Entenda o que são milícias e por que você deve se preocupar com elas
Grupos se apresentam como "solução" para segurança pública, mas são tão criminosos quanto aqueles que dizem combater
Milícias são perigosas. São grupos criminosos. Em hipótese alguma podem ser tratados como "justiceiros" ou "heróis do povo". Mas muita gente insiste em ver esses grupos dessa forma.
Se autoproclamando combatentes do crime; propondo resolver problemas que a polícia comum não poderia resolver, por vias legais regulares, as milícias se criaram. Se instalaram, de forma mais visível, no estado do Rio de Janeiro.
Lá, se tornaram um dos principais obstáculos da segurança pública do país. São grupos que apenas tomaram o lugar de traficantes comuns e então estabeleceram um novo "modelo de negócio" criminoso.
O mesmo problema está instalado no Pará.
Paraenses que não conhecem muito bem a realidade da violência no Rio de Janeiro, provavelmente, devem ter ouvido o termo milícia, pela primeira vez, no filme "Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora É Outro".
Contudo, há alguns anos, esse termo passou a ser usado, formalmente, pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) no Pará.
O termo sempre esteve associado às chacinas e algumas execuções onde havia indícios do uso de armas de policiais. As características dos crimes também apontavam treinamento específico e especializado.
Desde a operação "Navalha na Carne", em 2008, ficou claro que havia milícias no Pará. Até então, o termo mais usado era "grupo de extermínio" ou "grupos paramilitares", entre outras nomenclaturas.
No mesmo ritmo, os assassinatos do "carro prata" se tornavam mais e mais frequentes.
Ao menos desde 2013, essa se tornou a marca da morte e do terror nas áreas mais periféricas de Belém. As mortes de pessoas negras e pobres, nem sempre com antecedentes criminais — ainda que isso não seja justificativa para que alguém morra — ou qualquer conflito com a lei, eram atribuídas a assassinos que chegavam num veículo de cor prata. Às vezes era preto. Às vezes era branco. Cores que se misturam fácil no trânsito.
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Entre a noite de 4 de novembro e a madrugada do dia 5 de novembro, em 2014, o cabo Antônio Marcos da Silva Figueiredo, conhecido como cabo Pet ou Pety, foi assassinado.
A partir daí, foi desencadeada uma sequência de assassinatos. O episódio ficou conhecido como "Chacina de Belém". Além do cabo Pet, outras nove pessoas morreram. Algumas sem qualquer motivação; apenas estavam em ruas de bairros periféricos. Eram negros, pobres e se encaixavam no estereótipo de um criminoso.
O policial foi apontado como chefe de uma das principais milícias dos bairros Guamá, Terra Firme, Jurunas, Condor e Cremação. Prestava serviços ilegais de segurança privada e assassinato sob encomenda.
Cabo Pet não era diferente do cabo Heleno Arnaud Carmo de Lima, o Leno, preso no dia 30 de janeiro deste ano. Leno era suspeito de liderar uma milícia que participou da chacina que vitimou 27 pessoas, entre os dias 20 e 21 de janeiro de 2017, em Belém.
A diferença é que Leno, segundo a Polícia Civil, atuava nas áreas de entorno da Pedreira. Um pouco mais afastado de núcleos de concentração de milícias. Só que Leno já era considerado o maior miliciano Pará pelo tamanho do grupo dele e quantidade de crimes cometidos.
O que são as milícias e o que fazem
Na prática, milícias são grupos armados, quase sempre formados por policiais, militares das forças armadas e/ou ex-policiais e ex-militares.
Não é raro que, no meio desses grupos que se dizem justiceiros, há pessoas que nunca pertenceram a qualquer órgão de segurança pública, mas compartilham de determinados ideais de poder. Ou sabem lidar muito bem com o submundo da criminalidade.
Há, mesmo entre os milicianos, "criminosos comuns". Iss não quer dizer que as milícias não sejam grupos criminosos em essência.
As milícias existem onde o poder público é ausente. Ou presente de uma forma precária e quase conivente com a criminalidade, como aponta o geógrafo e especialista em Planejamento Urbano Aiala Colares, do grupo Observatório de Estudos em Defesa da Amazônia, da UFPA.
As milícias se apropriam de necessidades da população, sobretudo em segurança pública. Não é muito diferente de como facções criminosas, como o Comando Vermelho Rogério Lemgruber, ou CVRL, o grupo que costuma assinar pichações "proibido roubar na comunidade".
A "Chacina de Belém" motivou a CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa).
Após várias investigações, tomadas de depoimentos e análises de boletins de ocorrência, ficou escancarado que esses grupos criminosos, autodenominados "justiceiros", lotearam territórios de Belém e se expandiam em municípios do interior.
Nas áreas rurais, a organização desses grupos oficializa o serviço de "jagunço". Estão intimamente ligados à grilagem de terras e demonização de movimentos sociais em favor do trabalho e da reforma agrária.
Nos centros urbanos, principalmente Belém, são encontrados grupos de narcomilícias. É o modelo mais próximo das milícias do Rio de Janeiro e retratadas no filme "Tropa de Elite 2".
Os bandidos que se chamam de "justiceiros" expulsam os traficantes e tomam deles o controle do tráfico. Isso mesmo: os ditos justiceiros continuam traficantes.
Além da renda do tráfico, as narcomilícias ainda se remuneram da oferta de serviços ilegais diversos, como patrulhamento nas ruas, ligações clandestinas de luz, água, internet e TV por assinatura — a preços muito mais baixos que os serviços legais e regulares —, comércios, transporte público e até habitação. Oferecem o que os traficantes comuns não oferecem por uma certa proximidade com o poder público.
Isso revela a carência das comunidades que as milícias ocupam. Por isso, Aiala diz que a presença de facções criminosas comuns e milícias não deixa de ser uma conivência do poder público com o crime.
Pela movimentação financeira e perpetuação de negócios, muitos milicianos apoiam campanhas políticas, para ter conexões com o poder público.
O vereador Marcello Siciliano (PHS-RJ) e o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) são dois nomes que começaram a ser vinculados a milícias do Rio de Janeiro, sobretudo ao Escritório do Crime, a maior e mais perigosa.
Integrantes dessa milícia tinham proximidade com os dois políticos. Essa milícia é a suspeita de ter executado a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e o motorista que trabalhava para ela, Anderson Gomes.
Todos os "benefícios" trazidos pelas milícias, que deveriam ser políticas públicas formais, têm preço. Muitas vezes, as milícias cobram, coercitivamente, valores que ultrapassam o poder aquisitivo das comunidades.
Os milicianos fazem ameaças veladas para quem não quer contratar a tal segurança. Por exemplo, dizem: "olha, se você não pagar a segurança, não tem como garantir sua integridade". Quem se recusa a pagar ou começa a ficar devendo, passa a sofrer assaltos e outros crimes diversos. Até que a pessoa pague. A milícia cobra para proteger a população da própria milícia.
As milícias da Região Metropolitana de Belém fizeram um marketing do terror e do medo.
O "carro prata" se tornou a marca das milícias. Na maioria dos casos, quem morria estava envolvido em crimes de graus variados de complexidade. A Constituição Federal de 1988 nçao permite pena de morte no país. Só que muita gente morreu sem um julgamento legítimo e imparcial. Esse tipo de poder e liberdade para aplicar pena de morte, que milicianos acham que têm, são um enorme risco para toda a população. Toda mesmo.
Houve casos de pessoas que não eram mais criminosas há tempos, como pessoas que cumpriram a pena na cadeia e mudaram de vida. Mesmo assim morreram. Vários inocentes morreram também graças às milícias.
Quando a morte de uma pessoa não era de interesse da milícia, o custo de uma vida variava de R$ 1 mil a R$ 10 mil, dependendo do grau de importância da vítima e complexidade do crime, como apontou o relatório final da CPI das Milícias da Alepa.
As execuções sequenciais e múltiplos tiros também se tornaram uma marca. Indicavam precisão de quem tem treinamento. E as poucas pistas sobre quem cometia as execuções levavam a suspeitos fortes, de coturnos e capuzes (balaclavas).
Quando cápsulas de munição eram encontradas, sempre eram dos calibres ponto 40, ponto 380 e, em alguns casos, nove milímetros. Todas de uso restrito a policiais e forças armadas. Quando os assassinos desciam dos veículos, era possível notar portes físicos mais avantajados.
Nada heróicos
Outra característica das milícias é a covardia e o racismo no modo de agir. Não há pessoas brancas e ricas, que também compõem categorias criminosas. São sempre pessoas negras e pobres. Isso não quer dizer que pessoas brancas e ricas deveriam morrer. Ninguém deveria ter a vida abreviada por um criminoso armado, miliciano ou não. Mas o perfil padrão das vítimas mostra onde as milícias atuam mesmo. E mostram a ideologia de limpeza étnica que promovem.
As milícias não resolvem nada no que diz respeito a segurança pública. Nunca resolveram. Apenas pioram a situação, mantendo o terrorismo permanente nas áreas marginalizadas que costumam tomar como território.
De quando em quando, áudios de milicianos circulam pelas redes sociais digitais.
Espalham terror e mostram que os justiceiros falam de uma forma que os aproxima muito dos criminosos que dizem combater. Palavrões, ameaças, códigos, toques de recolher... todo tipo de vulgaridade e até discordância da própria polícia.
É contraditório, mas os justiceiros não gostam muito de policiais que trabalham de forma correta. O mesmo vale para parlamentares, líderes comunitários, movimentos sociais e jornalistas. Quem interfere nos negócios das milicias, corre sério risco de morrer. E muitas vezes morre mesmo.
Essa é a principal suspeita sobre quem matou Marielle (e Anderson, como colateral), quem mandou matar e por quê. Se o alvo não morrer, vive sob ameaça até que a vida seja insuportável.
Pouco antes de ser preso, nas redes, circulou um áudio de Leno, chamando policiais civis que combatem milícias de "filhos de puta". As mesmas ameaças e ofensas eram feitas contra a imprensa.
Leno dizia que ia matar.
E no desabafo ameaçador e criminoso, não conseguia enxergar por que outros bandidos passaram a retaliar contras as milícias, tornando as ruas de Belém num palco de uma guerra urbana.
Muitas mortes de policiais — não todas, que fique claro — revelam alguma proximidade da vítima com milícias. Ou por pertencimento ou por ser amigo de algum miliciano.
A milícia comandada por Leno foi apontada como responsável pela chacina que ocorreu no na chacina dos dias 20 e 21 de janeiro de 2017.
Na ocasião, 30 homicídios foram registrados em 16 bairros de Belém, Ananindeua, Marituba e Benevides. Destes, 25 seriam retaliação direta à morte do soldado Rafael da Silva Costa, morto em ação, no dia 20 de janeiro de 2017, no conjunto Panorama XXI. Vários dos mortos não tinham qualquer ligação com crimes.
Durante as investigações, que começaram logo após a chacina de janeiro, o mesmo grupo foi responsável por pelo menos mais 17 homicídios e 6 tentativas de homicídio, como informou a Segup.
Um dos sobreviventes da chacina, cinco dias depois, sofreu outro atentado.
Os "carros pratas" apreendidos condizem com os relatos comumente colhidos em locais de crimes com indícios da participação de milícias: Honda Civic, Honda City e Fiat Punto.
Muitos dos policiais que acabam em milícias, são reflexos de muitos problemas no sistema de segurança pública, que começam na formação dos policiais.
Os treinamentos são brutais, crueis e por vezes traumáticos. Pouca formação técnica e teórica é dada. De legislação se aprende o básico.
Assim, muitos polciais formados desconhecem as raízes da violência e não aprendem a combatê-la. Aprendem apenas a reprimir e prevenir através da repressão.
Pela hierarquia militar, quanto mais baixa a patente, menor a remuneração e muito superior é o risco e exposição. Para compor renda e aumentar a segurança pessoal, policiais se unem às milícias para a prestação de serviços de vigilância. Os famosos "Bicos", que são ilegais para o policial da ativa.
Conhecer milícias também é uma via de mão dupla: de um lado, pode prevenir crimes por intimidação; de outro, aumentar possibilidades de retaliações gratuitas de outros criminosos.
Melhor remuneração aos policiais e melhor formação evitariam a necessidade de serviços paralelos irregulares. Potencialmente, diminuiriam a corrupção entre esses servidores.
Outra forma de ingresso em milícias são policiais expulsos da corporação por mau comportamento.
Sem saber o que fazer e buscando renda, ou mesmo vingança, as milícias se tornam um lugar ideal para ex-policiais colocarem em prática, outra vez, a má-formação. Ou servem para extravasar a raiva e as indignações de policiais da ativa. Acompanhamento psicossocial de policiais precisa ser permanente.
As origens das milícias de Belém
Depoimentos, colhidos durante a CPI das Milícias, apontam que, em Belém, os primeiros protótipos de milícias foram na Terra Firme, mais precisamente na área do Tucunduba, a partir de 2006.
Antes da milícia do cabo Pet, duas outras começaram uma disputa pelos comércios e serviços ilegais: a Equipe Rex e a Equipe do Jack. Todas essas informações constam no relatório final, que é público e pode ser acessado aqui.
O líder da Equipe do Jack era um homem conhecido como "Jack" mesmo. Católico atuante e taxista, vivia com carros do ano o tempo todo. Algo incompatível com a renda dele. Começou a oferecer uma sensação de segurança às pessoas, dizendo que se alguém causasse qualquer problema, poderia procurar diretamente por ele, que ele mesmo iria resolver e rapidamente.
Pela ausência de uma política de segurança pública eficiente, quem era vitima dos assaltos constantes na área, de fato, passou a procurar por Jack. Bastou algum tempo de atuação para que ele se apresentasse e fosse conhecido como "chefe da comunidade".
Jack tinha uma ideia de criar um cadastro geral de moradores num centro comunitário. E não escondia a vontade de cobrar a "taxa de segurança".
No mesmo tempo em que essa ideia se desenrolava, mais e mais mortes eram registradas no bairro. Numa alusão que nada tem a ver com os heróis dos quadrinhos, a milícia de Jack foi apelidada de "Liga da Justiça".
Em determinado momento, com a expansão do mercado da morte e da falsa segurança, o bando de Jack entrou no território onde outra milícia já atuava, a Equipe Rex, uma milicia composta por bandidos "ditos comuns".
A Equipe Rex já tinha desavenças com a Liga da Justiça, pois todo o tráfico da Terra Firme estava sendo feito pela equipe de Jack. Mas para todos os efeitos, Jack sempre dizia que o tráfico havia acabado e que a criminalidade estava extinta no bairro.
Quando a guerra entre as milícias se intensificou, as armas de uso restrito das polícias e forças armadas passaram a ser usadas.
Foi aí que a participação de policiais se tornou evidente.
A Equipe Rex, no entanto, tinha uma relação muito mais direta apenas com uma facção criminosa comum: o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Comum é apenas uma forma de dizer. É a maior e mais bem organizada facção criminosa do país, que se comporta mais como uma empresa do que como grupo criminoso. É sediada em São Paulo. Só o Comando Vermelho faz frente a esse grupo.
Eventualmente, os líderes das facções do Guamá, Terra Firme, Jurunas, Cremação e Condor foram morrendo na guerra.
Os conflitos nunca estancaram totalmente. Vários comandantes de policiamento deixaram o posto na área devido às dificuldades em manter a segurança onde grupos criminosos estavam tão bem aparelhados. E novos líderes e grupos emergiram.
Um desses novos líderes foi o cabo Pet, que representava a milícia composta por policiais. A especialidade eram mortes por encomenda. Era constantemente contratado pelo vereador Gordo do Aurá para execuções de desafetos, segundo investigações da CPI das Milícias e das forças da Segup. Novamente, ligações de milícias com a política.
Cabo Pet estava afastado da Rotam por licença médica, mas na Rotam tinha vários aliados. Na noite em que foi morto, o sargento Rossicley, da Rotam, convocou policiais a fazer uma vingança.
Eis que a começou a Chacina de Belém.
Em meados de 2007, uma milícia se instalou no distrito de Icoaraci. Muito antes do carro prata, a marca dos milicianos da Vila Sorriso era a moto.
Ao menos 37 assassinatos foram cometidos por esse grupo criminoso, composto, majoritariamente, por policiais montados em motos.
Por estarem sempre de corturno, foram apelidados de "pés pretos". Foram o principal foco da operação Navalha na Carne.
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