Calouros incríveis: histórias de aprovados na UFPA resumem o poder transformador da educação

Novos estudantes da maior universidade do Norte falam de desafios impostos pela desigualdade ao acesso às universidades no Brasil: suas vitórias acendem esperanças de que tudo pode mudar

Victor Furtado

Histórias de superação são inspiradoras. Fato. Mas não é porque alguém venceu dificuldades, que poderiam ser incapacitantes para algumas pessoas, que isso significa algo fácil. Ou que isso vale para todo mundo.

Joel Silva e Luanne Silva são pessoas que representam o quanto a educação transforma. Contra vários obstáculos pessoais, eles agora são os mais novos calouros da Universidade Federal do Pará (UFPA), entre os 1,7 mil nomes divulgados na quarta (14). Ele, catador e filho de catadores de recicláveis. Ela, mãe, quilombola e ribeirinha que mora onde só se chega pelas águas.

Mãe e quilombola quer sustentabilidade no furo do Maracujá


Luanne tem 22 anos. É a mãe do Mateus, de 5 anos. O nome do pequeno lembra um dos irmãos da caloura de Desenvolvimento Rural, que já se foi. Quando o filho nasceu, ela interrompeu os estudos para cuidar dele e da casa. Atualmente, o outro irmão que praticamente sustenta o lar sozinho.

A família mora no Furo do Maracujá, região das ilhas de Belém. Recentemente, ela começou a fazer trançados em cabelos e uma pequena renda começou a entrar. Parte cultural que adquiriu quando se autorreconheceu como mulher negra, quilombola e ribeirinha.

Para estudar, Luanne pegava um barco e então ônibus para o fazer o cursinho popular da Rede Emancipa, na própria UFPA. Precisava se concentrar e dedicar mais tempo lá, já que quando estava em casa, precisava ajudar nas tarefas diárias e cuidar do Mateus. Qualquer tempinho livre, à noite, usava para ler e estudar mais um pouco.

image Estudante das Ilhas de Belém, Luanne ia de barco e ônibus para o cursinho popular (Thiago Gomes)

O acesso à internet é ruim. Os celulares são posicionados em pequenas armações para o sinal melhorar e mensagens chegarem. Saneamento é algo inexistente. Faz menos de cinco anos que a área do Maracujá foi reconhecida como território quilombola.

"Terei de arranjar um notebook e melhorar a internet, já que as aulas vão começar remotas neste ano letivo. Foi difícil. E conheço algumas pessoas que têm ainda mais dificuldades e faziam o cursinho do Emancipa, como morar ainda mais longe e nem ter tempo de descansar. Todas as pessoas daqui são bem humildes. Muitas pessoas da minha família mesmo desistiram. Eu tive vários exemplos que me inspiraram. E uma pessoa ainda disse que eu era uma inspiração para ela, que ficou muito feliz por mim. Espero que ela consiga a aprovação dela, pois estou torcendo. Muita gente ficou feliz e nem consegui responder a todo mundo ainda", sorri Luanne.

"Agora terei de arranjar um notebook e melhorar a internet, já que as aulas vão começar remotas neste ano letivo. Foi difícil. Muitas pessoas da minha família mesmo desistiram. Eu tive vários exemplos que me inspiraram", planeja Luanne Cardoso, moradora do furo do Maracujá

image Novos desafios já despontam, pondera a caloura (Thiago Gomes)

Na UFPA, ela não quer apenas mudar a própria vida. Ela quer ajudar na transformação da comunidade onde ela mora, melhorando a vida de todos. E assim, quem sabe, reduzindo as desigualdades que hoje afastam familiares, amigos e vizinhos do sonho do ensino superior.

"Quando alguém daqui passa é aprovado numa universidade, costuma ir embora. Eu quero ficar aqui. O curso de Desenvolvimento Rural possibilita essas transformações de uma maneira ecológica e acredito que isso vai melhorar muito a vida dessas pessoas. Educação transforma! É difícil ver ribeirinhos e quilombolas entrarem na UFPA, mas temos cada vez mais. Há muitos obstáculos e espero que ninguém desista de seus sonhos", pondera a caloura.

"Quando alguém daqui passa é aprovado numa universidade, costuma ir embora. Eu quero ficar aqui. O curso de Desenvolvimento Rural possibilita transformações. Educação transforma! É difícil ver ribeirinhos e quilombolas entrarem na UFPA, mas temos cada vez mais. Há muitos obstáculos e espero que ninguém desista de seus sonhos", diz Luanne

image Caloura quer ficar no Furo do Maracujá (Thiago Gomes)

Na casa de catadores repleta de livros, um calouro de Medicina


Joel é filho de Jonas de Jesus e Dulcilene Barros. Os três trabalham como catadores de materiais recicláveis na Concaves, uma das cooperativas mais ativas e reconhecidas, em Belém, na política de coleta seletiva. A família mora no bairro da Terra Firme, uma área marcada pela pobreza histórica.

Na pequena casa deles, há algo de muito rico: esperança, amor pelo conhecimento e leitura. O imóvel tem livros por toda parte. Livros que foram pegos do lixo e outros que foram doados. Páginas impressas que ajudaram a escrever novas páginas da vida do jovem de 22 anos.

O jovem Joel já havia começado a cursar Direito. Porém, não se adaptou ao curso. Os pais ficaram preocupados em ele desistir de uma provável boa carreira como advogado, jurista ou juiz. Só que a vontade do rapaz era Medicina. Passou a trabalhar apenas meio período e começou um cursinho.

image Calouro da Terra Firme já era estudante de Direito: mudança de rumo (Thiago Gomes)

Veio a pandemia e as aulas a distância não estavam rendendo tão bem com a internet instável e falta de equipamentos. As contas apertaram e ele voltou a trabalhar período completo, deixando umas horas do final do dia para se dedicar aos estudos. A vitória alegrou muita gente e a história viralizou por todo o país.

"Me considero uma exceção. Muitos dos meus amigos não tiveram a mesma oportunidade de seguir em frente. Estudei no NPI, a escola de aplicação da UFPA, onde tive uma base muito boa. Até me considero privilegiado porque, no trabalho, eu tive acesso a livros e sempre li muito. Espero que a viralização ajude a chamar a atenção do poder público para os bairros periféricos. Fica o apelo por mais políticas públicas para essas áreas. Eu parabenizo as iniciativas populares de educação, que ajudam a transformar. A realidade dos bairros periféricos é muito mais difícil mesmo", relata Joel.

"Me considero exceção. Muitos dos meus amigos não tiveram a mesma oportunidade de seguir em frente. Estudei no NPI, onde tive uma base muito boa. Até me considero privilegiado porque, no trabalho, eu tive acesso a livros e sempre li muito", conta Joel Silva, calouro de Medicina 

image Joel Silva, de 22 anos: livros tirados também do trabalho diário de coleta seletiva (Thiago Gomes)

O calouro de Medicina termina agradecendo aos pais, que também o incentivaram sempre e ensinaram a não se entregar. Jonas, o pai dele, conseguiu se formar em Gestão Ambiental, mas já "depois de velho", como ele mesmo diz.

"Vejo a medicina como uma forma de transformar a realidade. A educação transforma. Eu vinha pensando em me dedicar à Geriatria, já que as pessoas estão envelhecendo e não conseguem encontrar esses profissionais específicos facilmente. Mas acho que vou esperar o curso se desenrolar. Espero muito que essa história reforce a necessidade de mudanças em políticas públicas. Minha inspiração são meus pais. Eles não se abalam. Depois de comemorar a aprovação, fomos todos trabalhar normalmente", diz Joel.

"Vejo a medicina como uma forma de transformar a realidade. A educação transforma. É necessário fazer mudanças em políticas públicas. Minha inspiração são meus pais. Eles não se abalam. Depois de comemorar a aprovação, fomos todos trabalhar normalmente", avalia Joel

image Joel e os pais: educação e transformação social (Thiago Gomes)

 

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