Pessoas trans celebram vitórias no mercado de trabalho
Apesar das poucas oportunidades, elas encaram os desafios e se destacam
Aos 12 anos, Isabella Santorine já se identificava como menina, mas não conhecia o termo transexual. Foi só quando ela completou 15 anos que a palavra ganhou sentido, graças a internet, onde ela notou que várias outras garotas se sentiam exatamente como ela.
"Antes disso, eu conversava com amigos e eles falavam que eu era gay, por gostar de homens. Isso nunca me contentou, pois eu sentia que não me contemplava. Eu me olhava no espelho e sabia que era uma menina, me sentia assim", lembra a consultora de vendas.
Ela conta que quando a mãe saía, se enrolava em tecidos, improvisava vestidos e até criava bonecas com papelão. Sempre apegada às coisas relacionadas ao universo feminino, Isabella hoje trabalha em uma loja de maquiagens, após uma longa jornada de dez anos entregando currículos. Ela acredita ser uma exceção.
"O mercado de trabalho para pessoas trans é muito difícil. Poucas possuem emprego formal com direitos garantidos. E não é que pessoas trans não querem trabalhar. Mas os empresários, não querem ligar seus nomes às pessoas trans. Nos veem como marginais, desqualificadas, que não sabemos se expressar ou que vamos afastar os clientes", avalia Santorine.
A inclusão de profissionais como Isabella avançou no Brasil nos últimos anos, mas ainda avança em passos lentos. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) de 2020, 90% das pessoas trans no Brasil é obrigado a recorrer à prostituição para se sustentar, a maioria por ter sido expulsa de casa ainda muito jovem.
Isabella entende estes dados como puro preconceito. "Somos muito capacitadas em qualquer área do mercado formal. Além disso, as empresas ganham novos consumidores, pois a comunidade LGBT+ se identifica com aquela empresa. Às vezes colocam uma bandeira do arco-íris para falar de visibilidade, mas vai ver se contrata uma trans. Pode contratar gays ou lésbicas. Trans é mais difícil", lamenta.
Atualmente, Isabella é uma ativista pela inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho. Com atuação forte na Rede Trans Brasil e na Rede Paraense de Pessoas Trans, ela também tem utilizado a internet para cobrar vagas para profissionais transexuais nas empresas e divulgar oportunidades de emprego.
"Essa campanha Contrata uma pessoa trans me gerou convites do Brasil todo e nenhum daqui do Pará. Isso me frustrava muito. Até que recebi uma ligação e então fui e realizei o processo com outras cinco pessoas para a vaga. Dois dias depois me contrataram, com vários elogios", conta ela, que sonha em um dia cursar comunicação social e adoraria trabalhar com vídeos na plataforma de treinamento da empresa de maquiagem onde ela está contratada.
O site TransEmpregos, plataforma nacional de empregabilidade para pessoas trans, funciona como a ponte entre profissionais e empresas dispostas a colaborar com a inclusão social e diversidade a partir do próprio quadro de funcionários. No Pará, há apenas sete vagas anunciadas no site.
O cerne desta questão na opinião de Isabella é que ninguém está acostumado a ver uma transexual na frente de uma loja. "Sempre que avistam uma, é numa esquina. De noite. Quando o cliente chega, em alguns casos, sentimos a repulsa de alguns. Mas estamos qualificadas para assumir postos de trabalho e vamos trabalhar. Não dá para caminhar para trás", determina.
Ruby Gomes seguiu um caminho diferente. Ela sonhava em ser professora de língua portuguesa, pois é apaixonada pela literatura brasileira e portuguesa. Ela estava decidida a estudar as obras de Machado de Assis e Eça de Queiroz no curso superior. A vida, porém, a direcionou para um outro propósito, bem mais próximo de Gustave Flaubert.
"Meu primeiro contato com a língua francesa foi já na faculdade. Eu entrei no curso meio que por acidente na UFPA, pois pensava que era dupla habilitação. Acabou que eu já estava lá mesmo e fiz a licenciatura em língua francesa e graças a Deus consegui me formar. Uma amiga minha da faculdade perguntou se eu queria dar aula. Fiz a entrevista e passei", conta.
Antes da transição, Ruby trabalhou em uma empresa de consórcios e saiu por não aguentar mais se vestir com trajes masculinos de segunda à sexta e com os femininos sábado e domingo. Ela se sentia respeitada, mas entendida como um homem gay, o que ela não é.
"Saí do emprego para poder vestir as roupas que eu gosto. Nunca passei por preconceito lá, mas quando os seus documentos não batem com o seu interior, isso pesa. Colocar calça e camisa social todo dia vendo as outras meninas de vestido era difícil. Isso me incomodava", rememora a professora.
Com a ajuda de um padre, Ruby descobriu em uma palestra no Dia Internacional da Mulher que ela poderia mudar no cartório a certidão, além de entender o passo a passo da readequação dos documentos dela.
"Achei genial. Sem vídeo, sem dúvida, sem laudo psicológico. A partir de então, pude dizer por mim mesmo, para toda a sociedade, que eu era uma mulher trans. Isso mudou minha vida. Estou empregada hoje como uma mulher trans e sei que muitas vão conquistar o mesmo", afirma.
Ruby entrou em 2018 na "école" de idiomas onde é professora de francês. Ela não mede elogios para a empresa. Para ela, o ambiente de trabalho é perfeito, desde a coordenação até a direção. O motivo: ela é plenamente tratada como a mulher que é.
"Para todos os alunos, sou a professora Ruby. Quando chega uma turma nova, dá aquele medo. Sempre foco em conquistar a confiança do aluno com a minha metodologia, com meu modo de dar aula, com minha postura. Deixo meu lado profissional falar mais alto. Nunca passei por preconceito em turma algo e muito menos pelo corpo docente", comemora ela.
Aceitação deve começar em casa
Contar para os pais que você não é o que eles gostariam que você fosse é um desafio e tanto. A tarefa fica ainda mais difícil para pessoas trans. Quem está acompanhando a reprise de "A Força do Querer", na TV Globo, vê a dificuldade de Ivan (Carol Duarte) em abrir o jogo para a família sobre a sua transexualidade.
"A minha mãe é muito noveleira. Quando passou a primeira vez, ela chorava muito. Estava na fase de aceitação ainda. Na minha frente, me chamava de Isabella. Pelas costas, me chamava de ele, ele, ele. Toda cena ela me ligava dizendo 'Tá vendo como a gente sofre? Vocês não pensam no coração da mãe de vocês', se referindo ao sofrimento da Joyce (Maria Fernanda Cândido). Eu dizia que, na verdade, era o contrário", lembra Isabella.
Quando Isabella falou com a mãe pela primeira vez sobre o tema, perguntou o que acharia se ela colocasse uma prótese de silicone. Ouviu como resposta da mãe uma promessa de que ela não entraria mais em casa. Aos 17, não suportava mais a dor do segredo e inventou que era um menino gay, mesmo sabendo que era mulher trans e heterossexual.
"Pensei que seria mais fácil para ela, pois pelo menos eu continuaria um menino. Ela me bateu muito, me chamou de muitas coisas e ficou sem falar comigo.
Disse então que não queria mais viver aquilo e saí de casa. Dormi na Praça da República sem nada, só com a bolsa que eu peguei", conta. Hoje as coisas estão bem melhores e ela ganha até roupas femininas de presente da própria mãe.
Ruby relata que gostava de dançar em festas girando como se estivesse com uma saia, por causa de uma personagem cigana da novela "Explode Coração". A mãe e a irmã sempre perceberam. Até hoje a professora acredita que a relação com a família é um pouco difícil, mas ela tenta não dar ligar muito pois se sente uma mulher feliz e realizada profissionalmente.
"Alguns aceitam, outros não. Mas é uma luta diária. Alguns me chamam pelo nome masculino ainda, acreditam? Mas porque me viram nascer de um jeito e estavam acostumados àquilo. Mas me respeitam porque sempre estudei e trabalhei, então sabem que faço por onde. Acho que eu ganho mais respeito do que aceitação", reflete.
Educação pela pedra
Isabella acredita que faz parte do dever dela ajudar as pessoas, especialmente as heterossexuais e cisgênero, a tratarem melhor as pessoas trans, seja em uma entrevista de emprego ou no dia a dia. Ela acredita que o conhecimento sempre é libertador e ouvir pessoas trans sobre o tema pode ajudar.
"As pessoas perguntam dos nossos órgãos genitais, por exemplo. Se já fizemos cirurgias. Eu respondo que é uma particularidade minha. Não saímos por aí perguntando das partes íntimas das pessoas. É invasivo", diz ela, ao lembrar de outro incômodo frequente: a pergunta "Qual o seu nome de verdade?".
Ser chamada de homem também é um problema grave. Além disso, há os que chamam os homens que se relacionam com mulheres trans de gays. "O homem que se relaciona com trans é heterossexual, está atraído por uma imagem feminina. Falam isso para negar nossa identidade de gênero como se fôssemos homens fantasiados", avalia.
Ela recomenda a série "Pose", da dupla Ryan Murphy e Brad Falchuk, que também concebeu American Crime Story: O povo contra O.J. Simpson, Nip/Tuck e Glee. A produção com duas temporadas disponíveis na Netflix conta a história das transexuais nos Estados Unidos dos ano 90, segregadas em guetos e buscando empregos.
"Elas eram vistas como homens que se vestiam de mulher. Essa representatividade na série me encantou. Ela debate temas que ainda são considerados tabus, como a pandemia de HIV. E também fala sobre a união delas diante de tantas dores e mazelas impostas pela sociedade", indica.
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