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Nosferatu, a sombra que não esconde mais

Leia o texto do professor e pesquisador Relivaldo Pinho, escrito especialmente para O Liberal.

Relivaldo Pinho (especial para O Liberal)

Admitamos, a maioria das pessoas nunca viu o primeiro “Nosferatu”, de Murnau, de 1922. Dito essa obviedade, é preciso dizer outra, falar do último “Nosferatu”, de 2024, só faz sentido se houver alguma menção ao primeiro.

Não sei o quanto o diretor do mais recente filme sobre o vampiro, Robert Eggers, diz ter se baseado no filme anterior. Na verdade, isso não importa.  Só importa para os textos sobre curiosidades e críticos profissionais (sic).

A tecnificação da crítica não está assim tão separada do predomínio da técnica em um filme. Esse é um debate antigo que remonta, como sabemos, à filosofia da arte grega. Mais especificamente, a relação entre técnica e arte.

E esse debate está aqui presente nessa nova versão do Conde Orlok. Exatamente porque você começa a ver essa nova versão e imagina que sim, as imagens são bonitas, o figurino é bem feito, a história segue um ritmo (todos esses são clichês da crítica profissional) e a coisa se encaminha para uma surpreendente refilmagem de um clássico.

Até que a voz sibilante do vampiro recoloca você na realidade do cinema de horror contemporâneo. Todos os monstros atuais que falam ou emitem algum som, usam efeitos semelhantes.

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Para serem assustadores é preciso que inequivocadamente eles emitam uma voz metálica, gutural, ou sibilante e avisem, “vejam, somos realmente monstruosos!”.

É isso. A técnica nesse cinema, especialmente no cinema de horror, é um reforço redundante do seu conteúdo.

Fantasmas, bruxas e vampiros devem parecer adornados com todos as marcas daquilo que o próprio cinema tomou como terrífico.

Não faltam aí nem as cenas de sangria desvairada, nem as crises convulsivas da jovem possuída pelo mal (já vimos isso em algum lugar, certo?)

E, em uma das cenas mais originais do filme, quando o Conde acaba de chegar na pequena cidade de Wisburg ele deita a sombra da sua mão sobre a cidade amaldiçoando-a.

Sim, estimado leitor, as mãos que são um dos elementos mais marcantes do “Nosferatu” de 1922, porque elas compõem um personagem que usa sua expressão para transmitir o horror, tornam-se, nessa adaptação atual, um elemento de efeito especial.


Max Schreck que interpreta o vampiro de Murnau não se tornou lendário à toa. Ele foi tão impactante que seria referenciado, filmado e estudado até hoje.

Mas lá era não só a interpretação realmente aterrorizante de Schreck, mas, como se sabe, a representação expressionista que, como já escrevi em outro momento (“Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita”), nos coloca diante de alguns dos temas mais importantes do humano, o infamiliar (“Das Unheimliche”).

Lá, esse infamiliar (na definição que Freud toma de Schelling como “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona”) nos é mostrado através de um horror preenchido pelo cenário, pela possibilidade de interpretação e por aquilo que as sombras mostram ocultando.

No terror gótico (sic) desse vampiro atual, nada é sugerido, nada é ocultado. Tudo é terrivelmente explícito, tudo é explícito terrivelmente.

O cinéfilo (sic) deve estar se perguntando se não temos essa mesma estética, por exemplo, no “Drácula” (1992), de Coppola. Afinal de contas, o filme foi chamado por alguns de “a ópera de sangue”.

Esteticamente é a distância entre nosso trabalho de biologia em cartolina da 7ª série e os pombos e coelhos desenhados por Picasso aos 11 anos. No “Drácula”, de Coppola, a ópera flui através do sangue. No “Nosferatu”, de Eggers, o sangue é a única coisa que flui. Cartolinas, coelhos e pombos diferentes.

Talvez a cena mais famosa do Conde Orlok, de 1922, seja sua subida na escada em direção ao quarto da jovem, a cena que ficaria no imaginário de todos, por mostrar as sombras do vampiro ascendendo ao amor e à morte.

Naquele final, Murnau coloca o vampiro diante da jovem e nós sabemos o que acaba de acontecer quando seu marido abre a porta. Mas nada nos foi mostrado. No “Nosferatu” atual, aquilo que não vimos no clássico expressionista, nos é mostrado em close, explicitamente, em carne e sangue.

O vampiro de 1922 precisa das sombras para ser mostrado. No vampiro atual, a sombra não esconde mais nada.

Relivaldo Pinho é escritor, pesquisador e professor do Centro Universitário Fibra.

Cinema