Dia da Mulher: na Amazônia, benzedeiras são guardiãs do saber de cura tradicional

Em Belém, Jesiane Lima exerce a arte do benzimento, usa ervas naturais e atende principalmente mulheres e crianças

Dilson Pimentel e Lucas Quirino

A arte do benzimento é milenar. E as benzedeiras são guardiãs do saber de cura tradicional da Amazônia. Morando em Belém, Jesiane Lima é benzedeira e sacerdotisa de umbanda. Ela é a terceira geração de benzedeiras da famílias. “A minha bisavó era benzedeira, a minha avó também. Essa arte do benzimento vem para pessoas, mas também para animais, para todos os seres que necessitam do rezo”, contou.

Quem procura a arte do rezo é quem necessita de uma oração, de uma cura. Não somente para a cura do corpo físico, mas do corpo mental e do corpo espiritual. “Todos nós somos feitos de um corpo físico e de um corpo energético. Então, através do rezo e da oração, que é uma cultura milenar, ela age no nosso corpo energético, trazendo a cura e o bem-estar”, afirmou.

Jesiane atende homens, mulheres, jovens, adultos, crianças. Também reza em pessoas com deficiência. A duração de cada atendimento depende da necessidade da pessoa. “Cada benzeneira sente a necessidade do rezo e aí sente a necessidade do qual precisa aquele tempo, qual tempo e a necessidade do rezo que aquele ser precisa”, explicou.

E, também por essa razão, hão há como definir quantas vezes a pessoa precisa desse benzimento. “Isso depende muito da necessidade de cada um. Tem pessoas que apenas uma vez vindo para um rezo, ela se sente bem e realmente ela resolve a sua situação no qual ela está passando”, afirmou.

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Preconceito ronda a arte do benzimento

A arte do benzimento é milenar. “Vem desde a era cristã. Desde o tempo em que Jesus Cristo veio à terra ele já desenvolvia essa arte do rezo. Ele desenvolveu a arte da cura através do rezo, através da oração, através do benzimento”, contou.

No entanto, ainda há muito preconceito sobre esse benzimento. “O preconceito existe por falta de entendimento. Por falta das pessoas não entenderem, não saberem o que significa. E, quando você não entende, não estuda e não procura saber o que é, você existe um pré-conceito do que você não sabe o que significa e o que é”, explicou. “É uma arte simplesmente da cura através da oração, das ervas e da força, da energia divina de Deus”.

Nesse benzimento são usadas ervas, que agem no campo vital e também têm energia, principalmente manjericão, arruda, vassourinha. As ervas limpam o que está atingindo o “campo físico e mental” das pessoas.

Também tem também as ervas usadas no banho da pessoa como, por exemplo, alecrim, alfazema. As pessoas que são atendidas não pagam nada. Mas podem doar material usado nesse atendimento – velas, por exemplo. Esse benzimento tem elementos do espiritismo, do catolicismo e da umbanda. “São rituais de cura, não tem ritual de sacríficio”, afirmou. Esse atendimento ocorre uma vez por semana, de 19h30 até 24 horas. Em média, são atendidas a 90 pessoas. A equipe que atende é formada por 15 pessoas.

image Momento em que Jesiane Lima está benzendo uma menina de 12 anos (Ivan Duarte/O Liberal)

"Sempre teve benzedeira na nossa família", diz empregada doméstica

A empregada doméstica Ruth Rodrigues, 39 anos, levou a filha, Ângela, 10, para ser benzida por Jesiane. Amanda é uma criança especial. Ruth falou sobre o benzimento. “Olha, é muito bom, até porque a neném é benzida desde pequenininha. Para dizer a verdade, isso já vem de família”, contou.

“Desde pequenininha a gente aprende aquele tal de quebranto, e sempre teve uma benzedeira tanto na nossa família quanto nos vizinhos”, disse. “Vem de muito tempo, desde lá dos nossos avós. A nossa avó era neta de índio. Então essa prática da reza, da benção, já vem nos acompanhando há muito tempo”, contou.

Ruth também disse que sua filha melhora após ser benzida. “Sim, ela melhora sim. Já teve pessoas que me falaram que isso era inútil. Já aconteceu de a gente levar (a Ângela) no médico. Ele passou aqueles remédios, mas nada resolvia. E a gente levou para benzer e resolveu", contou.

Benzedeiras se preocupam com bem-estar da comunidade, diz professor

O professor Leonardo Silveira Santos desenvolve pesquisa sobre benzedeiras e está cursando doutorado. Ele disse que as benzedeiras expressam ritos locais, utilizando palavras mágicas ou milagreiras, plantas regionais e uma variedade de métodos. O contexto amazônico se destaca pela presença de plantas típicas da região.” A dinâmica das benzeções é influenciada pela interação com o meio ambiente, mudanças sociais e a individualidade dos praticantes”, explicou.

As benzedeiras frequentemente são mulheres idosas, com destaque para o papel central que desempenham nas comunidades e nas famílias. “Essas mulheres, muitas vezes em situações vulneráveis, praticam a benzeção sem cobrar, seguindo um código de conduta interno baseado na solidariedade religiosa e na preocupação com o bem-estar da comunidade”, afirmou.

Ele fala sobre a marginalização dessas práticas em ambientes urbanos, onde as benzedeiras são cada vez mais afastadas do centro, e destaca a importância de preservar esses saberes tradicionais e reconhecer o papel vital que desempenham nas comunidades amazônicas.

"A benzeção e a religiosidade estão intimamente ligadas, pois a prática da benzeção é um ritual de intercessão, onde a benzedeira atua como mediadora entre a pessoa e entidades sagradas. A troca de energias durante a benzeção é intensa, levando a benzedeira a se sentir estafada após o ritual”, disse. Ainda segundo ele, a crença na eficácia da benzeção tanto por parte da benzedeira, da pessoa benzida e da comunidade é essencial para que o ritual funcione. “A fé é considerada o elemento curativo principal”, observou Leonardo Silveira.

A interação entre práticas locais, especialmente aquelas relacionadas ao uso de fitoterápicos, e o sistema de saúde mais convencional, como o SUS (Sistema Único de Saúde). É interessante notar como as abordagens tradicionais, como o uso de chás e plantas medicinais, estão integradas a rituais e elementos religiosos nas comunidades locais.

image Jesiane Lima, Ruth Rodrigues e a filha desta, Ângela, de 10 anos (Ivan Duarte/O Liberal)

Há necessidade de diálogo entre a medicina tradicional e a medicina acadêmica moderna

Leonardo Silveira disse que há necessidade de diálogo entre a medicina tradicional, representada pelas benzedeiras e suas práticas de benzeção, e a medicina acadêmica moderna. A benzeção faz parte de um conjunto de práticas de cura e proteção, sendo valorizada em comunidades locais. “No entanto, há resistência por parte da sociedade urbana em relação a essas práticas, resultando em termos pejorativos como 'bruxas' e 'macumbeiras"" disse..

A distinção entre benzedeiras, que buscam fazer o bem, e feiticeiras é explicada, destacando a forte presença da benzeção em regiões afastadas. Apesar disso, afirmou, as benzedeiras enfrentam resistência em buscar atendimento em unidades de saúde convencionais, devido à marginalização de seus conhecimentos. “A falta de compreensão e incorporação das práticas de benzeção pela sociedade atual é ressaltada, especialmente em áreas urbanas menos biodiversas, tanto em termos de natureza quanto de aceitação cultural”, destacou.

Ele observou o abandono e invisibilidade das benzedeiras durante caminhadas por diversas regiões, como a ilha do Combu, Vila Franca, ilha de Santarém, baixo do Tocantins, ilha de Itacoá e Bonifácio em Ajuruteua. Destaca que essas mulheres, que costumavam ser o principal suporte de saúde nas localidades, estão sendo negligenciadas pela sociedade contemporânea, que agora busca maior praticidade e rapidez nos cuidados de saúde.

A mudança na lógica de trabalho, o encurtamento do tempo e a pressão das novas atividades econômicas, como pesca industrial e turismo, estão contribuindo para a marginalização das benzedeiras. A praticidade dos métodos convencionais de saúde, como o uso de comprimidos, contrasta com a ritualidade e atenção especial proporcionadas pelas benzedeiras, o que dificulta a sua preservação e reconhecimento.

A nova lógica de trabalho, os movimentos religiosos emergentes e, principalmente, a mudança no ambiente, como a derrubada da mata nativa para plantações de açaí, impactam negativamente as práticas tradicionais dessas mulheres.

A massificação desses espaços resulta na diminuição da biodiversidade, afetando a disponibilidade de plantas consideradas essenciais para a benzeção. Isso contribui para a solidão das benzedeiras em ilhas e localidades, mas em situações de urgência, elas assumem a liderança e mostram sua importância para as comunidades.

Apesar das mudanças , as benzedeiras continuam desempenhando um papel central

Apesar das mudanças e desafios, as benzedeiras continuam desempenhando um papel central e detendo saberes orais valiosos. Leonardo Silveira disse que essa sabedoria oral, transmitida de geração em geração, é destacada como uma expressão cultural fundamental na Amazônia. "A perda de uma benzedeira é vista como uma diminuição não apenas de uma prática de cura, mas também de uma rica expressão cultural", afirmou.

A necessidade de incentivar e valorizar essas mulheres, para que não se tornem marginais ou difíceis de encontrar, é ressaltada como crucial tanto para as comunidades locais quanto para Belém. "O reconhecimento e apoio a essas práticas tradicionais são considerados fundamentais para preservar a riqueza cultural e os saberes da região amazônica", completou.

 

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