No Pará, especialistas analisam cenário no Afeganistão: ‘Momento de soberania’
Responsável pelo Centro Islâmico Cultural do Pará, Said Mounsif ressaltou o desejo do país em ser independente. Mário Tito, doutor em relações internacionais, citou fracasso da ocupação americana
O mundo tem assistido com apreensão e muita atenção cada passo do retorno do Talibã ao comando do Afeganistão desde a noite da última sexta-feira (13) e no Pará não é diferente.
Para o professor Said Mounsif, da Faculdade de Engenharia Naval da Universidade Federal do Pará e responsável pelo Centro Islâmico Cultural do Pará, o que mais impressionou foi a rapidez do grupo que volta ao comando do país depois de 20 anos de ocupação estadunidense.
O efeito dominó começou na noite de sexta-feira pelo norte do país.
No sábado (14) de manhã, as forças do Talibã já haviam progredido rumo ao sul e o sudoeste, tomados sem maior esforço bem como a cidade de Mazar-i-Sharif.
No domingo foi a vez de Jalalabad, que liga a capital ao Paquistão. Horas depois, Herat e Lashkar Gah se renderam diante de um cerco e Cabul, enfim, caiu, sem resistência do governo local.
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"Vínhamos acompanhando as notícias de negociações e conversas e também sabíamos há meses da retirada das tropas americanas, mas ficamos surpresos, especialmente porque o Afeganistão é um país grande, com um território difícil. Foi rápido. O Talibã dominou o país com uma velocidade impressionante", diz ele.
Ele se surpreendeu com a cobertura da imprensa, praticamente 24 horas por dia sem interrupções ao longo do final de semana, em todas as plataformas possíveis.
Para ele, isso dá a dimensão de como o Afeganistão é importante no cenário internacional.
Mounsif lembra que na década de 80, quando os afegãos buscavam se livrar do domínio soviético, a situação foi bem diferente e o fluxo de informação em escala global era outro.
"Isso demorou muito. Ficamos cansados de ouvir falar de Afeganistão na TV, vendo que estavam brigando entre eles. Os russos saíram e ainda ficou aquela situação de guerra civil. O Afeganistão fez parte da história do século XX e agora faz parte da história do século XXI", avalia.
Ele considerou a tomada do país uma derrota para os Estados Unidos e classifica o conflito como político, e não religioso.
Ele fala que os afegãos vivem há 40 anos sobressaltados, vivendo um momento difícil atrás do outro.
"A gente acredita em valores como a liberdade, o desejo de viver em um país independente. São valores que a gente não discute. O Afeganistão estava vivendo sob a dominação do estrangeiro. A partir do momento em que acreditamos que o Afeganistão está vivendo um momento de soberania, [no sentido de] quem domina lá agora são pessoas de lá, só podemos esperar que o grupo Talibã hoje possa tomar conta do país de uma forma correta", deseja ele.
Questionado pela comunidade internacional, o regime afirmou que, desta vez, as meninas com mais de 12 anos vão poder frequentar as escolas, em oposição ao que foi observado na primeira passagem do grupo pelo poder.
Relatos, porém, afirmam que professores já começaram a se despedir das alunas na sexta-feira (16) e há dúvidas sobre as reais intenções do Talibã de deixar as violações dos direitos humanos do passado, de fato, no passado.
Said prefere ser esperançoso.
"Todo mundo concorda que eles têm regras tribais. Eles vivem ainda naquela sociedade anterior a nossa sociedade moderna. Mas o que a gente deseja é que a partir de agora, com essa independência, o Afeganistão possa começar um período de liberdade, de direitos, onde cada um possa viver em paz, com direito de expressão, seja homem, mulher ou criança, além do direito a segurança, claro", afirma.
Especialista em relações internacionais cita estado falido e fracasso da ocupação americana
O professor Dr. Mário Tito é doutor em relações internacionais e acredita que devemos ter paciência com a história.
Ele concedeu a entrevista sobre o tema mais importante do dia em uma sala de aula da capital paraense, com plateia ao vivo formada pelos próprios alunos, que em silêncio acompanharam as explicações do professor.
Segundo ele, os grandes fatos históricos podem parecer se desenrolar num piscar de olhos, na figura de uma ruptura ou um golpe, mas na vida real todo processo histórico é uma soma de diversos fatos que o antecederam - bem como as consequências que virão no futuro.
"Já havia sinais muito fortes de que os Estados Unidos iriam deixar o Afeganistão. O que se percebe é um estado falido. Percebemos as instituições que não funcionam, que a estrutura econômica é falida e que era um país que se mantinha em pé por uma força de intervenção norte-americana que não tinha interesse nenhum em fazer o país crescer. Acompanhar esses momentos foi ver a história acontecer diante dos nossos olhos e ainda bem que temos as redes sociais. Imagina há 30 anos atrás?", reflete.
Para ele, trata-se da ponta do iceberg de tantos outros problemas no oriente Médio dos quais as forças políticas internacionais não conseguem resolver.
Ele prevê como consequências imediatas da crise no país a retomada dos hábitos do Talibã da década de 90.
"[...] por ser um país totalmente focado no fundamentalismo religioso, inclusive na questão dos direitos das mulheres e direitos humanos, que foram conseguidos de alguma forma nos últimos anos. As imagens que chegam hoje (16) são absurdas. Pessoas querendo entrar no aviões, gente que caiu efetivamente dos aviões. Do ponto de vista geopolítico, a retirada enseja um vácuo de poder, que com certeza vai ser ocupado pela China e pela Rússia", analisa ele.
Tito acredita que a União Europeia evita se manifestar sobre qualquer coisa que vá além das portas abertas para os refugiados e que a Organização das Nações Unidas está escondida, "sem saber o que fazer".
E ele concorda com Saif sobre o fracasso da ocupação americana.
"O Afeganistão antes da guerra fria era um país até desenvolvido. O livro O Caçador de Pipas fala sobre um Afeganistão próspero. A Guerra Fria chega e gera a Al-Qaeda e o Talibã, além das perdas das estruturas sociais. Esses 20 anos representaram uma presença para proteger as fontes petrolíferas lá com a desculpa de estabelecer uma democracia. Não estabeleceram sobre aspecto nenhum a possibilidade do país se sustentar após a retirada", diz.
A bomba explodiu nos colos do presidente Joe Biden. Tito avalia que a pressão dos norte-americanos era muito grande e que todos os presidentes anteriores ao democrata já sabiam que precisavam se retirar do Afeganistão, apesar de terem gastado um trilhão de dólares antes fazê-lo.
O professor lamenta que o fato de que o Brasil não poderá fornecer nenhum tipo de apoio para a crise internacional e acha que as coisas teriam sido diferentes anos atrás.
Para ele, o alinhamento automático do atual governo com o ex-presidente Donald Trump e outras apostas em líderes que não estão mais no poder trouxe prejuízos.
"A tradição diplomática brasileira sempre foi de mediação de conflito, que poderia chegar ao acordo entre as partes e conclusão de ganho e ganho. O grande problema é que o Brasil nos últimos anos perdeu muito capital diplomático no mundo e não é mais visto como um grande player [ator, em inglês] e perdeu espaço inclusive para outros países da América Latina", diz.
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