Mikhail Gorbachev deixa marca na história política
Apesar de imagem controversa na Rússia, ex-presidente, que morreu em 30 de setembro, é visto como homem da paz no Ocidente
Mikhail Gorbachev é um dos personagens mais emblemáticos do século XX. No Ocidente, de modo geral, tem a imagem de reformista e do líder que selou, ao lado do então presidente norte-americano Ronald Reagan, o fim da Guerra Fria. Já na Rússia, a percepção do último presidente da União Soviética é controversa, o que pôde ser percebido até pelas atitudes do presidente Putin sobre a morte de Gorbachev. Com informações da AFP.
Reformista democrata ou traidor de uma grande potência. A morte, na terça-feira, 30 de setembro, de Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética, despertou opiniões divergentes entre os russos, que têm lembranças muito diferentes de seus anos no poder.
Ao chegar ao Kremlin em 1985, Gorbachev tentou modernizar e democratizar a URSS com uma série de reformas, que não impediram seu colapso em dezembro de 1991. Um trauma histórico para muitos russos.
Para Vladimir Zavkov, um aposentado de 70 anos, Gorbachev não passava de "um traidor".
"Ele era uma espécie de político analfabeto, que deixou um grande país desmoronar. Tudo o que ele fez de positivo foi anulado por isso", disse o moscovita à AFP.
Nadejda Aleksina, uma web designer, tem uma visão mais sutil, considerando Gorbachev uma figura "controversa".
"Na Rússia, acho que ele foi uma figura muito importante. Graças a ele, a Rússia existe (como país). Então, parece-me uma grande perda para muitas pessoas", comentou.
O próprio presidente russo, Vladimir Putin, foi muito contido na quarta-feira, limitando-se a dizer que o último líder soviético teve "uma grande influência na História mundial".
Mais incisivamente, seu porta-voz, Dimitri Peskov, acusou Gorbachev de ter nutrido uma visão "romântica" da relação entre a Rússia e o Ocidente.
Svetlana Gannushkina, defensora dos direitos humanos na Rússia pós-soviética, pede para não esquecer as reformas democráticas empreendidas por Gorbachev.
"Aqueles que são agressivos (com Gorbachev) hoje são pessoas que querem retornar ao sistema soviético. Pessoas que eram escravas e querem continuar sendo escravas", disse Gannushkina à AFP.
"E não querem agradecer a quem lhes deu a liberdade. Porque Gorbachev nos deu liberdade", afirma.
Palavras que marcaram a era Mikhail Gorbachev
Da perestroika ao golpe de Estado, passando pelas leis antiálcool: seguem as palavras que marcaram o período de Mikhail Gorbachev, que morreu nesta terça-feira (30) aos 91 anos, à frente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
O que é Perestroika
"Perestroika" é uma expressão emblemática associada ao projeto de Gorbachev para modernizar a economia e a sociedade soviética. Significa literalmente "reestruturação" ou "reconstrução", tornando-se "reforma" ou "mudança" em seu sentido político.
"Camaradas, certamente precisamos de reformas", disse o jovem primeiro-secretário do Partido Comunista no início de 1985, pouco depois de chegar ao poder.
O que é Glasnost
"Glasnost" é a menção pública de um tema de debate. Significa "transparência", em tradução literal. Inicialmente, o termo foi usado durante as tentativas de reforma do período czarista.
Gorbachev o usou pela primeira vez em fevereiro de 1986. A princípio, a "glasnost" pretendia dar aos cidadãos soviéticos o direito de criticar o Estado e as organizações do partido.
Mais tarde, adquiriu um sentido totalmente novo: foi associado ao fim da censura oficial, com a autorização de emissoras de rádio estrangeiras e de livros considerados dissidentes.
Com Reagan, uma relação forjada nos ideais
Mikhail Gorbachev não hesitou em cumprimentar aqueles que o receberam com aplausos em uma rua de Washington em 1990, um espetáculo político incomum para ele, mas digno de seu amigo Ronald Reagan.
Ana Maria Guzmán estava no local e viu chegar o líder soviético, que morreu na terça-feira aos 91 anos.
"Ele saiu de sua limusine e começou a apertar as mãos", lembra. "Foi muito emocionante. Ele era como uma pessoa comum. Uau!"
Esse toque pessoal era uma característica de Reagan, o ator de Hollywood que se tornou presidente e ícone da direita americana.
Reagan e Gorbachev romperam décadas de tensões entre seus países e acabaram forjando um dos relacionamentos mais improváveis do século XX, unindo-se em seu desejo de reduzir a corrida nuclear e, finalmente, provocando uma mudança importante na política mundial.
Décadas de desconfiança
A princípio, o veterano soviético não tinha quase nada em comum com seu colega americano. Ambos vieram de países onde a desconfiança do outro era a regra de ouro. Mas quando Reagan chegou à Casa Branca em 1981, aliviar as tensões da Guerra Fria com Moscou era uma de suas prioridades.
Ele fez propostas a três líderes soviéticos, Leonid Brezhnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko, mas todos resistiram à mudança e nenhum sobreviveu o suficiente para estabelecer um relacionamento.
Quando Gorbachev assumiu o cargo de secretário-geral do Partido Comunista em março de 1985, após a morte de Chernenko, a Casa Branca sentiu uma possível abertura, disse Jack Matlock, principal negociador de Reagan com Moscou e mais tarde embaixador na Rússia.
"No início de seu mandato, Reagan se referiu à União Soviética como um império do mal", disse ele à AFP. "Mas desde o início ele falou em negociar e na possibilidade de estabelecer uma relação pacífica."
Gorbachev não era um idealista cego, enfatizou John Lenczowski, conselheiro de Reagan para assuntos soviéticos.
A Casa Branca entendeu que ele herdou uma economia enfraquecida, um exército que via o Pentágono como cada vez mais superior e ameaçador, e um Partido Comunista implodindo.
Gorbachev primeiro precisava amenizar a competição militar com os Estados Unidos se quisesse lidar com os outros dois desafios e preservar a União Soviética.
"Homens de paz"
Durante o funeral de Chernenko em 1985, Reagan convidou Gorbachev a visitar Washington, mas nada aconteceu por meses.
Ainda assim, a Casa Branca percebeu uma mudança de tom enquanto os dois lados discutiam o avanço das negociações de controle de armas nucleares.
"Basicamente, ambos eram homens de paz", disse Matlock. "Gorbachev percebeu, cada vez mais, que tinha um sistema que precisava mudar. Mas não poderia mudá-lo enquanto houvesse uma Guerra Fria e uma corrida armamentista."
"E acho que Reagan entendeu isso. E Reagan não pretendia derrubar a União Soviética", disse Matlock.
O gelo foi finalmente quebrado em uma cúpula em Genebra em novembro de 1985. O diálogo foi tenso e pouco foi acordado. Um ano depois, os dois se encontraram em Reykjavík, em clima mais ameno, com pouco progresso.
Quando Gorbachev viajou a Washington em dezembro de 1987, ele e Reagan conseguiram assinar o tratado histórico limitando o alcance intermediário das forças nucleares.
"No início (Gorbachev) pensou que Reagan era muito conservador", disse Matlock.
"Mas com o passar do tempo, eles começaram a se encontrar mais e se tornaram amigos".
Muito depois de ser afastado da política russa, Gorbachev voltou aos Estados Unidos em 2004 para o funeral de Reagan.
"Acho que ambos tinham ideais semelhantes. Ambos odiavam armas nucleares e esperavam poder aboli-las", disse Matlock.
"Poucos em suas equipes acreditara que seria possível, mas foi."
Gorbachev, o algoz da União Soviética
Reverenciado no Ocidente por defender a liberdade e a mudança em uma época em que muitos pensavam que a Guerra Fria nunca terminaria, Gorbachev tornou-se uma figura odiada por muitos russos que o consideravam responsável pela destruição do outrora poderoso império soviético.
Enquanto estava no poder, muitas vezes optou pela paz ao invés do confronto, acelerando o degelo dos laços com o Ocidente graças às suas estreitas relações com líderes como o chanceler alemão Helmut Kohl e o presidente americano Ronald Reagan.
Uma lembrada frase da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher resume como era visto do outro lado da Cortina de Ferro: "Gosto de Gorbachev. Podemos fazer negócios juntos".
Mas quanto mais ele afrouxava as rédeas durante seu mandato (1985-1991), mais foi ofuscado pelo enérgico Boris Yeltsin, então um comunista em ascensão.
Quando a URSS entrou em colapso em 1991, Gorbachev já era irrelevante.
Ventos de mudança
Nascido em 2 de março de 1931 em uma família de camponeses na região de Stavropol, no sul da Rússia, Gorbachev cresceu com as dificuldades da Segunda Guerra Mundial e o governo repressivo do ditador Joseph Stalin, cujo regime condenou seu avô a nove anos em um campo de trabalho.
Desde pequeno, Gorbachev era brilhante e trabalhador. Aos 16 anos, recebeu a Bandeira Vermelha do Trabalho por ajudar com uma colheita recorde e, em 1950, conseguiu uma cobiçada vaga na Universidade Estatal de Moscou para estudar direito.
Cinco anos depois, o ambicioso graduado e sua jovem esposa Raisa retornaram a Stavropol, onde iniciou uma rápida ascensão nas fileiras do Partido Comunista, tornando-se o membro mais jovem do Politburo, aos 49 anos, em 1979.
Seis anos depois, assumiu o maior Estado do mundo e a segunda superpotência ao ser eleito secretário-geral do Partido Comunista em 1985.
Aos 54 anos e cheio de novas ideias, Gorbachev era um contraste marcante com os anciãos ideológicos que até então controlavam o Kremlin.
Sua política externa abalou a ordem mundial. Ele desativou o conflito nuclear entre os Estados Unidos e a URSS com acordos de desarmamento, retirou as tropas soviéticas do Afeganistão e afrouxou as rédeas dos países satélites do Leste Europeu.
Na Rússia, a perestroika e a glasnost provocaram ondas sísmicas. Dezenas de milhares de presos políticos foram libertados, entre eles o cientista e dissidente Andrei Sakharov.
Fim de uma era
Mas Gorbachev foi acumulando nuvens cinzentas. Sua tentativa em 1985 de reprimir o abuso crônico de álcool foi um desastre, minando o orçamento do Estado e ganhando o ódio dos camponeses amantes da bebida.
Seu incentivo à liberdade acelerou a desintegração do multiétnico império soviético.
Das repúblicas bálticas ao Cáucaso e à Ásia Central, movimentos de independência e lutas interétnicas abalaram a aparentemente invencível estrutura soviética, enquanto a glasnost trouxe uma onda de revelações vergonhosas sobre o passado sombrio da União Soviética.
Em 1989, os países do Leste Europeu derrubaram seus governos comunistas e o Muro de Berlim foi ao chão.
Em 1990, Gorbachev foi eleito o primeiro e último presidente da União Soviética, mas em poucos meses teve que enfrentar uma revolta dos comunistas linha-dura.
Um golpe de Estado em agosto de 1991 falhou, mas foi o desafiador Boris Yeltsin quem enfrentou os rebeldes e virou um herói nacional, enquanto Gorbachev estava sob prisão domiciliar na Crimeia.
Pouco depois, a União Soviética desapareceu e com ela o poder de Gorbachev.
Em um artigo publicado em 2016, ele admitiu sua parcela de responsabilidade pelo colapso do mundo soviético.
"Mas minha consciência está limpa", escreveu ele em um jornal russo. "Defendi a União até o fim por meios políticos."
Diante do ostracismo na Rússia, ganhou o Nobel da Paz em 1990, percorreu o mundo dando palestras, apoiou causas ambientais e realizou campanhas de arrecadação de fundos para sua fundação.
Datas mais importantes da passagem de Mikhail Gorbachev pelo poder
Desde a sua chegada ao posto de secretário-geral do Partido Comunista, em 1985, até a sua renúncia, em 1991, seguem as datas mais importantes da passagem de Mikhail Gorbachev pelo poder:
1985
- 11 de março: Mikhail Gorbachev, 54, é eleito líder do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).
- 15 de outubro: apresenta um plano de reconstrução econômica, a "perestroika".
1986
- 26 de abril: explosão na usina nuclear de Chernobyl, Ucrânia. O poder esconde a tragédia por dias, contribuindo para a contaminação de centenas de milhares de pessoas.
- 23 de dezembro: retorno a Moscou do dissidente e ganhador do Prêmio Nobel da Paz Andrei Sakharov, após sete anos de exílio em Gorki (Nizhny Novgorod).
1987
- 8 de dezembro: assina em Washington o tratado de eliminação de mísseis de médio alcance, durante sua terceira reunião de cúpula com Ronald Reagan.
1988
- 7 de dezembro: Anuncia na sede da ONU, em Nova York, que a URSS reduziria unilateralmente suas tropas no leste europeu e na parte europeia da URSS em 500.000 homens.
1989
- 15 de fevereiro: termina a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, após 10 anos de guerra.
- 16 de maio: reunião de cúpula em Pequim entre Gorbachev e o número um chinês, Deng Xiaoping, que sela a normalização, após 30 anos de divergências.
- 12/15 de junho: Gorbachev tem recepção triunfal em Bonn, na República Federal da Alemanha, e declara que o Muro "cairá quando desaparecerem as condições que motivaram a sua concepção".
- 7 de outubro: declara em Berlim Oriental, perante o líder Erich Honecker, da RFA, que "quem chega tarde é punido pela vida". Em 9 de novembro, o Muro de Berlim cai.
- 1º de dezembro: tem encontro histórico com o Papa João Paulo II.
1990
- 11 de março: A Lituânia declara sua independência da URSS. Em 13 de janeiro de 1991, tanques soviéticos entram em Vilnius (14 mortos e 700 feridos).
- 15 de março: Gorbachev é eleito presidente da URSS, para um mandato de cinco anos.
- 16 de julho: Gorbachev e o chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, concordam a respeito de uma Alemanha unificada, soberana e livre de pertencer à Otan.
- 15 de outubro: Gorbachev recebe o Prêmio Nobel da Paz.
1991
- 12 de junho: Boris Yeltsin é eleito presidente da Federação Russa por sufrágio universal.
- 31 de julho: Assinado em Moscou o tratado Start, primeiro acordo sobre a redução dos arsenais nucleares estratégicos americanos e soviéticos.
- 19 a 21 de agosto: tentativa de golpe de Estado em Moscou lançada por comunistas conservadores contra Gorbachev, que estava na Crimeia. Esse movimento motiva a suspensão do Partido Comunista e precipita a queda da União Soviética.
- 8 de dezembro: os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia constatam em Minsk que a União Soviética "já não existe".
- 25 de dezembro: Mikhail Gorbachev anuncia o encerramento de suas funções como presidente da URSS.
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