Em 15 anos, mais de 13 mil trabalhadores são resgatados em situação análoga à escravidão no Pará
Controle da “lista suja” de empregadores, extinção do Ministério do Trabalho e baixo número de auditores fiscais dificultam prisão de criminosos
Condições degradantes e análogas à escravidão violam direitos fundamentais quando negam a dignidade da pessoa humana a trabalhadores. No Pará, 13.225 homens, mulheres e crianças foram resgatados nessas condições, nos últimos 15 anos, apontam dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. O perfil das vítimas, na maioria dos casos, é de escolaridade modesta ou analfabetos, que possuem poucas oportunidades de emprego e baixa consciência de seus direitos.
A procuradora Silvia da Silva, do Ministério Público do Trabalho PA-AP, atua no combate a esse tipo de crime, ela participou de uma recente operação do MPT junto a Polícia Federal, no município de Pacajá, no sudoeste paraense, que ocorreu entre os dias 5 e 9 de julho. A ação resultou no resgate de quatro trabalhadores em condições análogas às de escravo em uma fazenda. A mandatária explicou quais são os sinais para que esse tipo de crime seja identificado.
“O Ministério Público considera como condições degradantes de trabalho as conjunturas inadequadas, sem observância de preceitos mínimos atinentes, principalmente, à saúde, à medicina e à segurança no trabalho. Nós observamos nas fiscalizações que são desrespeitados os direitos fundamentais básicos dos trabalhadores, como à alimentação, moradia, proteção contra acidentes, assim como instalações sanitárias inexistentes ou inadequadas, não fornecimento de água potável, equipamentos de proteção individual e a indisponibilização de ferramentas de serviço”, esclareceu. A procurada afirma que outras irregularidades também podem ser encontradas.
Silvia cita a operação de Pacajá como exemplo, onde além das irregularidades trabalhistas mencionadas anteriormente, foi constatado que os empregados não tinham carteira de trabalho lotada, pagamento mediante à entrega de contracheque, ausência de exames médicos admissionais e medicamentos de primeiros socorros. “Nós verificamos que na maioria desses casos de resgates há um descumprimento generalizado da legislação trabalhista. É importante frisar que o trabalho escravo contemporâneo engloba basicamente quatro modalidades: o forçado, a jornada exaustiva, as condições degradantes e a restrição de locomoção do funcionário”, pontuou.
A primeira, elucida a procuradora, refere-se quando o trabalhador não oferece o seu serviço de forma espontânea. Já o segundo, a jornada exaustiva, é quando o empregado é submetido a uma jornada muito acima do limite legal, resultando em um prejuízo à concessão dos seus intervalos, assim como à própria saúde física e mental do empregado. Em determinados casos, os servidores chegam a adoecer ou até morrer. Silvia disse que esses tipos de casos são geralmente encontrados nas plantações de cana de açúcar. Como a mandatária já havia exemplificado as condições degradantes de trabalho, ela explanou sobre a última modalidade.
“Essa última, a restrição de locomoção, é quando as pessoas são impedidas de sair dos seus locais de serviço por obterem algum tipo de dívida com o empregador, ou seja, às vezes, essas vítimas já são levadas à labuta com um sistema de endividamento e não conseguem sai da propriedade dos patrões por conta dessa dívida”, explicitou. Silva afirma que a liberdade de locomoção pode ser cerceada não somente em razão de dívida, mas também por outras situações como a retenção de documentos, restrição do uso de meios de transporte e vigilância ostensiva, seja armada ou não, com intuito de prender o trabalhador no local de trabalho.
Crianças e adolescentes também são encontrados em situações análogas à de escravos. A procuradora lembrou de uma fiscalização, realizada em abril deste ano, no município de Novo Progresso, oeste do Pará, onde crianças e jovens foram resgatados, algumas trabalhando e outras acompanhando os pais. Nesses casos, que rementem inclusive à situação do trabalho infantil, Silvia afirma que é providenciado o afastamento imediato dos menores e a indenização por dano moral dos empregados.
Crime de submeter pessoas ao trabalho análogo à escravidão estão no meio urbano também
Diferente do que se imagina, esses tipos de crimes não estão restritos somente ao meio rural. A procuradora afirma que, nos centros urbanos, há inúmeros casos apurados pelo MPT local e nacionalmente. Entre os mais registrados estão os resgates de trabalhadores do serviço doméstico, seja em razão da proibição de sair do local, endividamento ou condições de trabalho degradantes a que estão submetidos. “Algumas funcionárias que trabalham em casas de famílias são impedidas pelos patrões de visitar os seus parentes”, exemplificou.
Alguns dos desafios para reprimir a escravidão contemporânea no Brasil, na opinião da procuradora do MPT, está na estruturação do Ministério da Economia, órgão que possui uma subsecretaria de inspeção do trabalho e a promoção de concurso público para auditores fiscais do trabalho. “Nós temos atualmente cerca de 1,5 mil cargos vagos e não há sinalização do Governo Federal para a realização de concurso. Precisamos repor esses cargos de auditores, intensificar a fiscalização e promover a efetiva criminalização desses empregadores para sejam responsabilizados, além da capacitação de agentes que atuam em municípios mais distantes da capital”, concluiu.
O Ministério da Economia assumiu a atuação das inspeções de explorações de empregados, após a extinção de outra pasta. Na transição do governo Michel Temer para Jair Bolsonaro, o Ministério do Trabalho entrou em extinção, que para especialistas da área dificultou ainda mais o combate à escravidão contemporânea. Uma portaria expedida pelo ex-ministro Ronaldo Nogueira dificultou o acesso público à chamada “lista suja”. Na época, o documento que contém os nomes dos patrões autuados pela prática do crime, passou a ser divulgado somente “por determinação expressa” dele ou de quem estivesse como titular no cargo. Anteriormente, essa função era da área técnica.
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