Santo Agostinho e a liberdade Océlio de Morais 16.03.21 6h30 Aurélio Agostinho de Hipona (354-430, d.C), depois Santo Agostinho, escreveu 55 obras em latim, várias delas traduzidas à língua portuguesa. Três delas (“O livre arbítrio”, “Sobre o livre arbítrio" e “Diálogos sobre a felicidade") são adotadas como paradigmas para este breve ensaio sobre a liberdade no pensamento teológico e filosófico agostiniano. A partir de 1234, como regra obrigatória, as canonizações de santos na Igreja Católica passaram a ser da exclusiva competência do Papa, decisão tomada por Gregório IX (21.03.1227 a 22.08.1241), o papa que também ficou conhecido por ser amigo pessoal de Francisco de Assis e por tê-lo canonizado em julho de 1228, dois anos após a morte deste. Antes, com Agostinho foi diferente: o povo o aclamou Santo e, em 1298, o Papa Bonifácio VIII (24.12.1294, 23.01.1295) o declarou “Doutor da Igreja”, título perpétuo por sua expressiva contribuição à construção do pensamento teológico e aos dogmas de fé do cristiniamo. Na introdução do livro “O livre arbítrio”, a editora escreve que “Santo Agostinho, na verdade, constituiu-se o defensor de nossa liberdade e da graça divina, ao mesmo tempo”. É exatamente sobre o sentido da liberdade no pensamento de Agostinho que dedico esse breve ensaio filosófico para refletir acerca da contribuição desse teólogo e filósofo ao fundamento humanista da liberdade como a conhecemos na atualidade. Minha tese para este ensaio é a seguinte: a liberdade, na teologia e filosofia agostinianas, é uma virtude especial atrelada à verdade, que é a sua fonte. A corrupção, decorrente do abuso do livre arbítrio, além da violação do princípio da moralidade, consiste em negação à liberdade como verdade ético-moral. Em suma, Agostinho aborda a questão da liberdade condicionada à verdade e atrelada ao abuso do livre arbítrio como negação da liberdade. Eu fico imaginando as condições ambientais, naquele ambiente inóspito, entre os séculos III e IV em que Agostinho viveu, para entender a sua dedicação aos estudos sobre o sentido e a natureza do livre arbítrio, a partir das perspectivas teológicas e filosóficas. Pesquisava, estudava e escrevia à luz de artoches (tochas) - um pedaço de , enrolado em sua extremidade com um pano untado com breu - instalado em seu modesto quarto nos mosteiros em que viveu. E, apesar disso, conseguiu construir fundamentos verdadeiros ao livre arbítrio. A filosofia agostiniana é atual, no que concerne ao sentido da liberdade virtuosa. Ela é utilíssima para explicar a corrupção como negação da liberdade e como violação da dignidade humana. Agostinho definia a verdade como sabedoria. Deu-lhe um conceito relativo à virtude, aquela virtude ético-moral de que se referia Aristóteles - veja a respeito o ensaio “Aristóteles e a liberdade”. E assim escreveu: “A Verdade vive na mente humana”. Com isso, interpreta-se que a verdade é um atributo do livre arbítrio. A verdade como liberdade, no pensamento de Agostinho, tem por fundamento a mensagem de Jesus, quando, em pregação aos apóstolos, disse que “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (Jo 8,31.32). Aqui, a teologia agostiniana apresenta a verdade como uma virtude teológica. E, numa interpretação filosófica, ao afirmar a verdade como fonte da liberdade, esta é designadamente uma virtude humana, por isso, à mesma pode ser atribuído o conceito ético-moral. É esse fundamento que sustenta a ideia de que a verdade (como virtude ético-moral) é fonte das experiências de liberdade. As experiências de liberdade (ou livre arbítrio) são colocadas, por Agostinho, também numa perspectiva metafísica na relação entre o Criador (Deus) e a criação (pessoa humana). Esse pensamento está expresso em “O livre arbítrio” e “Sobre o livre arbítrio”, quando assevera que “O livre-arbítrio vem de Deus”, e, assim sendo, Deus dá a liberdade à pessoa para escolher o bem (o caminho da verdade) , abominando o mal de toda natureza - mal que desvirtua e corrompe a liberdade. Mas, atenção, isso não significa, como afirmava a filosofia maniqueísta (doutrina segundo a qual a matéria é inteiramente má e o espírito integralmente bom) que, se o livre arbítrio vem de Deus, o Criador seria o responsável pela irresponsabilidade e calamidades humanas. “Se o homem peca”, dizia Agostinho, “a culpa é sua, e não de Deus”, à medida que a pessoa tem liberdade às escolhas e às ações. A ideia de que o livre arbítrio vem de Deus expressa o sentido de que as pessoas são livres às tomadas de decisões. Verdade, liberdade e felicidade vivem na mente humana como propósito de realização da pessoa. As obras referenciadas apontam a relação entre a verdade e a liberdade: na opção de usar bem (e para o bem), o livre-arbítrio é concretamente a liberdade virtuosa. Então, a liberdade é, teleologicamente, uma possibilidade à realização humana pela prática do bem. Já a eventualidade da pessoa praticar o mal é também uma condição indissociável da vontade humana. A liberdade está subordinada à verdade. Assim, por exemplo - seja ontem, seja hoje ou amanhã - as opções políticas corrompidas e que corrompem as liberdades consistem em negação à liberdade constitucional e em negação à verdade filosófica como pressuposto (ou fonte) da liberdade. As liberdades constitucionais - que na atualidade são apresentadas como normas - são garantia que se opõem à não violação nas relações sociais, seja pelo próprio indivíduo em relação a si, seja por terceiros, seja pelo Estado. Já as liberdades que se apresentam como valores e princípios dizem respeito às escolhas. São liberdades com percepções ético-morais, a partir dos valores que a sociedade adopta à sua organização social. As liberdades constitucionais e as liberdades ético-morais se relacionam (ou se conjugam) ao sentido da primazia da dignidade humana. Ambas, no entanto, são vulneráveis às possibilidades dicotômicas do livre arbítrio. Agostinho nos dá uma luz sobre o problema que hoje podemos designar como corrupção da liberdade decorrente do abuso da liberdade. Ele afirmava que a dicotomia entre a verdade (o bem) e a mentira (o mal) resulta do livre arbítrio da pessoa - liberdade de escolha dada por Deus, porque este é bom e, por isso, não reprime a pessoa. O mal moral é “"aversio a Deus”, o qual é virtuoso. O sentido do livre arbítrio individual na atualidade tem, por certa medida, aflorado o abuso do uso da liberdades e expandido o abuso de autoridade, casos em que restam tipificadas a corrupção das liberdades constitucionais e das liberdades epítoco-morais. Adotemos uma hipótese: o desvio do dinheiro público por atos de corrupção consiste em negação à liberdade como verdade ético-moral. E como se comprova essa hipótese? De modo simples: a atual Constituição Federativa do Brasil - que infelizmente só se refere uma vez à corrupção (Art. 14. § 10), quando trata da impugnação judicial do mandato parlamentar nos casos de corrupção, estabelece os princípios gerais à administração pública no Art.37. Dentre eles, destaco a moralidade, que deduz o sentido ético (verdade) na gestão da coisa pública. A Constituição, lembra-nos o filósofo Konrad Hess, possui uma força normativa, mas também possui uma autoridade moral, como afirma o constitucionalista português Luís Pedro Pereira Coutinho. A força normativa e a autoridade moral da Constituição se apresentam, como garantias das liberdades e dos direitos da pessoa humana. Desse modo, o desvio do dinheiro público por atos de corrupção, além da violação do princípio da moralidade, consiste em negação à liberdade como verdade ético-moral. A corrupção é uma má conduta decorrente do abuso do exercício do livre arbítrio. A corrupção, em sentido filosófico, é própria a negação da liberdade e uma inominável violação à condição do próprio Ser e uma violação à dignidade humana do outro. Como expressão concreta do abuso do livre, a corrupção afeta negativamente o exercício da liberdade como condição de cidadania. E no sentido de que a Constituição possui uma força normativa, significa que a sociedade se sujeita a ela e, principalmente, a autoridade a quem incumbe zelar pelo cumprimento das normas, dos valores e dos princípios da Constituição. Se a autoridade é leniente com a corrupção, significa que a sua má opção consiste no mau das liberdades constitucionais e das liberdades éticas morais. E se a pessoa do povo, mesmo consciente do abuso da liberdade pelo gestor público corrupto, ainda assim ignora tal conduta, significa que a sua escolha (livre arbítrio) decorre do mal uso da liberdade. Desse modo, são a força normativa e a autoridade moral que devem nortear a administração pública no uso do dinheiro público e devem frear o abuso da liberdade e o abuso da autoridade. Por conseguinte, pode-se afirmar que a corrupção é um mal exemplo do exercício da liberdade ou, por outro modo, a corrupção consiste no abuso das liberdades. Portanto, a corrupção como negação da verdade é, por sua própria natureza, a institucionalização da mentira. A liberdade que tem como fonte a verdade deduz, por fim, o sentido ético-moral do livre arbítrio, cujo mal uso corrompe as liberdades positivas. 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