MEP: silenciamento e apagamento da negritude na história do Pará refletem em acervo
Com embranquecimento de personalidades históricas e vestígios de uma população escravizada, acervo do Museu do Estado do Pará é ponto de reflexão sobre racismo histórico
O Museu do Estado do Pará (MEP) não tem obras que, diretamente, remetem à memória da população preta paraense. Tanto em obras que retratam essa parcela considerável de pessoas que, historicamente, formaram população e identidade amazônicas; quanto em obras feitas por artistas negros. Mas não é por isso que visitantes ficam alheios às discussões sobre racismo e contextos históricos ao visitar o museu. Muito pelo contrário: são levados a pensar, criticamente sobre a ausência desse acervo e se transportar à época das origens do museu, no século XVIII.
A historiadora Cassia da Rosa, diretora do MEP, explica que a visita ao museu pode levar à reflexão crítica sobre o apagamento da memória da população preta brasileira e africana. O que se poderia ter dessas representações foi "embranquecida": o maestro Carlos Gomes e o ex-presidente Nilo Peçanha. Ambos poderiam ser considerados negros, ainda que não fossem retintos. Mas nos retratos deles, que compõem o acervo do museu, são representados como se fossem brancos. Algo que norteou uma discussão recente sobre o escritor Machado de Assis, cujas imagens retratadas foram "embranquecidas".
O imóvel que abriga o museu foi construído em 1761. A obra, certamente, aponta Cassia, foi executada por pessoas negras escravizadas. No acervo, a historiadora cita uma "escarradeira", um objeto cultural da época, que servia para quem mascasse fumo, cuspisse lá. Era um recipiente limpado por pessoas negras escravizadas que cuidavam das tarefas domésticas do imóvel.
Somente na passagem do século XIX para o século XX, observa Cassia, começa uma política de aquisição de obras de arte para a casa que hoje abriga o MEP e que, no passado, era o Palácio de Governo. "Era um momento e uma sociedade muito mais racista. O que ficou de acervo é relacionado a uma época republicana, com silenciamento ou apagamento dessa memória. Parece com exclusão mesmo de figuras e personalidades negras", analisa.
"Esse silenciamento é tema dentro do museu. Se explica o contexto e a aquisição do acervo. Nos apropriamos e abrimos os olhos para esse tema quando, em 2018, recebemos uma pesquisadora do Rio de Janeiro, que buscava essa representação negra nas telas e obras em museus. Então não é porque não temos as obras que representam essa história, essa memória da população negra, que não podemos falar sobre isso", conclui Cassia.
Mabe: acervo remete à memória da população preta paraense
O Museu de Artes de Belém (Mabe) possui um acervo com obras que remetem à memória e à representatividade da população negra do Pará. Porém, por enquanto, segue fechado para reformas. A reabertura dependerá da próxima gestão, que assume em janeiro de 2021, para concluir as reformas e anunciar quando o público — mensalmente, a média de visitantes é de 2 mil pessoas — poderá retomar as visitações. E então a instituição voltar a cumprir o papel educativo e cultural de retratar a sociedade e história nas obras.
"Cabe às instituições museológicas estimular a visibilidade de questões que estão na ordem de nossos dias, de algo que foi por muito tempo silenciado, da contribuição do povo negro na construção desta cidade e do país, em suas mais diversas especificidades", ressalta Nina Matos, curadora do Mabe. Ela destaca três obras: “Retrato de Preto Velho”, da pintora Dahlia Déa; "Vendedora de Cheiro", de Antonieta Santos Feio; e também de autoria de Antonieta Feio, a “Mendiga”.
“Retrato de Preto Velho” foi feita em 1936, remetendo à imagem de Pai João, antigo tema cancioneiro da escravidão no Brasil. Estudiosos, explica Nina, apontam que a obra participou de um salão de arte em Belém, alusivo às comemorações do Cinquentenário da Abolição da Escravidão, em 1938.
"Vendedora de Cheiro", pintada em 1947, "estampa aspectos da contribuição cultural do povo negro na Amazônia, apresentando o retrato de uma mulher trabalhadora, de aparência muito comum a todos nós, na qual a artista evidencia uma carga mística, nos acessórios sincréticos que a mesma ostenta: um crucifixo e uma figa de pau d' Angola, amuleto de pajelança cabocla para afastar todo mal. Seu penteado é característico das mamelucas paraenses, ornado com jasmins brancos e rosas vermelhas. Nas mãos, um cesto com os cheiros típicos do Pará. Preciosismo de detalhes característicos da pintura realista de Antonieta, em que a artista ressalta aspectos individuais do retratado", detalha Nina.
"Na emblemática 'Mendiga', realizada em 1951, somos magnetizados pelo olhar de abandono da pobre senhora de roupa surrada, com um velho chapéu, onde pode-se visualizar algumas moedas esmoladas. Ainda chama atenção a carga mística sincrética religiosa, no acessório humilde que a mesma ostenta: uma corrente com uma medalha, cuja estampa nos remete à uma representação de Nossa Senhora ou uma Iemanjá. Paira essa dúvida", explica a curadora.
Ainda sobre "Mendiga", Nina analisa que, possivelmente pela influência do modernismo, "além de ser uma obra de beleza impactante, pode ser considerada um ícone de referência, pela mesma continuar falando e refletindo no presente, as presenças histórica e cultural dos descendentes de africanos e suas escravizações e marginalização constantes.
Da condição social ainda atual da mulher negra periférica; da condição ainda vergonhosa de párias; relegado ao povo negro; da violência às quais são submetidos; da dor das mães negras que presenciam o genocídio de seus filhos... a ‘Mendiga” ainda agoniza nas vias públicas deste país de preconceitos, racismo e abismos sociais", comenta.
"O museu está em sintonia e ciente de seu compromisso social junto à comunidade, não só na educação informal, junto a alunos e professores da rede de ensino, como possibilitando o acesso de acadêmicos, da arte, história e demais saberes; curadores, pesquisadores e público em geral, às coleções, para que sejam estudadas, pesquisadas, difundidas, possibilitando que a sociedade aproprie-se desse patrimônio, entendendo que este acervo é fonte de conhecimento de nossa própria identidade amazônica", conclui Nina Matos.
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