Norte teve maior desigualdade social em saúde durante a pandemia, aponta pesquisa
Mais de 90% dos municípios do Norte ficaram na pior classificação quanto ao nível de desigualdades sociais em saúde desde 2020
A região Norte concentrou a maior proporção de municípios nos piores índices de desigualdades sociais em saúde durante a pandemia de covid-19 no Brasil. A conclusão é da pesquisa realizada pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz - Bahia (Cidacs/Fiocruz Bahia). O Índice de Desigualdades Sociais para a Covid-19 (IDS-Covid-19) mensurou as desigualdades sociais em saúde associadas à pandemia nos municípios brasileiros, desde fevereiro de 2020 até janeiro de 2022.
De acordo com o estudo, mesmo antes da pandemia, a região Norte já tinha alto índice de desigualdade social, medido com base em dados socioeconômicos, sociodemográficos e de acesso aos serviços de saúde. O IDS-Covid-19 motra que, na gradação de desigualdade que vai de 1 a 5, do nível mais leve ao mais grave, 98% dos municípios da região já se classificavam nos grupamentos 4 e 5, ainda em janeiro de 2020.
No Pará, ao longo de todo o período analisado, os municípios da Região Metropolitana de Belém também se mantiveram em níveis preocupantes na classificação. Santa Bárbara do Pará, Marituba e Benevides permaneceram no nível máximo (5) de desigualdade social de saúde desde 2020 até 2022. Ananindeua ficou uma classificação abaixo do nível máximo (4) em todo o período. Já Belém foi o único município que conseguiu reduzir o grau de desigualdade a partir do terceiro período da pesquisa, referente a março de 2021, saindo do grau 3 para o grau 2.
Pessoas passaram por privação de itens de primeira necessidade
O levantamento reflete a realidade que pessoas em vulnerabilidade socioeconômica tiveram que enfrentar durante o período mais crítico da pandemia. A autônoma Maria Progênio, natural de Jacundá, sudeste do estado, conta que passou por um período de intensa crise no primeiro ano de pandemia, enquanto ainda morava no interior:
“Faltou tudo em casa, não foi nada fácil para a gente. O meu marido era personal trainer e eu trabalhava em casa de família. Quando a situação financeira começou a pesar para o meu patrão, piorou para a gente também. Eu fui dispensada, a academia onde meu esposo trabalhava fechou as portas e a gente ficou sem nada”, relata.
Maria conta que passou por privações no período, tendo dificuldade de manter até mesmo itens de primeira necessidade, como alimentação e medicamentos. Produtos que foram essenciais durante a crise sanitária, como máscaras e álcool 70%, só eram obtidos com ajuda de outros membros da família:
“A gente não conseguia nem pagar as contas. O que a gente ganhava de auxílio era só para o básico mesmo. A gente paga aluguel até hoje, mas, na época, tinha que dividir o auxílio para o aluguel e para a alimentação”, relata Maria. “A gente não considera que já se recuperou até hoje”.
Quem também viveu essa crise foi o vendedor José Gomes Moraes, de 65 anos, que trabalha todos os dias em um ponto de venda de água na Praça Dom Pedro II, na Cidade Velha, em Belém. Ele diz que mesmo durante o período do lockdown, não deixou de trabalhar: “Mesmo quando não podia sair para a rua, eu abria o ponto todo dia, porque eu sobrevivo disso aqui. Sem o meu trabalho eu não teria como sobreviver”, relata.
José Gomes nunca chegou a ter condições de comprar máscara ou álcool para se prevenir contra a covid-19. (Thiago Gomes / O Liberal)
Sem casa própria, José conta que pagava diariamente por um quarto para passar a noite e que contou com a consideração da locatária, que baixou o valor do aluguel de R$ 20 para R$ 10 na época. “E tinha dia que eu não conseguia arrumar nem os R$ 10. A alimentação também era reduzida. Tinha dia que eu almoçava e não jantava".
Máscara e álcool gel também não tinham espaço no orçamento de José. Ele diz que só chegou a usar álcool gel quando alguém doava. Nessa condições, ele chegou a ficar doente mas não teve acesso a tendimento médico e, consequentemente, também nunca teve um diagnóstico, sem saber se foi acometido ou não por covid-19.
“Eu cheguei a ficar doente por três dias. Tive todos os sintomas de covid-19 menos a falta de ar. Mas não sei se era covid-19 mesmo, eu acho que era virose. Eu fiquei em casa os três dias, não fui no médico porque não tinha condição de ir”, relata.
Desigualdade é história e não pode ser resolvida com auxílios emergenciais, diz especialista
Na avaliação da assistente social Sandra Valente, especialista em gestão de políticas públicas, todo esse cenário é fruto de uma conjuntura socioeconômica histórica, que desprivilegia a região Norte em relação às demais regiões do país:
“A gente vive uma economia da exploração de mão obra. Aqui, são produzidas matérias-primas para outras regiões que, de fato, enriquecem. Enquanto o Norte carece de desenvolvimento social, com menores índices de escolaridade e falta de políticas públicas eficientes para cobater a pobreza”.
Sandra também critica a ineficiência dos auxílios financeiros como recurso para tentar reverter o cenário de desigualdade social na região: “Dentro da política de assistencia social, temos os benefícios eventuais, ofertados em forma em de renda, em casos excepcionais e emergenciais. Eles foram importantes na pandemia, mas não dão conta de resolver o problema, porque o cidadão precisa de um arcabouço de seguranças para viver com dignidade, como saúde, educação e moradia. É uma pena que esses recursos sejam usados de forma política eleitoreira”.
Para a especialista, falta verdadeiro compromisso político para melhorar as condições de vida das pessoas em vulnerabilidade socioeconômica na região: “Faltam políticas públicas, conselhos de direito que fiscalizem a execução dessas políticas, mais organização popular que obre por projetos e investimentos reais na nossa região”.
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