O Liberal em Kiev: 2º dia - Praça Maidan, o coração da Ucrânia

Gustavo Freitas, analista internacional do Grupo Liberal, está no país em guerra com a Rússia; acompanhe a série especial sobre a Ucrânia

Gustavo Freitas, direto de Kiev
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O dia ensolarado em Kiev engana quem vê as fotos. Por trás do dia bonito, uma ventania insuportável parece fazer de tudo para que a gente saia das ruas em busca de um local aquecido. Diferente do primeiro dia, hoje a capital teve 24h de paz, sem sirenes ecoando pela cidade e sem a preocupação de abrir o aplicativo das forças armadas para saber se a ameaça já foi neutralizada.

image O Liberal na Ucrânia: 1º dia - Cruzando a fronteira rumo a Kiev
Grupo O Liberal está na Ucrânia, país em guerra com a Rússia desde fevereiro de 2022, e traz detalhes a situação na região

A poucos metros do hotel, está a Praça Maidan. Não há nenhum exagero em afirmar que este espaço é o coração do país. No final de 2013 e início de 2014, foi exatamente aqui que milhares de ucranianos passaram dias protestando contra o governo de Yanukovich, presidente pró-Rússia, que desistiu de assinar um acordo de livre-comércio e associação política com a União Europeia, um desejo antigo de boa parte dos ucranianos que sonhavam com uma maior aproximação ao ocidente.

A recusa do acordo foi o estopim para que o país mergulhasse em um caos político que durou meses. Os protestos na Praça Maidan resultaram na queda do governo pró-Rússia, intensos confrontos de civis com forças policiais e a morte de mais de 100 ucranianos. Na época, a Rússia interpretou a queda do governo como um golpe de Estado e, imediatamente, anexou a península da Criméia. Desde então, os confrontos nunca cessaram e, em fevereiro de 2022, a Rússia iniciou uma invasão total ao território ucraniano e reconheceu a independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk.

image Dezenas de ucranianos param na Praça Maidan para deixar bandeiras e fotos ao longo do dia (Gustavo Freitas / Especial para O Liberal / Direto de Kiev)

O terror que assola a vida dos ucranianos há tantos anos, começa em Maidan. Em outros tempos, a praça já foi um espaço de lazer, música, arte e ponto de encontro entre os locais. Não esqueço dos tempos em que respirava futebol e, na Eurocopa de 2012, via pela tv as imagens da Fun Zone em Maidan lotada de torcedores do mundo inteiro, se divertindo sem sequer imaginar o que aquele mesmo local se tornaria um ano depois.

Hoje, Maidan se transformou em um grande memorial feito pelo povo. O jardim que era usado para piqueniques no verão, hoje abriga milhares de bandeiras e imagens em memória daqueles que morreram na guerra. O espaço já está abarrotado e, ainda assim, representa apenas uma fração do número real de pessoas que perderam suas vidas em combate.

Enquanto estava gravando, uma senhora parou para me entregar uma bandeira e um bracelete nas cores ucranianas. Perguntei o valor e, rindo, ela disse que não estava me vendendo. Era um presente. Depois, perguntou de onde eu era e me levou imediatamente para ver, entre as homenagens, o espaço destinado aos brasileiros que morreram em combate na Ucrânia. Ao fim, gentilmente, ela agradeceu em poucas palavras por estar filmando o espaço e foi embora.

Ao longo do dia, vi dezenas de ucranianos parando para deixar bandeiras e fotos. Uma atualização em tempo real, de forma silenciosa e humana, do aumento de mortos na guerra. Um dos vendedores de flores no local é um ex-militar que, em conversa, me confessou que o espaço parece mórbido, mas é um lembrete diário do porquê que o país segue lutando.

Obviamente, por ser um dos principais pontos turísticos da cidade, a praça é lotada de lojinhas improvisadas com todo tipo de souvenirs que se pode imaginar. Entre bonés, gorros, patchs militares e camisas com a bandeira ucraniana, o objeto mais cobiçado é o rolo de papel higiênico com o rosto de Vladimir Putin.

Ali perto, em um café, entrevistei a Valéria Shashenok, de 23 anos, que viralizou em 2022 com vídeos satíricos sobre o dia a dia durante a invasão russa. Nascida em Chernihiv, Valéria precisou sair do país para recomeçar, viveu em Londres, escreveu um livro e decidiu voltar para a Ucrânia. Hoje ela atua como ativista contra propaganda russa e, durante a nossa conversa, ela me fez um relato peculiar. Disse que ter 23 anos na Ucrânia é diferente de ter 23 anos em qualquer outro país da Europa, Estados Unidos ou Brasil. Ela sente que a sensação é que parece já ter vivido tudo, alegando que a guerra suga o ser humano e hoje ela só tem vontade de ficar dentro de casa.

No imediatismo do noticiário, vemos diariamente a guerra na Ucrânia com recortes de mísseis, avanços territoriais e números, mas a realidade é sempre muito mais ampla e complexa que isso. É o cansaço mental, a incerteza, as sirenes e todos os pequenos ajustes na rotina do cidadão comum que, somando, se transformam em cicatrizes eternas.

Em Maidan, milhares de bandeiras e fotografias também são lembretes diários que as estatísticas têm nome, sobrenome, profissão e famílias que foram deixadas para trás. Na guerra, de certa forma, todo mundo perde.

 

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