O Liberal na Ucrânia: 1º dia - Cruzando a fronteira rumo a Kiev

Grupo O Liberal está na Ucrânia, país em guerra com a Rússia desde fevereiro de 2022, e traz detalhes a situação na região

Gustavo Freitas, direto de Kiev / Especial para O Liberal

Ainda lembro da madrugada daquele 24 de fevereiro de 2022. Estava no quarto de casa com a televisão ligada e imagens de câmeras pela Ucrânia dividindo a tela do computador. A inteligência americana já havia alertado a imprensa de que a invasão russa era iminente, portanto, já não era mais “se” e sim “quando” aconteceria. Foi naquela noite e, desde então, o mundo nunca mais foi o mesmo.

Quis o destino que, quase três anos depois, eu estivesse escrevendo este relato de dentro de um quarto de hotel em Kiev, na madrugada de inverno no leste europeu. O trajeto de quase dez horas desde a cidade de Przemysl, na Polônia, até a capital ucraniana, já carrega as marcas de um país absolutamente assolado pelo cenário de guerra total.

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Quando desembarquei em Varsóvia pela manhã, o aeroporto da capital polonesa estava cheio, os restaurantes abarrotados, conversas paralelas e, aqueles que quisessem se aventurar no piano da área de embarque, certamente teriam plateia para um show. Um polonês de vinte e poucos anos chamou a atenção ao sentar, com a mochila nas costas, e performar por dez minutos como se fosse a reencarnação de Frédéric Chopin. 

A Polônia faz fronteira com a guerra, mas está sob a proteção da OTAN, uma sorte que a Ucrânia nunca teve e, provavelmente, jamais terá. A segurança da aliança dá aos poloneses alguma tranquilidade para seguir vivendo a vida sem o risco de os mísseis russos recaírem sob o seu território.

Na saída, a espera pelo ônibus que me levaria até a fronteira já antagonizou o clima festivo do aeroporto. A viagem de cinco horas até Przemysl é confortável, mas o ônibus praticamente vazio e o silêncio ensurdecedor durante todo o trajeto eram o primeiro sinal de que, para os poucos ali presentes, o destino certamente não seria um passeio a lazer com a família.

Na fila da imigração, o primeiro choque. Eu era um dos poucos homens que estavam aguardando o carimbo para embarcar rumo à Ucrânia. Desde 2022, o país vive sob Lei Marcial que impede os homens de deixarem o país sem autorização prévia, porque todos podem ser convocados a servir o Exército a qualquer momento. O público que esperava pelo trem era composto, majoritariamente, de senhoras e suas filhas ou netas, carregando sacolas de comida, roupas e remédios.

Por conta da guerra, o abastecimento do país foi severamente prejudicado, então, tornou-se rotina para muitas famílias ter que ir até a Polônia para fazer compras básicas a um preço muito mais acessível. Conversei com algumas dessas mulheres na fila e, na expectativa de ouvir relatos raivosos sobre a Rússia e o conflito, não houve nada disso. O que existe é um cansaço e frustração no semblante de quem estava ali, como se a falta de perspectivas futuras já tivesse tomado o corpo e a alma de cada uma.

Ao meu lado se sentou Dharyna, de 24 anos, que já atravessou a fronteira duas vezes nesta semana para participar de uma entrevista de emprego e para comprar material escolar para o irmão, que retorna às aulas agora em janeiro. Me disse que está cada vez mais difícil conseguir trabalho na Ucrânia e, os que contratam, pagam muito pouco para sustentar os custos de casa.
Entre tantos problemas, a Ucrânia atravessará um inverno sob intensos ataques russos ao sistema energético do país. Dharyna me contou que, no seu bairro, muitos prédios passam horas sem fornecimento elétrico e muitos temem pelo aumento repentino no custo da energia. Em tempos de baixas temperaturas, não ter ou não poder arcar com o uso do aquecedor é uma realidade assustadora.

Na chegada a Kiev, a língua se tornou um problema. Salvo raras exceções, até mesmo as placas não usam o inglês como alternativa para quem vem de fora. A compra de um chip de telefone e a ida à casa de câmbio foram tarefas que requisitaram muita mímica para os atendentes entenderem a conversa, mas a boa vontade e a receptividade supriram as dificuldades.

Até o início da tarde, Kiev teve uma manhã tranquila, com céu nublado e sem mísseis russos atravessando a região. No saguão do hotel, fui avisado de que quatro andares abaixo havia um abrigo antiaéreo disponível para todos os hóspedes, mas acho que os sucessivos ataques criaram alguma resistência entre os ucranianos, que se recusam a respeitar todos os avisos. Perguntei à atendente se deveria me preocupar com possíveis alertas ao longo do dia e, em poucas palavras, ela me disse: “não acontece sempre, você vai pro abrigo se você quiser.”

Duas horas depois, eu quis. Fui acordado com a sirene soando na cidade e notificações do governo, avisando que drones russos e um míssil balístico haviam sido lançados contra a capital. Pela noite, voltando do mercado, mais uma vez a sirene ecoou pelos quatro cantos para avisar de mais drones russos a caminho de Kiev. Ao todo, apenas hoje, foram 11 mísseis e 32 drones, todos abatidos pela defesa antiaérea ucraniana. Ainda assim, o susto de ouvir pela primeira vez um som que sempre esteve muito distante da realidade brasileira, esse jamais será esquecido. 

Gustavo Freitas, direto de Kiev

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