Dia dos Trabalhadores Domésticos: os desafios de uma luta diária no Pará
Mesmo com a regulamentação da profissão, 90% das trabalhadoras domésticas no Pará seguem na informalidade; relatos de desrespeito, sobrecarga e desigualdade ainda marcam o cotidiano da categoria.
Neste domingo (27/04), comemora-se o Dia dos Trabalhadores Domésticos. Esses profissionais, embora tenham vivenciado conquistas recentes, através da Lei Complementar nº 150 - mais conhecida como PEC das Domésticas, que completa 12 anos em 2025 -, ainda enfrenta grandes desafios, especialmente a informalidade, que é a realidade da grande maioria dos trabalhadores dessa categoria. Aprovada em 2013, a lei representou um avanço histórico ao equiparar direitos trabalhistas de domésticas aos demais trabalhadores com carteira assinada. Contudo, no Pará, onde a categoria representa quase metade de todos os trabalhadores domésticos da Região Norte, os desafios ainda são profundos e estruturais. A informalidade é regra, e o respeito aos direitos conquistados, exceção.
Além da dificuldade de garantir os direitos, há o desafio de romper barreiras sociais e culturais que ainda colocam a profissão em posição de desvalorização. O preconceito contra quem busca direitos trabalhistas ainda é forte, como aponta a juíza Larissa Cunha, do TRT-8. Muitas trabalhadoras têm receio de ir à Justiça por medo de represálias ou de "ficar marcadas" no mercado. Mesmo com o crescimento da informação digital, o acesso à Justiça ainda é limitado para boa parte dessas profissionais.
Uma vida dedicada ao trabalho, sem garantias
Marileide Alves Mafra, 47 anos, resume a história dela e o que vivem milhares de paraenses. São 25 anos trabalhando como empregada doméstica — mas 15 deles sem nenhum direito garantido.
“A gente tinha que aceitar o que o patrão queria. Ou era isso ou não comia”, conta.
Durante mais de uma década, ela cozinhou, limpou, passou roupa e cuidou de crianças sem carteira assinada. Só nos últimos 10 anos passou a ter acesso a direitos como férias, 13º salário e seguro-desemprego. No entanto, ela afirma que, mesmo com a lei em vigor, os patrões continuam se recusando a cumprir as obrigações legais.
Marileide relata que os abusos não se limitam à ausência de direitos formais. Em uma das casas onde trabalhou, ela e os colegas eram proibidos de comer a mesma comida e usar os mesmos utensílios da família.
“A gente era tratado como se fosse inferior”, lembra.
O sentimento de exclusão e desvalorização é comum entre as domésticas, e revela que o problema vai além do descumprimento da lei — é também uma questão de respeito e dignidade humana.
Avanços legais, lacunas na prática
A PEC das Domésticas garantiu direitos como FGTS, adicional noturno, hora extra, salário-família e seguro-desemprego. Porém, segundo a advogada trabalhista Camila Linhares, esses direitos ainda são frequentemente descumpridos.
“O controle da jornada é falho. Muitas trabalham mais de 8 horas sem receber hora extra. E poucos empregadores sabem como funcionam os registros no eSocial ou a compensação de jornada.”
Outro ponto levantado pela advogada é que, mesmo entre os empregadores que tentam cumprir a legislação, ainda há muita desinformação. Muitos não sabem, por exemplo, que a partir de três dias por semana já é necessário assinar a carteira.
Para Linhares, a ausência de fiscalização contribui para que essas irregularidades continuem sendo naturalizadas. Projetos de lei tramitando no Congresso, como a dedução do INSS no Imposto de Renda, buscam incentivar a formalização, mas ainda não são suficientes para mudar o cenário de forma significativa.
Pará lidera ranking da informalidade
O Pará é o estado com maior percentual de domésticas sem carteira assinada em toda a Região Norte: 90,5% das trabalhadoras estão na informalidade. São cerca de 190 mil pessoas nessa situação. Além disso, o estado concentra 45,5% de toda a mão de obra doméstica da região. Os números são da pesquisa desta semana divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos do Pará (Dieese-PA), com base nos dados da PNAD/ Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo o levantamento, o crescimento de 2,4% no número de profissionais atuando como domésticas no Pará, em contraste com a queda nacional, revela uma tendência específica da região: o aumento da demanda por esse tipo de serviço convive com a fragilidade das garantias legais. A sobrecarga de trabalho é evidente: 28 mil pessoas trabalham além das 44 horas semanais, conforme o Dieese/PA. E, muitas vezes, essas horas extras não são reconhecidas nem pagas, o que configura uma violação direta da lei trabalhista.
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Discriminação, assédio e sobrecarga
A desigualdade no tratamento dentro das casas também é marcante. Marileide relata um episódio revoltante:
“Tinha que comer comida do dia anterior e tomar água da torneira, porque os empregados não podiam usar os mesmos copos e talheres da família.”
O relato de Marileide não é isolado. Situações de assédio moral, jornadas exaustivas e discriminação ainda são amplamente denunciadas por trabalhadoras em todo o estado. A falta de regulamentação efetiva e a ausência de canais de denúncia acessíveis tornam trabalhadoras vulneráveis a abusos recorrentes.
Acesso à Justiça: uma conquista pela metade
Apesar das dificuldades, há casos em que as trabalhadoras recorrem à Justiça por conta própria, sem advogado — o chamado “jus postulandi”. Mas o número de ações ainda está longe de refletir a dimensão real do problema.
Segundo Larissa Cunha Barbosa e Silva, juíza do trabalho substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8), o perfil dos processos envolvendo domésticas é quase sempre o mesmo: ausência de registro em carteira, jornadas exaustivas e salários abaixo do mínimo.
A Justiça do Trabalho, quando acionada, garante o reconhecimento dos vínculos e os pagamentos devidos, mas a baixa fiscalização e o desconhecimento da lei impedem que esses casos sejam resolvidos antes de chegar ao Judiciário. “A informalidade é regra. O registro só vem depois da ação”, lamenta a magistrada.
O que pode mudar: projetos de lei e esperança
Segundo Camila Linhares, tramitam hoje no Congresso projetos que podem fortalecer os direitos das domésticas, como o PLP 147/2023, que propõe o abono salarial do PIS à categoria, ou o PL 5760/2023, que garante proteção a trabalhadores domésticos resgatados de situações análogas à escravidão.
Para ela, essas propostas são importantes, mas não bastam. É necessário investir em campanhas educativas voltadas tanto para empregadores quanto para empregadas, além de ampliar a atuação dos órgãos fiscalizadores.
Enquanto isso, trabalhadoras como Marileide continuam lutando por reconhecimento e dignidade.
“Não é porque a gente é empregada doméstica que não merece ser respeitada. A gente merece sim, e muito”, reforça.
Projetos de Lei em tramitação sobre direitos das empregadas domésticas:
- PL 1766/2019: Propõe a dedução do INSS na declaração de imposto de renda;
- PLP 147/2023: Propõe a concessão do abono PIS aos empregados domésticos;
- PL 2216/2023: Altera a Lei Complementar nº 150/2015 para estender o direito ao abono salarial do PIS aos trabalhadores domésticos;
- PL 1608/2024: Facilita a realocação de mulheres em situação de violência doméstica, permitindo o uso de valores em contas conjuntas para se reacomodarem em local seguro;
- PL 2737/2019: Prioriza o atendimento social, psicológico e médico a mulheres vítimas de violência doméstica e/ou familiar no SUS;
- PL 5760/2023: estabelece medidas de apoio e proteção para o trabalhador ou trabalhadora doméstica resgatado de condição análoga à de escravo;
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