Em Lisboa, comida paraense ganha adeptos e ajuda a matar a saudade de casa
Estabelecimentos em Portugal atraem paraenses com saudade da culinária regional
O tradicional bairro de Campo de Ourique, em Lisboa, Portugal, apesar da localização central, nem sempre está incluído em rotas turísticas. Porém, quem o conhece, logo percebe que esconde alguns segredinhos bem atraentes da cidade, tendo sido palco do cotidiano de grandes nomes da literatura portuguesa, como o poeta Fernando Pessoa, que lá morava, e do Grupo Surrealista de Lisboa, que vez ou outra se reunia no antigo Jardim Maria da Fonte, e que tinha como membro o também famoso poeta Alexandre O’Neill.
É nesse cenário, por entre prédios azulejados e ruelas arborizadas, a menos de 200 metros da casa onde Fernando Pessoa morou, que há um pequeno café. Apesar do tamanho, logo se vê uma grande movimentação de pessoas que entram e saem do local. Vão ali não para degustar pastéis (para nós, bolinhos) de bacalhau, mas sim pães de queijo, coxinhas, quibes, brigadeiros e até cocadas. É nesse café, chamado carinhosamente de “Brasileiros de Ourique”, que muitos dos nossos conterrâneos se abrigam quando a saudade de comer uma comida típica do Brasil bate. É lá, também, que os paraenses podem lembrar do gosto da culinária amazônica, seja através de uma tigela de açaí ou dos sucos de cupuaçu e de graviola.
O café pertence ao casal de paulistas Gilberto Corrêa e Marilsa Corrêa. Casados, eles vieram com os filhos tentar uma vida nova em Portugal há três anos. Há pouco mais de dois, abriram o café. “Identificamos que não só em Lisboa, mas no bairro, há uma comunidade grande de brasileiros. Muitos deles moram ou trabalham por aqui. E que, em Campo de Ourique, existia uma carência de produtos brasileiros. Fizemos algumas pesquisas por entre os cafés da região, identificamos que os salgados vendidos eram diferentes da proposta que queríamos trazer”, ressaltou Gilberto.
Uma dessas diferenças, puramente cultural, é que ao contrário das padarias e lanchonetes brasileiras, os salgados em Lisboa costumam ser servidos “frios”, ou melhor, em temperatura ambiente. “Decidimos abrir um café com comidas típicas do Brasil e servir essas comidas quentinhas, como é o costume brasileiro”, explicou Gilberto.
Café
Ao longo da pesquisa que fizeram, também identificaram que, em Lisboa, o hábito de tomar café é muito mais frequente do que em São Paulo, por exemplo. “Fizemos um curso para aprender sobre os cafés locais, que possuem nomes e estilos diferentes do nosso. Então, aqui, na cafeteria, vendemos cafés típicos de Portugal, mas que são servidos com comidas brasileiras”, ressaltou Marilsa. O açaí também foi especialmente estudado pelo casal. “Pesquisamos muito o açaí. Fizemos várias visitas a fornecedores, até escolhermos o nosso, que vem da cidade de Castanhal, no Pará. Descobrimos que há açaí de diversas cores, inclusive até em pó”, afirmou Gilberto.
Os preços do café, com a densa conversão do euro para o real (que hoje permeia entre R$ 6,50 cada 1 €), variam. Uma coxinha grande, por exemplo, é vendida por cerca de R$ 9,75. A coxinha pequena, assim como o quibe e o pão de queijo em miniatura, é vendida por cerca de R$ 1,95 a unidade. Os sucos de frutas tropicais, entre eles o de cupuaçu e de graviola, ficam por volta de R$ 16,25 cada. Já o açaí é um dos itens mais nobres, e por isso um dos mais caros. Uma tigela (que pode ser servida com ou sem frutas ou granola), sai por volta de R$ 42,25. O local também funciona como uma espécie de mercadinho, onde é possível comprar, por exemplo, 500 gramas de farinha de mandioca por cerca de R$ 13. Aos sábados, vendem o prato da tradicional feijoada por volta de R$ 51,35.
O produto mais vendido no café é, em primeiro lugar, uma paixão brasileira: a coxinha. A venda diária das unidades grandes é de cerca de 90 por dia. Já as pequenas, diariamente, são vendidas por volta de 250 a 300 unidades. Em segundo lugar no ranking de vendas está o pão de queijo, que é vendido somente em versão pequena. A saída do produto é, também, de cerca de 250 300 unidades por dia.
“Acabamos por virar uma referência de culinária brasileira no bairro. As pessoas de outras nacionalidades estão também conhecendo e gostando. Tem um português que vem todos os dias aqui. Ele pede uma esfirra, um suco de graviola e um café. Temos também uma clientela de franceses que se apaixonaram pelo pão de queijo. Um foi fazendo propaganda para o outro e agora sempre tem franceses aqui em busca do nosso pão de queijo”, contou Gilberto Corrêa.
Culinária dos afetos
Paraense, a jornalista e cozinheira Taynah Meira de Moraes, realiza a sua dissertação de mestrado em “Alimentação: Fontes, Culturas e Sociedade”, na Universidade de Coimbra, em Portugal, sobre a identidade alimentar de Belém do Pará nos anos 1980. Esse também será o tema da sua tese de doutorado, que já começou a cursar, em “Patrimônios Alimentares: Cultura e Identidade”, também na Universidade de Coimbra.
Segundo Taynah, a culinária é um marcador identitário cultural muito forte, e isso se reflete nas pessoas que, como ela, moram longe das suas raízes. “Podemos chamar de marcador identitário, um determinado símbolo comum para uma população, como é o caso da maniçoba e o tacacá, por exemplo. A essa identidade também está ligada outros conceitos como ‘culinária dos afetos’, e o que trabalhamos como a ‘nostalgia’. Esses sabores são ligados à memória. A antropologia da alimentação pode explicar um pouco sobre esse orgulho e também sobre a importância de exaltar esses pratos, alimentos e ingredientes como símbolo da nossa identidade”, explicou.
Belém
A jornalista identifica, ainda, a cultura alimentar de Belém como uma "cozinha mestiça". “É aquela que é a junção da cultura indígena, africana e portuguesa, e se fundiu no que temos hoje. A professora doutora Sidiana Macedo, em sua tese ‘A cozinha mestiça: uma história da alimentação em Belém (finais do século XIX e meados do século XX)’, aborda justamente o estudo e a história dessa culinária, fazendo uma análise dos nossos ingredientes, que já podiam ser encontrados e consumidos desde o século XIX, e como essa cozinha resultou do encontro dos indígenas, pessoas escravizadas e colonizadores”.
Os conhecidos isopores repletos de produtos típicos do Pará – marca registradas dos voos que partem de Belém para diversos lugares do Brasil e do mundo - surgem a partir dos primeiros restaurantes paraenses no eixo Rio de Janeiro - São Paulo. “Encontramos no jornal ‘O Globo’, da década 1980, as primeiras propagandas de restaurante paraense na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Isso reflete a necessidade de já naquela época ter restaurantes especializados para paraenses, e são sinais dessa expansão. De lá para cá, podemos acompanhar o crescimento exponencial da nossa culinária e os nossos ingredientes espalhados pelo mundo, como o açaí”, destacou Taynah.
Ela, assim como diversos paraenses que moram fora, sente não na pele, mas, nesse caso, no paladar, a falta dos produtos locais. “Trago na mala o que dá. Brincadeiras à parte, graças à globalização e também a esse movimento de exaltação dos nossos produtos regionais, conseguimos encontrar alguns ingredientes aqui em Lisboa. O açaí encontramos em quase todo lugar, mas confesso a minha resistência a esse açaí, que geralmente é saborizado. Encontramos o tucupi, apesar de não estar disponível sempre, à venda nos mercados brasileiros, assim como o cupuaçu em polpa e em geleia. Arroz de pato é algo extremamente comum aqui, infelizmente não tem tucupi e jambu, mas como bom paraense, quando temos, colocamos”, contou.
Tucupi e maniçoba
O litro de tucupi em um mercado brasileiro, por exemplo, custa cerca de R$ 65. Óbvio que se comparado aos valores vendidos na capital paraense, é considerado caro. Mas, para aqueles que moram longe, vez ou outra é uma forma de driblar as saudades. Até mesmo a maniva para o preparo da maniçoba deu-se um jeito de encontrar. “Aqui há um produto da culinária africana chamado saka-saka, que é a folha da mandioca moída e pré-cozida. Na África, a tradição é comê-lo com peixe, porém, se preparada como uma tradicional maniçoba, fica igualzinho. Não tem erro. Sim, é possível fazer maniçoba em Portugal!”, garantiu Taynah.
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