Plano Real reduziu hiperinflação no Brasil, mas não fez deslanchar crescimento econômico

Quase três décadas depois e com o Plano já desconfigurado por decisões econômicas, país enfrenta alta da inflação novamente

Elisa Vaz

A escalada da inflação vivida hoje no Brasil, que fechou com alta de dois dígitos no ano passado, é fruto de uma série de fatores negativos, como o aumento do dólar, a valorização global do petróleo e as secas, segundo os especialistas. Mas, embora os preços estejam bem acima da média que vinha sendo observada nos últimos anos e o percentual tenha sido o mais alto desde 2015, o momento de real hiperinflação no Brasil se deu após a ditadura militar, com a reabertura democrática do país. Os reajustes de preços eram tamanhos que foi preciso criar o Plano Real, 28 anos atrás, completos nesta sexta-feira (1º).

Implementado no governo Itamar Franco, em 1994, o plano, como o nome adianta, foi responsável pela criação do real, atual moeda oficial do país. Ele foi elaborado para combater a hiperinflação que se instalou no Brasil no governo Sarney, a partir das condições econômicas herdadas da ditadura militar que durou de 1964 a 1985. Segundo o mestre em economia João Cláudio Arroyo, doutorando em desenvolvimento urbano, a iniciativa se baseou em três pontos. O primeiro foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, estipulando tetos para os gastos públicos da União, Estados e municípios.

Em segundo lugar, o câmbio flutuante, para que a moeda nacional fosse desvalorizada, deixando de acompanhar o dólar, o que prejudicava o setor exportador; e o terceiro foram as metas de inflação, que, ao atingirem certo ponto de gatilho, disparavam a Selic – taxa básica de juros – para reprimir o consumo e, com isso, os preços. “Os jovens de hoje devem ter dificuldade de imaginar uma situação em que a pessoa estava em um corredor do supermercado e escutava a máquina de etiquetar, remarcando os preços das mercadorias, na mesma hora. Um caos”, avalia o mestre em economia.

Hiperinflação afetava população

Quem se lembra bem desse período é o aposentado Guilherme Bacellar, de 61 anos, que é também proprietário de uma empresa de consultoria e treinamento. No início da década de 1990 ele trabalhava em um banco, como gerente, e conta que, para proteger o próprio dinheiro e o dos clientes, era necessário aplicar os recursos disponíveis em conta no “over night”, que os atualizava diariamente. O dinheiro parado, segundo ele, era corroído pela inflação rapidamente e, assim, a classe média ia amenizando o impacto da alta inflação.

Quem mais perdia nessa época, no entanto, eram as pessoas de menor renda, que não tinham acesso a bancos, segundo ele. “Lembro de pessoas que, no dia que recebiam seus salários, corriam para o supermercado para comprar o que podiam, pois no dia seguinte já comprariam menos. A remarcação de preços era diária. Com a alta inflação atual, todos os bancos ofertam aplicações diárias e automáticas, com essa finalidade. Quem deixava dinheiro parado estava perdendo dinheiro”, lembra. Guilherme diz que as histórias retratam a angústia da classe menos favorecida para garantir produtos essenciais em suas casas.

Para ele, o Plano Real foi eficaz para combater a inflação e trouxe mais qualidade de vida para a população. O empresário lembra que a inflação, que, no mês anterior ao lançamento da moeda, bateu cerca de 83%, caiu para menos de dois dígitos e se manteve assim de lá para cá em quase todo esse período. “Uma economia com baixa inflação permite às pessoas melhor programação financeira e planejamento. Isso, por si só, já é algo que proporciona mais qualidade de vida à população, especialmente aos de menor renda, que são a maioria”.

O empresário Arlindo Guimarães, de 63 anos, também viveu esse momento e conta que era um ambiente econômico “extremamente hostil”, em que se tornava difícil planejar tanto a vida pessoal como da empresa, por conta da insegurança. Ele teve experiências com a hiperinflação como empresário e consumidor: para comprar mercadoria era difícil porque, duas semanas depois, o preço já estava mais alto; e, para fazer compras para casa, precisava ir rápido ao supermercado. Arlindo lembra que foi nessa época que o freezer, hoje presente em muitas casas de brasileiros, ficou popular, porque os consumidores estocavam alimentos para garantir um preço mais baixo.

“Perto do Plano Real a inflação chegou a 83% no mês, difícil imaginar hoje, que temos cerca de 10% ao ano. Isso fazia com que os salários parecessem maiores. É como o que acontece em países desvalorizados: o consumidor vai comprar pão e gasta 10 mil”, conta. Em quase três décadas, o empresário acredita que o Brasil tenha mudado completamente e que as bases da economia tenham se solidificado, o que resultou em empresas investindo mais, já que a política econômica dava estabilidade para os negócios: “Não tem como investir em um ambiente instável, e a inflação ainda corrói o poder aquisitivo, principalmente da população mais pobre”.

Plano foi desconfigurado no Brasil

O Plano Real, ao estabilizar preços, contribuiu, principalmente, com a gestão financeira dos investidores, com o planejamento público e com a redução do impacto da inflação na perda do poder de compra dos salários, segundo o economista João Cláudio Arroyo. Apesar de ter sido eficaz em sua missão, ele diz que o Plano Real foi desfigurado a partir de 2016, no governo Temer, com a emenda Constitucional do Teto de Gastos, que, de acordo com ele, distorce a Lei de Responsabilidade Fiscal, fazendo com que os gastos sociais, em educação e saúde, por exemplo, fossem congelados, mesmo tendo aumento de arrecadação. Enquanto isso, o pagamento dos serviços da dívida pública, que beneficia, principalmente, grandes bancos e investidores estrangeiros, não tem teto, consumindo hoje mais de 50% de tudo que é arrecadado em impostos; nas palavras do economista, “o maior vazamento da renda nacional”.

Outra grave desfiguração do Plano Real, na avaliação de Arroyo, é a política de redução do poder de compra dos salários que, no governo Bolsonaro, passaram a ser corrigidos abaixo da inflação. “Com a repressão ao investimento público combinada à repressão ao consumo das famílias, a quebradeira do varejo foi avassaladora e, sem ter para quem vender, a indústria reduziu produção, colocando a oferta abaixo da demanda, o que gera inflação – a de pior tipo, por queda da produção, fazendo com que hoje tenhamos a terrível combinação de uma inflação de dois dígitos com 11 milhões de desempregados, 33 milhões passando fome e 105 milhões em insegurança alimentar. Os únicos setores beneficiados são os bancos e os exportadores, agravando a concentração de renda e as desigualdades que animam as violências e a perda da qualidade do convívio social, afetando a todos”, argumenta o especialista.

Qualidade de vida ainda é desafio

Vários especialistas alertam que, embora o Plano Real tenha conseguido reduzir a inflação a níveis aceitáveis, a estabilização não foi suficiente para fazer deslanchar o crescimento econômico, que continua sendo um problema da economia brasileira até hoje. Para Arroyo, a questão é que o crescimento se divorciou da melhoria da qualidade de vida da maioria. Ou seja, a concentração de renda e as desigualdades decorrentes fazem com que até um eventual crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)) não produza uma melhora no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), colocando em questão a finalidade da economia: “Primeiro, economia é fim ou meio? Segundo, seu objetivo é apenas aumentar a produção ou melhorar a qualidade de vida?”, questiona.

Com a nova escalada da inflação atual, a situação econômica atual no Brasil não chega a um ponto parecido com o de quase 30 anos atrás, mas exige medida para conter a alta de preços e a desvalorização do real. A inflação possui duas causas principais, a boa e a má, na opinião do economista. A boa é quando o consumo supera a produção, porque consumo significa melhora da qualidade de vida, enquanto a má é quando a produção, para o varejo interno, cai abaixo do consumo das famílias, desestimulando investimentos produtivos, além de empregos, negócios locais e renda em geral – o que vive-se atualmente no país.

“O divórcio entre produção e qualidade de vida está exatamente em ter como motor da produção apenas o setor exportador, que não investe internamente o que ganha externamente, como faz o próprio ministro da economia Paulo Guedes que prefere colocar sua poupança em paraísos fiscais. Logo, temos que fazer o oposto, precisamos incrementar os investimentos internos. Mas ninguém investe se não vê que vai vender. Então, ao lado do investimento interno, precisamos corrigir os salários acima da inflação e criar condições especiais para pequenos varejistas e a economia solidária, exatamente o setor que gera mais de 80% dos novos postos de trabalho”, defende Arroyo.

Além disso, para o médio e longo prazos, ele acredita que o Brasil precisa investir no principal capital de qualquer negócio: conhecimento; e, no mínimo, triplicar os investimentos em educação, ciência e tecnologia.

'Não existem medidas drásticas nem mágicas'

Já o ex-gerente de banco Guilherme Bacellar acredita que não existam medidas drásticas nem mágicas para acabar com o "fantasma da inflação". O aumento da taxa de juros, na opinião dele, é uma medida ortodoxa necessária neste momento e vai fazer baixar a inflação, só que não basta para tornar esse processo sustentável; é necessário avançar nas reformas administrativa e fiscal, principalmente. "Acho que nossa economia está em boas mãos com o ministro Paulo Guedes, mas a guerra ideológica está prejudicando bastante a sua jornada. O mundo vive um momento atípico de alta da inflação, provocado pela pandemia e agravado neste ano com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia", diz.

Como país em desenvolvimento, ele acredita que o Brasil esteja fazendo o que pode de melhor neste contexto, após criar condições para a sobrevivência das empresas nos momentos de lockdown, garantir programas para suprir as necessidades básicas da população de baixa renda, avançar em ações de infraestrutura e criar benefícios à população em geral, como a criação do PIX. "Teria feito mais, não fosse as travas e atrasos nas reformas propostas ao congresso e as interferências inadequadas do poder judiciário", opina Guilherme.

Inflação no Brasil ao longo dos anos

2000: 5,97%
2001: 7,67%
2002: 12,53%
2003: 9,3%
2004: 7,6%
2005: 5,69%
2006: 3,14%
2007: 4,46%
2008: 5,9%
2009: 4,31%
2010: 5,91%
2011: 6,5%
2012: 5,84%
2013: 5,91%
2014: 6,41%
2015: 10,67%
2016: 6,26%
2017: 2,95%
2018: 3,75%
2019: 4,31%
2020: 4,52%
2021: 10,06%

Fonte: IBGE

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Economia
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