarada negra ou parda. O maior índice do Brasil. O segundo ficava com o Pará, com 82%.  

 

Apesar das proporções, só nos últimos 15 anos é que a presença de negros, quilombolas e indígenas nas universidades aumentou. A constatação é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que publicou um estudo no Boletim de Políticas Social (BPS), em setembro deste ano. Entre 2012 e 2015, aponta o estudo, o número de vagas reservadas a estudantes negros aumentou de 140.303 para 247.950. Do universo de instituições públicas de ensino superior, 31% não haviam aderido a qualquer modalidade de reserva de vagas. E foram obrigadas a implantar.

 

Essa obrigação se deu pelas leis federais 12.711/2012 — ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio — e 12.990/2014 — reserva de 20% das vagas à população negra em concursos públicos. "A possibilidade de perdermos as cotas já representa um retrocesso. Não é só para a população negra. É para povos tradicionais, como indígenas, quilombolas e inclusive estudantes das zonas rurais", diz o geógrafo e professor doutor Aiala Colares.

 

"Há uma luta cotidiana de enfrentamento do racismo estrutural dentro das universidades. A luta ainda é vencer os preconceitos contra os professores e alunos dentro e fora das salas de aula. As próprias universidades precisam encontrar formas de eliminar o preconceito interno. Se hoje mais da metade dos alunos das universidades são negros, onde eles estão distribuídos? Quantos conseguem concluir, que é outro problema a se resolver. O governo atual considera a população negra na universidade pública uma ameaça — a universidade pública foi dominada, por muito tempo, pela elite branca e brancos da classe média — e o vem perseguindo", reforça Aiala.

 

Uma pesquisa feita pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em 2018, revelou o perfil dos alunos da UFPA. Essa pesquisa teve como resultado que quase 80% dos estudantes da UFPA autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Na Universidade do Estado do Pará (Uepa), 72% dos discentes são negros. No entanto, a Uepa não tem cotas raciais, só sociais, de 50% para egressos da educação pública.

 

Juvenal Araújo Júnior é subsecretário de Direitos Humanos da Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus/DF). Ele foi o principal convidado em uma roda de conversa do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Devido à carreira dedicada à igualdade racial. Ele já foi o secretário nacional de Políticas de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o mais alto cargo do segmento no País. Para ele, as pesquisas até mostram avanços, em nível nacional, sobre a quantidade de negros nas universidades. Porém, acredita que o governo Bolsonaro usará os dados como justificativa para acabar com as cotas.

 

De modo geral, afirma Juvenal, a meta de 50% das vagas das instituições públicas de ensino superior e técnico, em todo o Brasil, destinadas à população negra ainda não foi batida. Considerando, diz ele, que alguns alunos até entram, só que não encontram formas de se manter no ensino superior devido ao racismo e ausência de políticas públicas de suporte e manutenção. Ele defende que além da manutenção das cotas, as políticas precisam ser ampliadas para proporcionar a entrada e permanência nos cursos.

 

"O Brasil ainda não está pronto para eliminar o sistema de cotas. Foram 300 anos de escravidão, até que em um 13 de maio os escravos foram libertados. Sem qualquer dinâmica de reparação ou estratégia de inclusão. Até hoje, 131 anos depois, a população negra brasileira ainda vive o 14 de maio. O dia seguinte da promessa de liberdade e igualdade nunca alcançada. O racismo dificulta sonhos e as cotas precisam ser mantidas até eliminarmos a desigualdade social no País. Essas pesquisas dizendo que as universidades nunca estiveram tão negras... não é bem assim", concluiu Juvenal.

 

Cotas reduziram abismo social no ensino superior

 

Zélia Amador — antropóloga, professora doutora emérita da UFPA e uma das fundadoras do

Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) — assegura que as cotas raciais ajudaram a reduzir o abismo social no ensino superior. Mas apenas começaram um processo que ainda é longo. Por isso, diz ela, o movimento negro, em todo o Brasil, está se articulando para garantir, no Congresso, a manutenção e ampliação do sistema de reserva de vagas.

 

A avaliação de Zélia é mais otimista que a de Juvenal. Ela acredita que o Congresso não vá permitir o fim das cotas. Também considera que, em nível nacional, há uma maior compreensão de que a dívida histórica do Brasil com a população negra é impagável. "Não podemos ficar sem as cotas ainda. Por sinal, precisamos é de mais políticas públicas e uma justiça restauradora para a dignidade da população negra do país. Ainda falta muito. Mas o movimento negro vem resistindo há 500 anos", declara.

 

Por fim, Zélia diz que não é só a população negra que conta com as cotas raciais para acessar o ensino superior. Toda a sociedade brasileira depende disso. Só assim, as realidades começarão a ser transformadas e a nação será mais igualitária e completa, pontua. "O próximo passo é termos mais médicos, advogados, engenheiros, servidores públicos e parlamentares. Termos negros representando em todos os setores da sociedade, para garantir as melhores políticas públicas e serviços á toda a população. As cotas são um mecanismo de igualdade em muitas áreas da vida", conclui.

 

Italo Laredo, de 27 anos, é o primeiro membro da família dele a ingressar no ensino superior. Foram quatro anos tentando e, graças ao sistema de cotas, conseguiu ingressar na UFPA. Já se formou em Ciências Sociais e agora foi aprovado para um mestrado na área da educação. Como beneficiado direto, garante que o sistema permitiu uma completa transformação na vida dele. E é enfático: a reserva de vagas transforma vidas ao ampliar as oportunidades.

 

"Mudou minha vida. Nunca tinha saído do estado e já conheci outros lugares do pais, graças à universidade. Tive acesso à ciência, pesquisas, culturas e experiências inimagináveis. Agora outras pessoas da minha família sonham e começaram a se preparar para tentar também. Então eu defendo que as cotas precisam continuar e serem expandidas. A desigualdade ainda é muito grande", comenta o cientista social.

 

Para Italo, uma possível expansão do sistema de políticas afirmativas e reparadoras seria apoio no ensino médio. "Muitas pessoas nem conseguem terminar o ensino médio. Por isso, mesmo com cotas, há uma maioria que ainda não consegue entrar na universidade. Em oito anos, as cotas mudaram muita coisa, mas ainda é pouco diante da história do Brasil. A universidade é o sonho de um futuro melhor para o Brasil, nas camadas mais populares. Extinguir essa política pública seria eliminar a democratização da universidade. Mas sonho com o dia em que não precisaremos mais de cotas", opina.

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