Centros de reabilitação de Ananindeua são espaços de referência na luta contra as drogas
Segundo dados de 2019 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 35 milhões de pessoas sofrem de transtornos decorrentes do uso de drogas e necessitam de tratamento em clínicas para dependentes químicos
A primeira coisa que Sérgio (nome fictício) pensa quando acorda é na pasta de cocaína para fumar. O dia do pedreiro depende fundamentalmente disso. Se tem, está tudo maravilhoso, só “alegria”. Se não tem, tudo parece ficar em preto e branco. É preciso ir até a boca de fumo no final da rua de sua casa, no bairro do Paar. Fica com um pouco de preguiça, mas a vontade de fumar sempre vence. No local compra uma peteca da droga por cinco reais, quantidade suficiente para fazer um cigarro para “começar o dia”. Do outro lado, no bairro do Nazaré, em Belém, Gilberto Carneiro acorda dominado pela mesma energia, mas em um contexto diferente. Dificilmente fica sem droga. Cocaína é sua preferida, mas para começar o dia gosta de fumar maconha do tipo skunk misturada com um pouco de tabaco. “Tudo da melhor qualidade”, diz ele. Depois de fumar, toma seu café e parte para seu trabalho, em um escritório de Belém.
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Apesar das vidas em classes socioeconômicas tão distintas, Sérgio e Gilberto - nomes fictícios para preservar a imagem dos entrevistados – vivem o mesmo drama. Assim como milhões de brasileiros, os dois paraenses enfrentam o monstro do vício desde a adolescência. Outro detalhe em comum também os liga. Tanto Sérgio, quanto Gilberto, acreditam que boa parte da energia compulsiva que os consome vem de coisas que aconteceram ainda na infância. “Meu pai não usava drogas, mas bebia muito, lembro que ele me dava bebida na brincadeira com amigos em casa quando eu era criança. Hoje consigo perceber que muita coisa vem de lá”, diz Sérgio. Já Gilberto lembra que quando era criança já roubava moedas dos pais para comprar balas e fichas de fliperama. “Acho que a energia da compulsão é a mesma, independente da droga que se usa. As vezes nem é droga, é simplesmente compulsão por qualquer coisa, como sexo, pornô, algo que vai escravizando você em busca de prazer”, diz o advogado.
“Há uma predisposição sim, mas que não é absoluta de filhos de pessoas dependentes químicas a desenvolverem dependência química. Se meu pai ou minha mãe usam drogas não significa que eu também vou me tornar um dependente. Agora, a sugestão, o ideal, é que você não faça uso de álcool ou outra droga por conta de haver uma probabilidade maior de que você desenvolva a doença”, diz o psicólogo e psicanalista Nelcy Colares, especialista em dependência química e perito cível e criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Casas de tratamento são alternativa
Gilberto já foi internado várias vezes para tentar se livrar da dependência que tanto destruiu sua vida. Seu pai pagou pelo tratamento em clínicas dentro e fora do estado, algumas com mensalidades que ultrapassavam os dois mil reais. Gilberto, que também é formado em Turismo, até conseguia ficar sem consumir drogas durante um período de tempo, mas depois vinham sempre as recaídas. Internado novamente, dessa vez no Espaço Nova Vida, em Ananindeua, o advogado pretende vencer o vício pelo seu pai, que faleceu durante a pandemia. “A última lembrança que tenho do meu pai foi dele brigando comigo, dizendo o quanto que eu decepcionei ele, o quanto ele acreditou em mim. É difícil o remorso, porque logo depois ele foi internado com covid e ficou isolado. Não consegui mais vê-lo. Só restou o remorso mesmo”, diz em lágrimas.
Já Sérgio nunca teve a oportunidade, nem dinheiro, para tratar sua doença. Com problemas financeiros, vive em constantes conflitos com sua esposa, com quem é casado desde a adolescência. Por causa de seu vício e do sofrimento que causou aos seus familiares, sua esposa foi diagnosticada com depressão e ficou viciada no antidepressivo que lhe foi receitado. Um dia, o pedreiro estava sem dinheiro para comprar droga e decidiu tomar o remédio tarja preta também. Agora são dois dependentes dentro de casa. “Mesmo assim eu continuo fumando também, mas quando não tenho dinheiro suficiente compro uma dose de conhaque de alcatrão por um real, tomo o comprimido e já ajuda né”, diz Gilberto.
Alto número de dependentes
Sérgio e Gilberto são o recorte de um número assustador. Segundo o 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, publicado no ano de 2019 e considerado o mais completo levantamento sobre drogas já realizados em território nacional, 3,2% dos brasileiros declararam usar cocaína, crack e similares nos 12 meses anteriores à pesquisa, o que equivale a 4,9 milhões de pessoas. Esse percentual não considera usuários de maconha e é muito maior entre os homens: 5% (entre as mulheres fica em 1,5%). E também entre os jovens: 7,4% das pessoas entre 18 e 24 anos haviam consumido drogas ilegais no ano anterior à entrevista.
“A questão de ter mais dependentes homens do que mulheres é que existe um marcador genético que é diferente nos homens. Esse marcador genético é ligado à dependência química e ele é mais presente no homem. Além disso, o homem tem uma tolerância inicial maior ao consumo do álcool e de outras drogas, por exemplo. E isso faz com que essa tolerância inicial desenvolva para uma tolerância posterior bem maior”, diz o Dr. Nelcy.
Enquanto há vida, existe luta
Ultimamente Sérgio está pensando em procurar ajuda. Um vizinho lhe falou sobre o Centro de Atenção Psicossocial em Ananindeua (Caps). Está disposto a enfrentar uma longa fila para ser atendido. Apesar da falta de estrutura adequada, os Caps representam a principal opção de tratamento oferecido pelo Estado. Além do atendimento, o centro de Ananindeua conta com instalações físicas para curtas internações.
Já Gilberto completou dez dias internado no Espaço Nova Vida. Fica em um quarto sozinho, paga cerca de R$ 800 por mês ao centro que também reserva algumas vagas para pessoas sem condições de pagar. No momento, são 25 pessoas lutando contra o monstro do vício através de diversas terapias. “Espero sair daqui e ir morar em outro local, onde fique mais distante das armadilhas das recaídas”, diz Gilberto, logo em seguida indo ao encontro dos outros pacientes. Há um dia inteiro de trabalho pela frente. É preciso manter a mente bem ocupada.
A população brasileira e as drogas
Segundo dados de 2019 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 35 milhões de pessoas sofrem de transtornos decorrentes do uso de drogas e necessitam de tratamento em clínicas para dependentes químicos.
A substância ilícita mais consumida no Brasil é a maconha: 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 anos já a usaram ao menos uma vez na vida. Em segundo lugar, fica a cocaína em pó: 3,1% já consumiram a substância.
Aproximadamente 1,4 milhão de pessoas entre 12 e 65 anos relataram ter feito uso de crack e similares alguma vez na vida, o que corresponde a 0,9% da população de pesquisa publicada no 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira
Outro dado destacado pelos pesquisadores diz respeito ao uso dos analgésicos opiáceos e dos tranquilizantes benzodiazepínicos. Nos 30 dias anteriores à pesquisa eles foram consumidos de forma não prescrita, ou de modo diferente àquele recomendado pela prescrição médica, por nada menos que 0,6% e 0,4% da população brasileira, respectivamente, segundo o 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira.
Grande parte dos dados considerados mais alarmantes com relação aos padrões de uso de drogas no Brasil não estão relacionados porém às substâncias ilícitas, e sim ao álcool. Mais da metade da população brasileira de 12 a 65 anos declarou ter consumido bebida alcóolica alguma vez na vida. Cerca de 46 milhões (30,1%) informaram ter consumido pelo menos uma dose nos 30 dias anteriores. E aproximadamente 2,3 milhões de pessoas apresentaram critérios para dependência de álcool nos 12 meses anteriores à pesquisa.
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