Garimpo ilegal cresceu até 970% em terras indígenas do Pará
A atividade tem se intensificado em territórios protegidos, o que acende alerta de pesquisadores e entidades que defendem o meio ambiente e os povos originários
As atividades de garimpo ilegal em duas terras indígenas (TIs) do Pará tiveram uma alta surpreendente nas últimas décadas. No território Kayapó, a estimativa da ocupação da área por garimpeiros em 2020 – de 77,1 km² – foi 970,8% superior à encontrada em 1985, de 7,2 km². Em outra terra protegida no Pará, Munduruku, a atividade mineradora apresentou maior crescimento a partir de 2016, passando de 4,6 km² para 15,6 km² em apenas cinco anos, alta na casa dos 239,1%. Os dados são de um estudo feito por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade do Sul do Alabama, nos Estados Unidos. Neste caso, se referem à mineração de ouro, que responde por 99,5% do garimpo ilegal em TIs da Amazônia Legal.
Ainda de acordo com o levantamento, são essas duas terras paraenses, somadas à Yanomami, em Roraima, que respondem por 95% das áreas de garimpo ilegal na região. Embora proibida pela legislação brasileira, a exploração mineral em territórios protegidos, como terras indígenas e unidades de conservação (UCs), cresceu 1.217% nos últimos 35 anos, saltando de 7,45 km² ocupados pela atividade em 1985 para 102,1 km² em 2020. As informações foram fornecidas pelo projeto MapBiomas, rede colaborativa que mapeia a cobertura e o uso do solo no Brasil.
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Essa mesma entidade norteou um estudo do Instituto Escolhas, “Ouro acima da lei: áreas protegidas da Amazônia em perigo”, que também usou informações da Agência Nacional de Mineração (ANM). A pesquisa aponta que os “graves indícios de ilegalidade” estão presentes em 98% do ouro comercializado a partir do entorno de TIs na Amazônia e em 56% do ouro comercializado ao redor das UCs onde a mineração também não é permitida. Para identificar e quantificar os indícios, o estudo considerou a comercialização de ouro que ocorreu a partir de um título minerário com indícios de extração para além dos limites geográficos autorizados; e quando a comercialização de ouro ocorreu a partir dos chamados “títulos fantasmas”, que são áreas autorizadas, mas sem indícios de atividade minerária identificada.
Territórios protegidos do Pará surgem novamente como destaque na mineração ilegal neste cenário. Segundo o Instituto, a comercialização de ouro com indícios de ilegalidade ocorreu, principalmente, no entorno das terras indígenas Areões (MT), Xikrin do Rio Catete (PA), Kayapó (PA) e Kayabi (PA/MT), e nas unidades de conservação ao redor do Parque Nacional do Jamanxim (PA), do Parque Nacional Mapinguari (AM/RO), do Parque Estadual Serra Santa Bárbara (MT) e do Parque Nacional da Amazônia (PA/AM). O estudo analisou dados de comercialização de ouro na Amazônia entre 2018 e 2020.
O documento ressalta que o conjunto de informações é um alerta para as autoridades e toda a sociedade. “As áreas protegidas da região, extremamente importantes para a manutenção dos recursos ambientais e para garantir a sobrevivência dos povos da floresta, estão sob intensa pressão das operações ilegais. E essas operações acontecem não apenas no entorno dos territórios resguardados pela legislação, mas também dentro deles”, destaca o Instituto, que ainda reforça a hipótese de que o ouro retirado ilegalmente das TIs e UCs pode estar passando por um processo de “lavagem”, ou seja: antes de entrar no mercado, é registrado como “oriundo de áreas próximas”.
Risco
A crise vivenciada em Roraima e causada pelo garimpo ilegal preocupa órgãos e especialistas quanto ao destino dos garimpeiros que foram expulsos da terra Yanomami. Há indícios apontados pela Polícia Federal (PF) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de que milhares deles pretendem migrar para garimpos ilegais em território paraense, principalmente nos do rio Tapajós e seus afluentes, em Itaituba e adjacências. No alto Tapajós, a TI Munduruku fica ligada a Jacareacanga. Os dois municípios estão entre os que mais têm atividade de extração de minério de ouro. Segundo dados da ANM, Itaituba aparece em primeiro lugar na lista, enquanto Jacareacanga está em oitavo.
Nenhum dos órgãos quis conceder entrevista. Procurada pela reportagem, a PF no Pará disse que, no momento, não foi constatada fuga de garimpeiros de Roraima ao Estado. “Se isso ocorrer, a tendência é que sejam alvos das próximas operações policiais de combate à extração irregular de minérios. Só na área da delegacia de Marabá, por exemplo, houve operações de combate a garimpos ilegais em agosto, setembro, novembro e dezembro do ano passado, além de mais uma no início deste mês. Apesar das dificuldades de uma área muito vasta do Estado e estradas de difícil acesso, especialmente em época de chuva, além da necessidade permanente de investigação a muitos outros tipos de crime, há vários inquéritos relacionados à mineração e esse trabalho não para”, destacou o órgão.
Já o Ibama informou que “os compromissos dos responsáveis pela condução das ações de fiscalização ambiental inviabilizam o atendimento à solicitação de entrevista” e que “novas informações sobre operações em curso na terra indígena Yanomami serão divulgadas tão logo os resultados obtidos até o momento estejam consolidados”.
O estudo do Instituto Escolhas ainda aponta que, embora a TI Yanomami seja uma das mais afetadas por garimpos ilegais no Brasil, com 1.557 hectares cobertos, os dados oficiais não registram nenhuma operação de venda de ouro em Roraima, onde está a maior parte dos garimpos identificados na terra indígena. “Essa é uma forte evidência de que o ouro, roubado da terra indígena, é contrabandeado para entrar no mercado formal por outras localidades. Outras TIs gravemente afetadas são a Kayapó e a Munduruku, ambas no Pará, que possuem, respectivamente, 11.542 e 4.743 hectares ocupados por garimpos ilegais. Juntas, essas áreas equivalem a mais de 15 mil campos de futebol”, diz o documento.
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Um dado que também corrobora a ideia de que outras áreas, além da Yanomami, podem estar afetadas drasticamente pelo garimpo ilegal é a quantidade de pistas de pouso na região amazônica. Das quase 2.900, segundo levantamento do MapBiomas, 860 ficam no Pará, o que facilitaria o deslocamento de hordas de garimpeiros. Mais de 15% dessas pistas ficam a cinco quilômetros de distância, ou menos, de um garimpo clandestino. Das cinco terras indígenas com mais pistas de pouso, três delas são as que mais têm garimpos, todos ilegais: 75 pistas de pouso na TI Yanomami, 26 na TI Kayapó, e 21 na TI Munduruku, as duas últimas no Pará. O Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) confirmou à reportagem que, em operações, estão sendo identificadas pistas de pouso que têm maior tráfego de aeronaves com esta finalidade.
Com o intuito de analisar a situação relacionada à atividade ilegal de extração mineral no Pará, o governo do Estado instituiu, por meio de decreto assinado no dia 8 deste mês pelo governador Helder Barbalho (MDB) e publicado no mesmo dia em edição extra do Diário Oficial do Estado, um Grupo de Trabalho (GT) que vai realizar estudos com o objetivo de encontrar soluções de cunho social visando a inclusão dos trabalhadores dessas atividades.
A reportagem tentou contato com o governo para detalhar quais ações devem ser desenvolvidas no GT, que reúne ao menos 17 entidades, mas a administração estadual apenas enviou uma nota por meio da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informando que todas as informações sobre garimpos ilegais em áreas indígenas são de atribuição dos órgãos federais. “A Segup informa ainda que o sistema estadual de segurança está garantindo o monitoramento nas áreas estaduais, inclusive com o sobrevoo de aeronaves do Grupamento Aéreo (Graesp), para verificar se há alguma movimentação ou fluxo de pessoas ligadas a garimpos ilegais saindo de Roraima para o Pará”, enviou o Executivo.
Também procurado pelo Grupo Liberal, o Ministério Público do Trabalho no Pará e Amapá (MPT-PA/AP) enfatizou que está “atento à situação e busca reunir provas a respeito de empresas que exploram garimpos clandestinos em Roraima, sobretudo porque estão intimamente associadas ao trabalho escravo e à exploração sexual. O MPT no Pará, junto com órgãos parceiros, está atento e acompanhando o fluxo migratório dos garimpeiros das terras Yanomami. Investigações estão em andamento, por meio do Grupo de Trabalho do Garimpo, para as devidas providências legais”, disse. A reportagem havia questionado o número de trabalhadores em garimpos ilegais no Pará, mas não obteve resposta.
Garimpo ilegal não traz vantagens a territórios protegidos
Embora a atividade do garimpo seja antiga e exista desde os tempos da colonização brasileira, foi na história recente que ocorreu de forma desordenada e deixando garimpeiros sem estrutura social, o que empurra muitos trabalhadores para uma situação precária, trazendo prejuízos para si, para a sociedade e para o meio ambiente. É no que acredita o procurador da República Alan Mansur, do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA). Para ele, deve haver uma evolução dos modos de utilização das áreas, para que as pessoas não fiquem em risco e que também não se degrade o ambiente.
“Acredito que, atualmente, temos mais informações e formas de combater atividades ilegais e buscar que atividades regulamentares sejam fomentadas pelo poder público. Há muitas terras indígenas e unidades de conservação parcialmente prejudicadas pela utilização sem qualquer ordem da exploração mineral. Nestes casos, o minério é explorado de nossas terras, paga-se pouco ou nenhum imposto, são causados problemas sociais e ambientais e não se deixa vantagens para o espaço. As grandes empresas que fecham os olhos para este tipo de exploração e atividade e esquentam o ouro ilegal ganham muito dinheiro, vendem para o mercado interno e para o exterior, e a maioria dos prejuízos fica aqui na Amazônia”, critica.
Regras
Segundo o procurador, a oportunidade de se apresentar “balizas adequadas” para a comercialização é positiva para todos os agentes. Além da repressão adequada a nível criminal, para coibir as práticas ilegais em curso, Mansur ressalta que o MPF-PA busca que se estabeleça especificação de parâmetros relacionados à forma de utilização econômica da jazida ou às técnicas e tecnologias aplicáveis para a lavra, e aborde o que se entende por aproveitamento imediato do jazimento, normas estabelecendo claramente o porte do empreendimento, o risco operacional e a previsão de beneficiamento. A ausência de dados prévios das empresas, na opinião dele, favorece mecanismos de lavagem de minerais.
“Quando não se sabe a potencialidade produtiva de uma jazida qualquer, explorada mediante uma dada permissão de lavra garimpeira, qualquer empresa pode dizer que quilos de ouro foram extraídos daquele espaço, quando, na verdade, foram retirados de terras indígenas ou áreas de preservação ambiental, sem qualquer cuidado com as pessoas que lá trabalham ou com o meio ambiente”, argumenta o procurador da República.
O MPF-PA ainda requer que sejam realizadas ações fiscalizatórias efetivas pela Agência Nacional de Mineração (ANM), nas áreas de concessão de Permissão de Lavra Garimpeira, para verificar a efetiva extração, ou não, do ouro nos locais indicados. “O sistema de controle ainda é praticamente manual, não existe um efetivo cruzamento de dados. É necessário que sejam criados o Sistema Brasileiro de Certificação de Reservas, o sistema informatizado de controle da cadeia de comércio do ouro, e a implantação de nota fiscal eletrônica, para que o controle não seja só para inglês ver”.
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Com base nos dados do MapBiomas, o Instituto Escolhas, em sua pesquisa “Ouro acima da lei: áreas protegidas da Amazônia em perigo”, aponta que existe outra medida de pressão sobre as áreas protegidas da Amazônia, além da comercialização de ouro: o número de processos minerários que existem para explorar o ouro, seja dentro dessas áreas ou nas proximidades. A entidade explica que toda a atividade mineral no país precisa ser autorizada e, para isso, é necessário iniciar um processo junto à ANM e seguir várias etapas até que se obtenha o direito de operar em determinada área.
Mas, apesar de a atividade mineral não ser permitida dentro das TIs e em UCs, existem 1.304 processos para ouro formalmente registrados dentro dessas áreas na Amazônia, sendo 493 nas terras indígenas e 811 em unidades de conservação - a maioria formada por requerimentos de pesquisa mineral (638) e requerimentos para lavra garimpeira (415), que configuram-se como estágios iniciais na obtenção de uma permissão para minerar. Os processos estão, principalmente, dentro dos territórios indígenas Yanomami (RR/AM), Baú (PA), Munduruku (PA) e Kayapó (PA) e dentro do Parque Nacional do Jamanxim (PA), do Parque Nacional do Rio Novo (PA), da Reserva Biológica de Maicuru (PA) e do Parque Nacional Mapinguari (AM/RO).
Quando se fala de ouro no entorno das áreas protegidas, o número de processos é ainda maior: 12.004 no total, sendo 2.577 processos ao redor das TIs, 7.186 no entorno de UCs e 2.241 ao redor de ambas. A grande maioria dos processos, segundo o Instituto, são de requerimentos de lavra garimpeira (6.898), seguidos dos requerimentos de pesquisa mineral (2.089), que estão, em sua maioria, no entorno de territórios paraenses: da TI Munduruku (PA), do Parque Nacional do Rio Novo (PA) e do Parque Nacional do Jamanxim (PA), além do Parque Nacional Mapinguari (AM/RO).
Resposta
A reportagem do Grupo Liberal enviou uma solicitação à ANM para saber o que tem sido feito para garantir a legalidade da atividade mineral em territórios protegidos da Amazônia e por que manter esse tipo de solicitação de processos minerários mesmo em locais que não podem ser explorados. Em nota, o órgão respondeu que está comprometido com a fiscalização da mineração, observando o cumprimento das determinações técnicas e legais. Todas as ações institucionais, diz a entidade, são no sentido de assegurar o pleno funcionamento do setor mineral.
“Recentemente, foram implementadas medidas que visam aprimorar a fiscalização e a transparência do setor. Entre elas, estão a criação de um painel de inteligência fiscalizatória, que permite a identificação de irregularidades e fraudes; o painel de fiscalização do ouro, que fornece informações sobre a produção e o comércio de ouro; e o sistema de primeiro adquirente, que garante maior transparência na alocação de recursos oriundos da Compensação Financeira pela Exploração Mineral”, detalhou o texto.
A ANM ainda destacou que a implementação de medidas como essas são fundamentais para garantir a transparência e a eficiência das atividades do setor; e que é um dos membros definitivos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), rede de articulação institucional brasileira para o arranjo, discussões, formulação e concretização de políticas públicas e soluções de enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro, reunindo mais 80 instituições públicas pertencentes aos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e o Ministério Público.
Fiscalização
Um dos trabalhos do MPF-PA é a realização de operações policiais com atuação em conjunto. Segundo o procurador da República Alan Mansur, as atividades buscam, principalmente, coibir práticas de pessoas físicas e jurídicas que causem maior dano social e ambiental. “O que existe é um trabalho constante. Já se tem muito material apreendido, que ainda está sendo avaliado pelos órgãos de controle, e tudo sendo levado à Justiça, para se permitir o adequado acesso à Justiça e o contraditório. A ideia é separar quem busca a prática legal e se adequar às normas de quem insiste na ilegalidade achando que buscará o caminho mais fácil”, enfatiza.
Além disso, o Ministério, de acordo com Mansur, vem buscando ajuizar diversas ações judiciais; apresenta medidas cautelares de busca e apreensão, prisões provisórias e indisponibilidade de bens, a fim de evitar a prática dos crimes, bem como a suspensão de atividades de empresas que atuem de forma ilegal; ajuíza ação civis para buscar a indenização de prejuízos causados para a sociedade e meio ambiente locais; e busca pressionar órgãos públicos a aperfeiçoarem os mecanismos de controle e fiscalização para fomentar as práticas legais.
“A incorporação ao mercado lícito de produtos oriundos da destruição da floresta deve ser asfixiada, se não acabaremos por permitir ao agente econômico que obtenha vantagem da ilegalidade, com a destruição dos ecossistemas e da violação de todos os tipos de direito. Como se fala no direito ambiental, o MPF quer evitar que haja somente internalização do lucro para as empresas e a externalização de todos os resultados negativos de sua conduta para a coletividade”, diz o procurador da República.
Garimpo ilegal em territórios protegidos da Amazônia Legal
- 98% do ouro comercializado a partir do entorno de Terras Indígenas na Amazônia têm graves indícios de ilegalidade
- 56% do ouro comercializado ao redor das Unidades de Conservação onde a mineração também não é permitida têm graves indícios de ilegalidade
10 terras indígenas mais afetadas
Terra indígena | Ouro com indícios de ilegalidade no entorno (kg)
- Areões (MT): 3.108
- Xikrin do Rio Catete (PA): 1.853
- Kayapó (PA): 1.853
- Kayabi (PA/MT): 613
- Sararé (MT): 545
- Karitiana (RO): 539
- Munduruku (PA): 494
- Vale do Guaporé (MT): 376
- Pequizal (MT): 332
- Igarapé Ribeirão (RO): 246
10 unidades de conservação mais afetadas
Unidade de conservação | Ouro com indícios de ilegalidade no entorno (kg)
- Parque Nacional do Jamanxim (PA): 9.305
- Parque Nacional Mapinguari (AM/RO): 1.929
- Parque Estadual Serra Santa Bárbara (MT): 1.231
- Parque Nacional da Amazônia (PA/AM): 1.109
- Parque Estadual Zé Bolo Flô (MT): 719
- Estação Ecológica Serra dos Três Irmãos (RO): 602
- Parque Nacional do Rio Novo (PA): 600
- Monumento Natural Morro de Santo Antônio (MT): 588
- Parque Estadual Massairo Okamura (MT): 553
- Parque Natural Municipal Vale do Esperança (MT): 406
Fonte: Pesquisa “Ouro acima da lei: áreas protegidas da Amazônia em perigo”, do Instituto Escolhas, com dados do MapBiomas e da ANM
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