Laqueadura: mulheres ainda dependem do consentimento do marido

Projeto de Lei nº 4.515/20 busca acabar com a exigência de consentimento expresso de ambos os cônjuges para a esterilização de um deles

Natália Mello
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Data de 1996 a Lei de Planejamento Familiar cujo dispositivo determina a obrigatoriedade de consentimento do cônjuge (seja o marido ou a esposa) para a realização de procedimento de esterilização. Segundo a defensora pública do Daiane Lima dos Santos, hoje, 25 anos depois, no Brasil, que antes se valia da regulamentação – Art. 10, Parágrafo 5º – como uma espécie de método contraceptivo para controle demográfico, a normativa representa mais um mecanismo de controle dos corpos das mulheres, mesmo que preveja a autorização da mulher para a vasectomia do marido e do homem para a laqueadura da esposa.

A titular do Núcleo de Prevenção e Enfrentamento à Violência de Gênero (Nugen) do órgão denomina a atmosfera onde se configura esse campo legal de “igualdade falsa”, já que os corpos controlados, majoritariamente, são os das mulheres. E quem corrobora com essa afirmativa é T.F, de 38 anos, que prefere não se identificar por estar aguardando a realização de uma cirurgia do filho de 8 anos junto ao plano. Ela conta que o cônjuge conseguiu realizar esterilização sem muita burocracia. Entretanto, ela, a primeira interessada do casal no procedimento, ouviu da administração da operadora de saúde que só conseguirá fazer a laqueadura sob determinação da Justiça, já que é casada.

“Meu marido fez a vasectomia porque eu não consegui fazer a laqueadura. É um procedimento mais simples, que autorizei por documento e ele fez muito rápido. Em questão de uma semana estava fazendo a cirurgia. E eu tenho que ir para a Justiça”, afirmou. “Tentei fazer durante o parto, mas fui informada que não poderia. Aí tentei seis anos depois de ter meu filho (dois anos atrás) e botaram muita dificuldade e disseram que só poderia fazer se eu fosse separada. Porque se meu marido fez, eu não posso fazer. É uma postura machista, a gente não tem direito de escolher o que a gente quer fazer com o nosso próprio corpo”.

T.F conta ainda que o seu médico ratificou a frequência com que isso acontece. “Me disse: ‘boa sorte, já tive várias pacientes que aconteceram isso, que só estão conseguindo via judicial’. E me disse que infelizmente não conseguiria nada na instância administrativa, e eu ouvi, mesmo, quando procurei o plano de novo: ‘se ele já fez, você não precisa fazer’. E imagina, alguém dizer pra você o que você deve fazer com o seu corpo. Deveria ser um direito que eu tenho independente de ser casada. Eu deveria ter o direito de optar por não ter mais filhos”, finalizou, afirmando que não desistiu de pleitear na Justiça o direito de fazer laqueadura com a cobertura do plano.

De acordo com a defensora Daiane, essa proibição já pode ser configurada violência contra a mulher pelo impedimento de uso de método contraceptivo, prevista no Parágrafo III do Art. 7º, Capítulo II da Lei Maria da Penha (nº 11.340), de 7 de agosto de 2006. “É uma política ilegal, imoral e contrária a política pública de enfrentamento da violência contra a mulher. As mulheres não podem fazer laqueadura sem o consentimento do marido, mas um número importante: hoje nós temos 5,5 milhões de crianças sem registro e mais de 100 mil processos de execução de alimentos no Brasil. Temos um enorme índice de abandono afetivo e material, mas eu não posso dar escolha para a mulher se ela quer ter filho ou não”, questiona.

Daiane pontua ainda alguns dados: segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de domicílios brasileiros comandados por mulheres saltou de 25% para 45% em 2018. No site da instituição, dados revelaram que, em 1995, 23% dos domicílios tinham mulheres como pessoas de referência. Vinte anos depois, esse número chegou a 40%. Ou seja, os lares brasileiros, cada vez mais, estão sendo chefiados por mulheres.

“A mulher está bancando essa casa, esse lar, e não pode escolher sozinha se pode ou não ter mais um filho. Essa autonomia de escolha volta a ser poder do homem, assim como o trabalho da mulher já esteve no poder dele. Outra coisa importante de se dizer é com relação aos modelos de família. O modelo mononuclear de família não compactua com a realidade. Não precisamos, por exemplo, da procriação para ser família”, relata.

A defensora citou à reportagem um caso registrado no órgão recentemente, um tanto quanto incoerente: uma venezuelana que reside em Belém, após ser atacada pelo companheiro, que a jogou em cima do motor de um barco – ele já responde por tentativa de feminicídio e foi condenado por lesão corporal contra a vítima – precisaria do consentimento deste cônjuge para fazer a laqueadura.

“Ela tentou pelo SUS e não conseguiu. E eu tenho que pedir para ele? Eu nunca vou pedir autorização para esse homem. É pressuposto de liberdade e igualdade que ela possa decidir. Ele tentou matá-la, por ele, ela nem estaria viva. Esse é o tipo de caso que precisamos de autorização judicial para conseguir. Se não pelo marido, teríamos que pedir para o pai, que está lá na Venezuela. Uma mulher de 28 anos. Imagina”, concluiu.

A Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos do Brasil (Anadep), em parceria com o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda em 2014, com uma ação de inconstitucionalidade (Adin 5.097) contra o dispositivo da Lei 9.263/96,  a "Lei do Planejamento Familiar" que, dentre os requisitos para a realização da esterilização voluntária, exige, "na vigência da sociedade  conjugal", consentimento expresso de ambos os cônjuges. 

A tese da entidade dos defensores públicos - representada pelos advogados Igor Tamasauskas e Pierpaolo Bottini - é que "cabe à mulher, e tão somente a ela, decidir o que fará com seu próprio corpo, bem como fazer todas as opções relativas ao planejamento reprodutivo de forma livre e incondicionada". Segundo Daiane, a ação está no calendário para ser julgada ainda este ano.

O Ministério da Saúde informou que, nos últimos 24 anos, já foram realizadas mais de 1,1 milhão de laqueaduras e, de 1999 a 2021, 714.484 mil vasectomias parcial ou completa.

Projeto de Lei nº 4.515/2020

Outra possibilidade de alteração do dispositivo é a partir do Projeto de Lei nº 4.515/2020, de autoria do deputado Denis Bezerra (PSB-CE), que acaba com a exigência de consentimento expresso de ambos os cônjuges para a esterilização de um deles. Propõe a redução de 25 para 20 anos a idade mínima para que brasileiros – homens e mulheres – optem pela esterilização voluntária, e acaba com a exigência atual de o interessado ter pelo menos dois filhos vivos para tomar a decisão, caso não tenha a idade mínima.

“Não se concebe mais que a decisão sobre o próprio corpo tenha de ser submetida ao aval de outra pessoa, ainda que seja o cônjuge. Por outro lado, critérios como número de filhos ou 25 anos não mais se sustentam. Uma vez que haja o aconselhamento devido e a decisão consciente, não há motivo para impor essas barreiras”, defende Denis Bezerra, e revela que a iniciativa foi motivada por um movimento de mulheres do Ceará, sua terra natal.

A proposta revoga ainda a proibição atual de esterilização cirúrgica em mulher durante o parto ou aborto. A lei vigente só permite a cirurgia, nessas situações, se a mulher tiver se submetido a sucessivas cesarianas anteriores. “A laqueadura, 60 dias pós o parto ou mais tarde, implica nova internação, novo procedimento anestésico, com necessidade de recuperação e alteração da rotina. Tudo isso associado à dificuldade de conseguir vaga nas agendas de diferentes profissionais e unidades de saúde”, argumenta.

O projeto foi apresentado em setembro de 2020 à mesa diretora da Câmara dos Deputados, em Brasília. Em dezembro, a matéria foi apensada ao PL-14/2015 e depois foi encaminhada à Coordenação de Comissões Permanentes da Casa. Em março deste ano, foi recebida pela Comissão de Seguridade Social e Família e desde então, não teve mais andamento. Segundo Denis, o PL enfrenta resistência pela bancada conservadora, que defende a manutenção da Lei do Planejamento Familiar.

“Nós entendemos, neste caso, que há a necessidade de compatibilizar os termos da Lei com a realidade. Em nosso país, ainda é muito comum que mulheres venham a engravidar muito jovens, fazendo com que muitas vezes, aos vinte anos, o número de filhos seja o que a pessoa considera ideal. Por que motivo impedir que a pessoa opte pela esterilização? Em nossa opinião, a autonomia de decidir sobre o corpo deve ser preservada a todo custo, sem interferências externas, seja do parceiro ou do Estado”, conclui.

Mulheres são principais prejudicadas

A presidente da Comissão de Mulheres e Advogadas da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Pará (OAB/PA), Natasha Vasconcelos, reafirma que a exigência de consentimento, embora prevista para ambos cônjuges, prejudica em especial as mulheres, os principais alvos da violência doméstica e as mais atingidas com os impactos da maternidade no que se refere à inserção e manutenção no mercado de trabalho, além de enfrentarem sozinhas o ônus da ausência de políticas públicas voltadas para o cuidado.

“A sociedade espera que o projeto de vida das mulheres seja ser mãe, é praticamente destino certo. Todavia para homens, essa exigência muda de perspectiva, não espera que eles sejam pais, basta que façam filhos, não à toa, a cada ano, 6% das crianças nascidas no Brasil são registradas sem o nome do pai na certidão”, e continua, afirmando que há dois aspectos sob os quais o dispositivo da Lei 9.263/96 deve ser debatida: social e juridicamente.

“Social porque vivemos numa sociedade patriarcal, cuja responsabilidade para com a gravidez e o cuidado com os filhos ainda recai, majoritariamente, sobre as mulheres; jurídico porque esse dispositivo afronta princípios constitucionais. Em virtude disso, tramitam duas ADIs, 5097/2014 e 5911/2018, visando a declaração de inconstitucionalidade do referido artigo, por entender que a decisão sobre o próprio corpo, não deva ser submetida ao aval de outrem, pois o controle de fecundidade integra o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo assim, incompatível qualquer restrição legal, quiçá administrativa”, detalha, e recomenda às mulheres que se sentirem lesadas pela legislação atual, que busquem orientação jurídica.

Atendimento

O atendimento na Defensoria Pública do Pará é feito segunda à quinta-feira, com agendamento prévio de 15 dias. Por enquanto, o Núcleo só atende especializado em Belém, mas qualquer defensor público pode fazer o atendimento de violência contra a mulher nos outros municípios do Estado. Pela OAB/PA, orientações jurídicas para casos de violência doméstica podem ser obtidas pelo email violenciadomestica@oabpa.org.br.

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