Crise das Lojas Americanas relembra casos de outros grupos empresariais

Além do impacto econômico, há também o prejuízo afetivo para quem, de alguma maneira, tinha relação com essas marcas

O Liberal

O Brasil acompanha, desde o início de janeiro, com certa surpresa e temor, o cenário de crise que ronda diferentes redes do varejo brasileiro. Na última quinta-feira, 9, a Justiça de São Paulo decretou a falência da Livraria Cultura, que estava em processo de recuperação judicial e deve encerrar os negócios nas duas últimas lojas físicas localizadas em São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS), bem como do seu e-commerce.

A livraria tinha um plano de recuperação vigente desde 2018, quando informou que tinha cerca de R$ 285,4 milhões em dívidas com bancos e fornecedores, porém a empresa já enfrentava dificuldades antes disso devido ao encolhimento do mercado editorial e expansão das vendas por meios digitais. Em 2021, outro plano foi aceito, mas segundo o juiz Ralpho Waldo De Barros Monteiro Filho, o acordo não era cumprido.

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Entre os problemas detectados e usados como justificativa para declarar a falência, o magistrado cita a ausência de quitação das dívidas trabalhistas, descompromisso com o envio de documentos, além do vencimento do período de pagamento a credores. A dívida atual da empresa seria de R$ 1,6 milhão.

Lojas Marisa apresentam dívida de R$ 600 milhões

O caso da Livraria Cultura ocorre em meio às incertezas que envolvem outras empresas. Na semana passada, a Lojas Marisa, referência no segmento de confecções e moda intima feminina, também anunciou que está atuando para reescalonar as dívidas com seus credores, que são estimadas em R$ 600 milhões.

Porém, o caso mais emblemático é o das Lojas Americanas, uma das maiores varejistas do País, que também é uma empresa de capital aberto e com ações na bolsa de valores. Com uma dívida junto a credores estimada em R$ 40 bilhões, a companhia protocolou pedido de recuperação judicial ainda no mês de janeiro e se mantém em funcionamento no mercado. No entanto, há muitas especulações sobre uma possível falência e encerramento da marca - um caminho não exatamente novo quando pensamos na história do varejo no Brasil e no Pará, de modo especial.

Muitos paraenses com mais de 30 anos certamente lembram das Lojas Brasileiras (Lobras, que era conhecida também como Quatro e Quatrocentos), que eram uma espécie de rival das Lojas Americanas e que fechou as portas em 1999, com uma dívida de R$ 100  milhões. Processo semelhante vivenciou a Mesbla, que encerrou as atividades na mesma época. Quando falamos do mercado local, não podemos deixar de citar a Visão ou a rede de supermercados Nazaré, que teve prédio arrendado pelo Grupo Líder

Para o economista e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Pará e Amapá (Corecon-PA/AP), Nélio Bordalo Filho, as dificuldades e desafios de cada grupo varejista e mesmos de shoppings centers possuem suas particularidades, mas também ocorreram similaridades em alguns aspectos, que culminaram com o encerramento das atividades dessas companhias aos longos dos anos, no Brasil e no Pará. 

Entre esses fatores, Nélio cita: estratégia de vendas em muitas parcelas; necessidade de capitalização permanente, através de empréstimos e financiamentos bancários ou de seus acionistas investidores, o que torna vulnerável a rede de lojas; inflação elevada, gerando uma diferença significativa no preço de aquisição da mercadoria em relação ao preço de venda; a ascensão do comércio eletrônico e digital no Brasil; a concorrência estrangeira que entrou no mercado brasileiro com grandes marcas internacionais, e, ainda, problemas na sucessão de empresas familiares, que passam de geração para geração suas gestões, arriscando o que já havia sido conquistado pelos fundadores, ou seja, a má gestão. “Também temos a questão da contabilização errada das operações de risco sacado, que são aquelas em que o grupo utiliza bancos para quitar seus fornecedores e alongar seus prazos de pagamento. Esse foi o caso recente das Lojas Americanas, pois não contabilizava os juros extras e altos dessas operações, o que, aparentemente, foi ‘maquiado’ nas demonstrações contábeis”, explica. 

Empresas podem ter dificuldade de acompanhar mudança do cenário econômico

O professor universitário e doutor na área de Administração de Empresas, Eduardo Vasconcelos, concorda. Para ele, muitas empresas têm dificuldade de acompanhar determinadas mudanças no ambiente, sejam elas de ordem comportamental, de hábitos de consumo, ou mesmo de ordem econômica e tecnológica. “As empresas funcionam como uma espécie de organismo, com suas diferentes áreas funcionais e setores, que estão interligados. Então, quando, por algum motivo, uma área ou setor está deficiente, como o setor financeiro, isso acaba impactando numa outra área da organização. E se o problema não for rapidamente resolvido, começa a gerar uma reação em cadeia. Uma área vai impactando a outra, levando a situações que podem ser difíceis de serem resolvidas a longo prazo. Além disso, empresas que possuem acionistas acabam tendo uma forte pressão por resultados. Aliado a esses aspectos, você tem auditorias que revelam rombos financeiros ou irregularidades”, detalha. 

Para o especialista, todos esses aspectos juntos acabam afetando a credibilidade da empresa perante o mercado, os próprios acionistas e fornecedores, o que gera uma sensação de falta de respeito com seus próprios clientes. “Então, a confiabilidade fica abalada, o que vai gerando o descrédito por parte de órgãos investidores e pelo próprio setor financeiro, como os bancos, e aí se começa a perceber com isso que a rede de relações dessa empresa fica extremamente fragilizada”, avalia. 

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Da mesma forma, o professor acredita que empresas gerenciadas dentro do âmbito familiar também podem acabar tendo problemas, por falta de preparo dos gestores. “Os herdeiros nem sempre possuem a formação necessária e o interesse ou a visão daquele fundador. Muitas vezes também acontecem disputas internas, entre determinadas diretorias, que podem ser de ordem familiar ou não, o que pode acabar levando essas organizações ao declínio”, finaliza. 

Para historiador, marcas também representam lugares de memória 

Para o historiador Jaime Cuellar Velarde, sempre que uma construção desaparece em uma cidade, seja ela uma rua, um prédio ou uma loja, isso afeta diretamente a afetividade de um determinado grupo de pessoas. É por isso que tanta gente sente falta de conglomerados empresariais ou comerciais que já não existem mais, como tantos citados nesta reportagem. 

“As cidades são os palcos onde os indivíduos constituem suas memórias e desenvolvem suas tramas, as quais, muitas vezes, envolvem histórias de sucesso, de conquistas, de perdas, também. Mas, acima de tudo, as cidades são os palcos onde a vida se desenvolve, assim, os lugares de memória não são apenas construções de cal e pedra, os lugares de memória se entrelaçam com os interesses econômicos, políticos e econômicos também. Aqui em Belém, nós tivemos uma série de construções com nomes, marcas ou logomarcas, que fizeram parte da história de diversos grupos sociais e, no momento em que essas lojas ou monumentos ou marcas desaparecem, é como se houvesse uma tentativa de apagamento da memória, da afetividade de determinados sujeitos”, analisa. 

Segundo ele, os lugares de memória de uma cidade não são somente espaços geográficos pura e simplesmente, mas sim lugares em que o afeto também é construído e alimentado. “Destruir um prédio é, muitas vezes, também, destruir um lugar de memória de alguém”, conclui. 

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