Copa na aldeia: a rotina dos Kyikatejê durante os jogos do Brasil

Na aldeia em Bom Jesus do Tocantins, sudeste do estado, uma estrutura foi montada para abrigar o aparelho de televisão, ao mesmo tempo em que os indígenas disputam a tradicional corrida de toras.

Tay Marquioro
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A estreia da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo 2022, disputada no Catar, foi motivo para uma verdadeira festa na aldeia indígena do povo Gavião Kyikatejê, em Bom Jesus do Tocantins, sudeste do Estado. Antes da partida começar, uma estrutura foi montada para abrigar o aparelho de televisão para a transmissão do confronto contra a Sérvia, cadeiras foram acomodadas para receber as famílias da aldeia e até decoração em verde e amarelo foi colocada entre as árvores. Tudo para dar um toque ainda mais brasileiro.

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“Toda copa do mundo, nós nos reunimos para assistir a seleção e hoje não foi diferente. Reunimos a comunidade toda para assistir. Jogo de futebol é o que mobiliza a todos aqui”, explicou Jakukrei Gavião, de 29 anos. Ele não exagera. Essa aldeia é famosa por intimamente ligada ao esporte. Aqui nasceu o Gavião Kyikatejê Futebol Clube, o primeiro time profissional registrado entre povos indígenas e que a cada temporada concentra os esforços das cerca de 40 famílias que vivem nesta comunidade. “Eu acho que o meu sonho é jogar uma copa do mundo. Claro que eu sei que é um trabalho longo, uma disputa grande com jogadores de alto nível. Eu já me sinto muito realizado de ter jogado contra os melhores clubes do Pará, chegar em um estádio lotado, ver aquela torcida toda foi marcante”, concluiu Jakukrei.

image Televisão colocada no lado externo da aldeia era a única opção para acompanhar a seleção (Tay Marquioro)

Durante o pré-jogo, um dos mais ansiosos era Kuktykti, de 22 anos, que mostrava com orgulho a camisa oficial que adquiriu para acompanhar os resultados da seleção brasileira. “Estamos com uma boa expectativa, confiantes, acreditamos na vitória do Brasil. Em todos os jogos, vamos entrar com o pé direito. Eu acredito no hexa”, disse o indígena. “Para nós, é um sentimento festivo, assim como as brincadeiras tradicionais, a gente gosta muito de esporte. Traz um clima bom para a aldeia. A gente comemora, torce, se junta, é um momento da família para gente”.

Entre as ‘brincadeiras tradicionais’ mencionadas por Kuktykti, está a corrida de tora. Além de um esporte muito popular entre os indígenas, essa também é considerada uma prática comemorativa, sempre presente quando a aldeia tem algo para festejar. O dia de torcer pelo Brasil também foi dedicado a celebrar a menarca de uma jovem da comunidade, como um ritual de encerramento da infância da menina. “É um costume nosso celebrar a passagem para a adolescência das meninas. Com isso, nós anunciamos para toda aldeia que elas deixam de ser crianças. Nessa mesma ocasião, era costume também apresentar à comunidade o noivo da moça, prometido para ela no nascimento. Mas isso praticamente não acontece mais”, explicou a mãe da jovem, Concita Sompré.

image Concentração total na tela durante o jogo (Tay Marquioro)

Para o cacique Zeca Gavião, tanto interesse de seu povo pelo futebol se explica pela própria natureza da comunidade. “A nossa família gavião é muito esportista. Desde muito tempo, a gente acompanha as Copas do Mundo e outros campeonatos de futebol. Então, quando tem a seleção (brasileira) jogando, nós nos reunimos para dar força, é uma energia que nós queremos mandar para os jogadores, que representam de alguma forma todos os praticantes e admiradores de futebol do Brasil. Para nós, é importante”, contou o cacique.

Embora o encontro entre as famílias da aldeia seja para esse momento festivo, Zeca, que também já foi técnico do Gavião Kyikatejê, sempre pede que os atletas absorvam algo que seja aproveitado nos confrontos de que a equipe indígena participa. “Tem um sabor diferente para nós porque cada jogo serve também como um aprendizado, né? O nosso objetivo, do nosso time, é estar disputando competições profissionais. Então, eu, como cacique, prezo muito por isso. Que não seja somente um momento de assistir para torcer, mas também para aprender e motivar a nossa juventude a praticar cada vez mais o futebol e chegar a um patamar maior, quem sabe disputar em um time grande do cenário nacional”.

image Indígenas aproveitam clima de competição da Copa do Mundo para organizar a tradicional disputa com toras. (Jakukrey Gavião)

Sobre o Gavião Kyikatejê

Embora a aldeia do povo Kyikatejê esteja sediada no município de Bom Jesus do Tocantins, o Gavião Kyikatejê Futebol Clube é um time integrante da liga de futebol de Marabá, cidade onde está localizado o Estádio Municipal Zinho Oliveira, onde o Gavião tem mando de campo. Por ter como principal característica as suas raízes de povos originários, durante a maior parte da sua história, o elenco foi formado apenas por atletas indígenas. Atualmente, o Gavião é um time misto.

Desde o ingresso na Federação Paraense Futebol, em 2009, o Gavião quebra barreiras no esporte. O cacique Zeca Gavião, além de ser presidente do time, também é o primeiro indígena a comandar um clube de futebol no país. Em 2014, o Gavião se tornou o primeiro time de um povo tradicional a disputar a divisão principal de um campeonato estadual.

Tantas peculiaridades chamaram a atenção até da Federação Internacional de Futebol (Fifa), que, em 2017, chegou a produzir um vídeo documentário sobre o Gavião Kyikatejê, disponível no canal oficial da entidade no Youtube.

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