Política, soft power e jazz no Oscar
Leia o texto do professor e pesquisador Relivaldo Pinho, escrito especialmente para O Liberal.
Em 1960 o Congo conseguiria a sua independência e Patrice Lumumba, o líder da resistência contra o domínio Belga, se tornaria o primeiro-ministro do país.
É o auge da Guerra Fria e os Estados Unidos lançam uma política de difusão cultural do jazz por algumas partes do mundo, enviando alguns de seus mais importantes músicos e literalmente jogando rádios de paraquedas.
Como se não bastasse essa mistura entre descolonização, interesses políticos e comerciais, a luta pelos direitos civis é um tema incontornável no país norte-americano, governado pelo herói da Segunda Guerra, Dwight Eisenhower.
Essa é uma parte do complicado cenário do documentário “Trilha sonora para um golpe de estado”, dirigido pelo cineasta belga Johan Grimonprez, que concorre (para quem se importa) ao Oscar de 2025.
Para conquistar os corações e mentes dos países de outros continentes, como o Congo, o Departamento de Estado dos Estados Unidos escala alguns ícones do Jazz para visitá-los.
Os trompetistas Louis Armstrong e Dizzy Gillespie e a cantora e pianista Nina Simone são alguns desses embaixadores do jazz.
O jazz é a trilha sonora que pontua na tela os sentimentos conflitantes dos bailes alegres com Satchmo (como Armstrong era também conhecido) e os lamentos cantados por Simone.
Essa ação na qual um país mais forte busca difundir seus ideais e sua cultura para influenciar, seduzir e conquistar outros países não é nova.
Povos e autores antigos já defendiam esse uso de um poder, uma força mais branda, suave (“soft power”) para atingir seus objetivos internacionais.
O termo “soft power” foi desenvolvido em 1990 por Joseph Nye para tratar da força dos Estados Unidos exercida internacionalmente.
O jazz serviria nesse período da Guerra Fria como um “soft power” que pudesse penetrar em países de influência soviética nos quais essa influência era uma ameaça, como no Congo.
Naquele período, os interesses das grandes potências no Congo estão em jogo, principalmente pela posição geográfica do país e por suas riquezas naturais, entre elas o urânio usado nas primeiras bombas atômicas.
O documentário defende a tese de que o rearranjo político realizado principalmente por norte-americanos, soviéticos e pela ONU, as guerras civis e as degradantes condições socias do povo do Congo fazem parte de uma única caldeira que não para de explodir até hoje.
Louis Armstrong antes empolgado com sua turnê pelos países africanos, ao perceber que fora usado politicamente como uma cortina de fumaça, abandona a empreitada e ameaça até se mudar para Gana.
Nina Simone também manifesta enorme descontentamento diante dos propósitos dos burocratas e da CIA.
O ritmo incontrolável do documentário segue as batidas do estilo musical que deveria espalhar a imagem norte-americana para o Congo e demais países da África.
O espectador pode ficar meio atordoado com esse ritmo e não compreender o sentido histórico e político do tema que o filme trata.
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Mas o filme, tecnicamente muito persuasivo, não deixa nenhuma dúvida de que é a história e suas várias facetas expostas ou encobertas que pode explicar a situação do povo congolês.
Todos os atores políticos internos e externos estão nessa arena, mas é à participação externa do primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchov que o filme devota imensa atenção.
Khrushchov aparece deplorando o jazz, condenando o imperialismo ocidental na assembleia da ONU e criticando o racismo nos Estados Unidos.
No filme, ele abraça todos os governantes que de algum modo se alinham à União Soviética e esbraveja sobre as atitudes do ocidente e da ONU no Congo.
O líder russo parece quase um herói pelas lentes do diretor belga.
Não é demais lembrar que Khrushchov foi aliado de Stalin durante o Grande Expurgo nos anos de 1930, que culminou nas mortes e deportação para os Gulags e campos de trabalho forçado de mais de um milhão de pessoas.
Ele sacudiria a política internacional em 1956 ao relatar em um congresso do partido a brutalidade dos atos cometidos por Stalin, fazendo com que o mundo tivesse uma noção do que aconteceu naquele período.
Patrice Lumumba, o primeiro ministro do Congo, seria deposto, preso e morto em 1961, e o documentário mostra que os arquivos posteriormente revelados indicam a participação das potências ocidentais e seus governos satélites na trama.
O mundo estava envolto em uma crise na qual os povos com menos poder internacional sucumbiam, como no caso da República Democrática do Congo, às influências dos mais diversos interesses.
Nenhum desse interesses, evidentemente, estava distante da arena política internacional, do comércio, da exploração, das guerras internas e, naquele momento, especialmente da cultura.
Na reunião do Conselho de Segurança da ONU, que ocorreu após o assassinato de Lumumba, a expressiva cantora Abbey Lincoln e o performático baterista Max Roach invadem o local em protesto.
Mas em cenários assim, como mostra o documentário, nem o mais poderoso jazz de Armstrong consegue deter o poder das notas sussurradas ou explosivas da política e do poder.
Relivaldo Pinho é pesquisador, escritor e professor.
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