Como o ‘RG do boi’ impacta a Amazônia e a carne que chega ao seu prato
Com a implementação do Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos, o Brasil avança na rastreabilidade do gado, em meio a desafios ambientais, econômicos e estruturais.
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Após dois anos de discussão e pressão de ambientalistas e produtores, o governo brasileiro lançou, no final de 2024, o Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos. O objetivo é garantir que cada animal do rebanho nacional seja rastreado individualmente, do nascimento ao abate, trazendo maior transparência para a cadeia produtiva da carne e ajudando no combate ao desmatamento.
A medida promete avanços no monitoramento ambiental e na qualidade da carne brasileira, mas também impõe desafios logísticos e financeiros, principalmente para os pecuaristas da Amazônia.
O que é o Plano Nacional de Identificação Individual de bovinos e búfalos?
O plano prevê que cada bovino e búfalo no Brasil receba uma identificação individual por meio de um "brinco-RG" pendurado na orelha, contendo informações como data e local de nascimento, sexo, espécie, vacinas e histórico de movimentação entre propriedades.
Atualmente, a rastreabilidade dos animais ocorre por meio da Guia de Trânsito Animal (GTA), mas esse sistema é baseado em lotes, sem permitir o controle individual. Com a nova medida, o Brasil se alinha a padrões internacionais de rastreamento, reforçando a imagem no mercado global de carne bovina.
A implementação será feita em fases, até que a identificação individual de todos os bovinos se torne obrigatória em 2033. Estados como o Pará já iniciaram medidas próprias para adiantar o processo, prevendo restrições para o trânsito de animais não identificados a partir de 2026.
Como o rastreamento pode reduzir o desmatamento na Amazônia?
O gado é um dos principais vetores do desmatamento ilegal na Amazônia. Muitas fazendas utilizam áreas de floresta desmatadas para criação ilegal de bovinos, que posteriormente são vendidos para outras propriedades, dificultando a fiscalização.
Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), explica que o rastreamento individual dos animais permitiria verificar se um boi passou por fazendas ilegais antes de chegar aos frigoríficos. Se os dados fossem disponibilizados publicamente, consumidores e empresas poderiam evitar a compra de carne de origem irregular.
“Geralmente o gado passa por várias fazendas ao longo da vida tornando o rastreamento mais difícil. Se o governo disponibilizar as informações do rastreamento do gado e os mapas das fazendas (cadastro ambiental rural), os frigoríficos conseguiram descobrir se os bois comprados vieram de áreas que respeitam as leis ambientais, evitando a compra de gado criado em terras desmatadas ilegalmente”, afirma Paulo Barreto.
Entretanto, o plano do governo foca na saúde animal e não prevê a integração automática com bases ambientais, o que pode limitar a eficácia para coibir o desmatamento.
“Um sistema de rastreamento pode tornar a produção de carne mais transparente, permitindo que qualquer pessoa verifique se os animais vêm de áreas legais. No entanto, o sistema proposto focará na saúde do rebanho sem previsão clara sobre a conexão com a análise ambiental e não disponibiliza essas informações para o público. Da mesma forma, a nova plataforma Brasil Agro+ Sustentável dará acesso aos dados apenas para empresas do setor, sem permitir uma consulta aberta”, detalha o pesquisador do Imazon.
Mesmo assim, para Paulo Barreto, algumas empresas podem ir além do sistema governamental e melhorar essa transparência. “As empresas podem tornar essas informações mais acessíveis, informando de onde vêm os animais que serão abatidos considerando as fazendas que vendem os bois gordos (fornecedor direto) e as fazendas das quais compram os bezerros e novilhos para a engorda (fornecedores indiretos)”, declarou.
Segundo Lisandro Inakake, gerente de projetos em Cadeias Agropecuárias do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), a associação de informações permite ampliar a compreensão sobre o contexto de cada animal.
“Por exemplo, ter as coordenadas geográficas das unidades de exploração pecuária pelas quais o animal tenha passado e, assim, entender qual o território onde se localiza essa produção e, consequentemente, saber como é a gestão da propriedade frente ao atendimento das legislações ambientais e sociais pertinentes”, disse.
Desafios para a implementação da medida na Amazônia
Para Paulo Barreto, a adesão dos produtores é um dos principais desafios. Muitos enxergam a identificação individual como um custo adicional e um sistema burocrático complexo.
Além disso, há o custo da implementação do programa. “A identificação individual exige o uso de dispositivos como brincos ou chips eletrônicos, infraestrutura nas fazendas e capacitação dos fazendeiros. É necessária uma coordenação entre os vários setores – governo, frigoríficos e fazendeiros – para assegurar o investimento, compartilhamento de custos e dos benefícios”, explica o pesquisador do Imazon.
De acordo com Lisandro Inakake, a implementação do programa no Pará é desafiador, uma vez que o estado tem o segundo maior rebanho do país.
“A principal dificuldade é engajar os produtores na adesão à agenda da rastreabilidade, considerando o contexto de inconformidade ambiental que ocorre em muitas propriedades rurais na Amazônia”, destaca o gerente de projetos do Imaflora.
Conforme Inakake, para superar esse desafio, estado, setor privado e sociedade civil precisam atuar de maneira conjunta. Ele lembra que o Pará tem um programa de pecuária sustentável com esse tipo de política pública.
“Ele alia a meta de identificação de todo o rebanho do estado até 2026 com a construção de protocolos de transparência e integridade socioambiental e de incentivos legais, fiscais e financeiros a fim de garantir que pecuaristas tenham acesso aos meios necessários para se adequarem às exigências ambientais e de mercado”, explica.
Fernando Lobato, presidente da Associação Rural da Pecuária do Pará (ARPP), defende que a rastreabilidade pode valorizar a carne paraense, mas alerta para o impacto econômico. "É essencial que o sistema seja implantado de forma gradual e com apoio financeiro do governo, para evitar prejuízos aos pecuaristas", afirma.
Outro entrave é a infraestrutura. Pequenos produtores precisam de acesso à tecnologia e capacitação para aplicar corretamente o rastreamento. Além disso, será necessário um sistema robusto de gestão de dados, garantindo a segurança e confiabilidade das informações.
“O Brasil já possui um sistema que rastreia a origem individual do gado. Portanto, há conhecimento e tecnologia para fazer. Para ampliar para todo rebanho será necessário investir em treinamento, infraestrutura e nas tecnologias”, informa Paulo Barreto.
Segundo o pesquisador do Imazon, para garantir que o sistema funcione, cada estado pode contar com as agências de defesa agropecuária para colocar o programa em prática dentro das próprias regiões.
“A Adepará, órgão de fiscalização agropecuária do estado, já segue um cronograma próprio dentro do Programa de Pecuária Sustentável do Pará. A meta é que, a partir de janeiro de 2026, apenas animais com identificação individual possam circular dentro do estado”, mencionou.
Impacto na exportação de carne brasileira
Paulo Barreto defende que a rastreabilidade individual pode ajudar o Brasil a manter e expandir as exportações para mercados exigentes, como a União Europeia e os Estados Unidos. Segundo ele, a Lei de Produtos Livres de Desmatamento da UE (EUDR) exige comprovação de origem sustentável, e a China, maior compradora de carne brasileira, também já demonstrou interesse nesse tipo de controle.
Lisandro Inakake destaca que países como Austrália e Uruguai já utilizam rastreamento individual, conferindo maior credibilidade à sua produção. "Com um sistema confiável, o Brasil pode se tornar ainda mais competitivo no mercado global", afirma.
O futuro da pecuária brasileira com a rastreabilidade
A identificação individual de bovinos e búfalos é um passo importante para modernizar a pecuária brasileira. Apesar dos desafios, a iniciativa pode impulsionar a sustentabilidade do setor, ajudando o Brasil a se consolidar como líder mundial na produção de carne bovina de qualidade e de origem transparente.
“A adoção de sistemas de rastreabilidade e identificação individual de animais, no entendimento do Imaflora, é uma evolução natural e desejável para uma cadeia produtiva que aumenta a participação no mercado internacional e aumenta constantemente a exportação de carne para esses diversos mercados”, defendeu Lisandro Inakake.
Segundo ele, a pecuária pode progredir na melhoria contínua da gestão das propriedades. Isso passaria pela gestão dos rebanhos e pela gestão da pastagem. O resultado, para Inakake, seria positivo quanto às emissões de gases de efeito estufa.
“Nós entendemos que a pecuária brasileira tem uma potência enorme e está em processo de transição para uma pecuária mais sustentável. Um dos elementos que acompanham essa transição é a identificação individual de animais para diversas finalidades”, disse.
Se bem implementado, o plano pode contribuir para a conservação ambiental, melhorar a imagem do país no exterior e garantir mais oportunidades de negócio para os pecuaristas. No entanto, é essencial que haja apoio governamental, incentivos financeiros e transparência na gestão das informações para que os benefícios sejam amplamente alcançados.
O pesquisador do Imazon Paulo Barreto defendeu que a medida pode beneficiar pecuaristas que já seguem práticas sustentáveis. “Há instituições financeiras que possuem linhas de crédito com juros reduzidos ou condições especiais para produtores que adotam práticas sustentáveis”, lembra.
De acordo com ele, o produtor deve buscar informações, junto ao banco, de como ter acesso a esse tipo de crédito. “Além disso, frigoríficos podem trabalhar incentivos ou preços diferenciados a produtores que aderirem à prática de identificação individual dos seus bovinos antes da data de corte de obrigatoriedade que estabelece o programa nacional”, ressaltou.
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