Mulheres dão nova cara para arte machista e cheia de preconceito

Neste dia Internacional da Mulher, artistas paraenses deixam recado para aqueles que insistem em ecoar obras que usam a mulher de forma depreciativa

Bruna Lima
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As obras de arte refletem a passagem de um tempo e é importante que o artista esteja atento ao tempo dele. Já que a arte e o artista representam mudanças e transformações para a sociedade. Neste dia Internacional da Mulher, artistas paraenses deixam recado para aqueles que insistem em ecoar obras que usam a mulher de forma depreciativa, que objetifica, que gera competição entre o gênero feminino e entre outras questões que reforçam o machismo.

E para esta edição especial, a cantora Liège dá uma nova versão para a música “Amiga da minha Mulher” do Seu Jorge, a escritora e historiadora Marcela Gomes Fonseca escreve uma carta para o escritor Inglês de Souza e Luiza Chedieck, faz uma avaliação sobre as dificuldades e preconceitos que existem de forma estrutural na nossa sociedade e no campo do audiovisual.

A cantora Liège explica que em pleno 2022, com o acesso à internet, à informação é importante entender que o artista tem a missão de comunicar e transformar por meio da arte e de posicionamentos. “O Brasil é um país que idolatra o artista, por isso o que o artista fala tem poder, ecoa e tem influência. Por isso é importante que o artista esteja atento ao tempo dele.  Tem que representar a mudança, a transformação e ele não pode mais usar terminologias que reforcem o machismo. Isso não cabe mais”, pontua a cantora e compositora paraense.

Lège escolheu a música “Amiga da minha mulher” e deu uma nova versão. Ela explica que o resultado da escolha de novas palavras para a canção não é para desconsiderar a arte do Seu Jorge e nem o que ele retratou, mas para fazer refletir sobre essa questão.

“Eu retratei essa questão de forma bem humorada, claro, mas para passar a mensagem central de como o machismo se constrói estruturalmente na sociedade, muitas vezes a pessoa acha engraçada uma letra, mas não reflete sobre o impacto dela na realidade feminina, por exemplo nessa música”, explica a artista.

Literatura

No campo da literatura, a escritora e historiadora paraense Marcela Gomes Fonseca escolheu o livro “Contos amazônicos” do escritor Inglês de Sousa. Ela explica que se hoje escreve contos e romances históricos, que se passam em uma Amazônia de dois, três séculos atrás, é por dois motivos: pela influência do ofício de historiadora e pela influência da obra de Inglês de Sousa.

“Então, meu fascínio por escrever sobre um sertão amazônico marcado pelo processo de colonização, o que é a minha marca, advém muito dele. No entanto, por ser um escritor do século dezenove, com uma visão muito cientificista, às vezes determinista, característica do naturalismo dele, sinto que ele animaliza muito suas personagens mulheres, colocando-as ou num lugar de muito emotivas e ingênuas, ou por outro lado, de traiçoeiras e demoníacas. Essa dicotomia muito recorrente do século dezenove para descrever as mulheres amazônicas, sempre me incomodou, e sempre, digamos, me instigou a querer escrever sobre mulheres amazônicas diferente das dele, complexas e reais, a partir da minha visão, experiências e pesquisas historiográficas”, destacou a escritora.

image Foto: Márcio Nagano / O Liberal

Sobre a obra escolhida, Marcela diz que tem consciência que foi escrita em outra época, enraizada no pensamento patriarcal. No entanto, no mundo de hoje, que ainda reproduz muitos pensamentos dessa época, e um mundo que a cada dia as mulheres lutam por produzir, publicar e levar obras a lugares dignos, “antes de eu pretender mudar a obra dele, eu certamente me concentraria em escrever a minha própria obra, a partir também, das críticas e refutações que faço da obra dele”, explica a escritora.

Marcela observa que na literatura escrita por homens o machismo está presente muitas vezes na inexistência de personagens mulheres que agem de maneira complexa, profunda e real. Semelhante como acontece na música, as histórias de mulheres contadas e registradas por homens, muitas vezes ainda estão conectadas ao campo da irracionalidade, da emoção e das tramas do amor. Há também o problema que as escritoras em si passam. “Por muitos anos, os ciclos literários não só de Belém, mas dos interiores e região metropolitana, eram formados por homens na faixa de idade de 40 a 70 anos, com pensamentos, publicações e piadas machistas que reverberam, por exemplo, nas redes sociais”, pontua.

Caro Inglês de Sousa, amigo de cabeceira, escreveste sobre senhoras de olhar silencioso e sem luz guardeados por remotos sítios do inteior de Óbidos. Nos sertões d’água de Parintins, quando as meninas não eram ingênuas e panemas de amor, eram feiticeiras e demoníacas “por natureza”. Sem meios termos. Diante da polidez dos filhos brancos dos capitães e fazendeiros de Santarém que iam estudar no Maranhão, para ti, as moças da ribeira com o defeito de serem faceiras e emotivas demais, tinham como único destino assassinar por amor seus amados com chá de tajá raspado. “Eu sou de outra época!” tu me diria. “Mas não tão distante daqui”, eu rebateria. Contradigo teus “Contos Amazônicos” sedenta por conversa contigo ao pé da porta, fumo de tauari, à beira do rio Nhamundá em tarde de tempestades. Nessa ocasião te perguntaria: como seriam os teus contos se tivessem sido escritos por Maria Mucoim, a afamada feiticeira?

Quando velhas, eram solitárias viúvas da Guerra Cabana e donas de olhar sem rumo. Acabavam por ser as feiticeiras da vila. À noite conversavam com urubus, gatos pretos, murucututus e outros bichos de pio lúgubre. Veja o exemplo de Maria Mucoim, será foi culpa dela a grande cheia do rio Paranamiri que assolou o sítio do Antonio de Sousa destruíndo seus preciosos cacauais? “Tudo culpa dela”. Quem nos dera ela tivesse escrito sua própria versão, talvez diria que sim, talvez que não. Acauã! Pássaro agourento que corta a manhã, serás tu também uma mulher infeliz e amaldiçoada? Que fascínio tu tens por mulheres agourentas, Inglês! Essa dicotomia “ou ingênuas ou demoníacas” que aprisionou o destino de tantas, desde a infância me assombrou. Será existiram mulheres naquele século que existiram para além desses dois meios extremos de existir?

O conto Yriram de minha autoria, publicado em 2021 na coletânea “Trama das águas” de escritoras paraenses (Editora Monomito), é uma tentativa de escrever ficções que se passam no século XVIII e XIX pela ótica de mulheres, baseada em pesquisas de historiadoras como a paraense Eliana Ramos sobre a luta das mulheres pelo acesso às justiças durante e após a Cabanagem, e nas memórias que minha avó e outras senhoras contam sobre a época de suas avós. Desse modo, a personagem Yriram pra além de ser uma ressignificação das personagens de Inglês de Souza, e quem sabe, uma espécie de releitura da corajosa tia Rosa do conto O voluntário – descoberta feita por mim depois da escrita de Yriram –, é uma personagem criada por uma mulher, a partir de memórias, experiências e estudos de outras mulheres amazônicas.

Auidovisual

No contexto do cinema, Luiza Chedieck, que atua com o audiovisual, avalia que as mulheres costumam aparecer mais na tela do que no backstage. E, frequentemente são retratadas a partir do ponto de vista dos próprios homens.  “Ainda não temos o mesmo poder de contar nossas próprias histórias, a partir do nosso próprio ponto de vista”, destaca a jovem produtora de audiovisual.

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Ela explica que ainda há quem ache que as histórias contadas por mulheres são dramáticas demais ou infantis demais. “Ainda tem quem pense que mulheres não têm "força" suficiente pra assumir funções técnicas e manuais. Ainda tem gente com coragem de falar que uma mulher precisa "falar mais grosso" para ser ouvida. Eu queria que tudo isso já tivesse ficado para trás, mas infelizmente, ainda não. E, como a arte é um processo, os filmes que consumimos ainda são, necessariamente, um resultado e reflexo desse mercado que é estruturalmente machista”, pontua a jovem.

Mas ela destaca que existem movimentos que ajudam a mudar esse cenário. O #MeeToo, por exemplo, é um movimento popular que ajuda a lutar contra o assédio e abuso sexual na indústria cinematográfica. Além disso, editais que destinam cotas para mulheres, bem como telas que priorizam e valorizam produções feitas por mulheres são necessários.

“Acho que é fundamental tentar melhorar o mercado, bem como também se faz preciso educar o público. Individualmente, acho da maior importância buscarmos ter conhecimento sobre o que estamos consumindo. E acho importante a busca de um movimento consciente para assistirmos mais Mulheres”, acrescenta Luiza.

A trajetória de Luiza Chedieck no audiovisual sempre foi afetiva e, também, política. Ela diz que cinema é um encontro da arte, com a cultura e, também, com a indústria. “Sempre acho que é muito difícil criar e trabalhar sem se ter consciência de quem se é, e pelo que se luta”, destaca a jovem cineasta.

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