2020 encerra cheio de esperança para refugiados aprovados na UFPA

Indígenas venezuelanos da etnia Warao passaram no vestibular e compartilham significado desta conquista em um ano tão difícil

Eduardo Laviano

A maioria dos indígenas Warao refugiados em Belém do Pará já está bem acostumada com diversos hábitos da cultura brasileira. Mas uma tradição pegou eles de supresa esta semana: raspar o cabelo quando é aprovado no vestibular. “Acho que ficou bom neles, mas preferi não cortar. Quem sabe na próxima”, disse Ildebrando Moraleda, em meio a um riso tímido. Ele foi o único venezuelano aprovado na Universidade Federal do Pará (UFPA) que não topou entrar na brincadeira, mas, assim como seus outros cinco amigos aprovados, estava muito feliz e aproveitou o clima de festa no abrigo que a Prefeitura de Belém mantém no bairro do Tapaña, com direito a muita música, trigo e ovos. Todos conquistaram uma vaga na UFPA por meio do Processo Seletivo Especial 2020-6 da instituição, que ofertou 24 vagas para imigrantes, refugiados, asilados, apátridas e vítimas de tráfico de pessoas.

Desde 2014, os indígenas da etnia Warao, que habitam o delta do rio Orinoco no nordeste venezuelano, estão vivendo uma diáspora. Em seis anos, quatro mil deles entraram no Brasil, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Uma delas, Maria Virginia Morales, conta que a aprovação na UFPA a fez esquecer por um momento todas as dificuldades que enfrentou desde que abandonou o país vizinho. “Foi um momento de muita alegria ler meu nome no listão porque estou realizando um sonho. Infelizmente eu não teria a oportunidade de realizá-lo na Venezuela. Estar aqui e receber uma oportunidade como essa é um recomeço para a minha história”, conta ela, que foi aprovada em pedagogia.

image Os cinco amigos aprovados moram no abrigo que a Prefeitura de Belém mantém no bairro do Tapaña (Ivan Duarte / O Liberal)

A presença da família Morales na maior universidade do Brasil não para por aí: dois irmãos de Maria Virginia também passaram no vestibular: Francelino e Eliomar. “Nossa trajetória como emigrantes não tem sido fácil, mas desde que cheguei em Belém e consegui me estabelecer, cultivei esse sonho de estudar mais. Fiz o ensino médio na Venezuela e agora, graças ao apoio que tive no abrigo durante o processo seletivo, continuarei meus estudos”, diz Francelino, ao lembrar que sem estudos não se chega a lugar nenhum.

José Albarran Lopez trabalha como intérprete dos 166 indígenas Warao que vivem no abrigo. Ele, que é de Caracas, foi aprovado no processo seletivo e cursará direito na UFPA a partir do ano que vem. Na opinião dele, esses resultados não seriam possíveis sem o trabalho conjunto desenvolvido pela Fundação Papa João Paulo II, pela ONG Aldeias Infantis e pelos vários voluntários sensíveis à causa. “Desde que soubemos desse processo seletivo, sabíamos não dava para deixar a oportunidade passar. Corremos para juntar a documentação, prepará-los para a entrevista. Organizamos uma pasta para cada um. Foi um trabalho árduo, pois para eles tudo é muito novo. Mas eles conquistaram isso pela própria esperança e determinação e estamos todos muito felizes”, celebra ele, em português perfeito.

Antes de chegar à capital paraense, muitos Warao passaram por outras cidades até se sentirem devidamente acolhidos e respeitados. Roisdael Calderon foi um deles. Aos 37 anos, foi aprovado em Pedagogia e está animado para iniciar os estudos. “Se dedicar aos estudos e ao trabalho aqui no Brasil precisa ser parte da luta dos Warao para que estejamos incluídos na sociedade. Não podemos, por toda a vida, ficar nas ruas, pedindo ajuda. Se for assim, nossa jornada não valerá a pena. Passamos por Boa Vista, Manaus, Santarém, vários lugares. Mas é aqui em Belém que vamos reconstruir a nossa nossa história”, prevê ele, que também estava feliz pela aprovação da esposa, Maria.

image Os indígenas Warao participaram do Processo Seletivo Especial 2020-6 da UFPA, que ofertou 24 vagas para imigrantes, refugiados, asilados, apátridas e vítimas de tráfico de pessoas (Ivan Duarte / O Liberal)

Calderón acredita que a conquista é muito mais do que uma vitória individual, porque pode servir de inspiração para outros refugiados em Belém. “Muitos de nós aqui queremos estudar. Alguns, tristemente, não foram aprovados, mas no próximo ano tentarão de novo. Seguiremos lutando, nos fortalecendo”, afirma. Ele também espera que a entrada em uma instituição de ensino superior ajude a comunidade dos refugiados a superar preconceitos. “É a prova viva de que somos tão capazes como qualquer um. Sabemos que não serão quatro anos fáceis, mas estar na universidade junto aos brasileiros nos concede um papel de protagonismo que até então não tínhamos”, avalia.

Os Warao são o segundo maior grupo étnico do país, com mais de 48 mil indígenas distribuídos nos estados de Monagas, Sucre e Delta Amacuro. O nome da etnia tem tudo a ver com Belém do Pará, já que significa “povo do barco”, apesar de muitos deles terem caminhado a pé por semanas para chegar aqui, fugindo do caos no país vizinho. Perguntados se sonham em voltar para a Venezuela, a resposta é unânime: não. Maria Virgínia conta que os relatos de miséria, sofrimento e perseguição de familiares indígenas a fazem ter certeza que o país que ela ama já não é mais seguro pra eles. “Há pessoas da nossa aldeia que morreram de fome. Muitas nem têm roupa, sandália. Sabemos que os governos mudam, que a realidade do nosso povo pode mudar. Mas por agora, é inimaginável”, lamenta a venezuelana.

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