MENU

BUSCA

Jurado número 2, de Clint Eastwood, quando a incerteza é a lei

Leia o texto do professor e pesquisador Relivaldo Pinho, escrito especialmente para O Liberal.

Relivaldo Pinho (especial para O Liberal)

O novo filme de Clint Eastwood, “Jurado número 2”, não é um filme clássico de tribunal no qual, dentre tantos clichês, alguém é preso ou salvo na última hora por uma prova, uma testemunha, um fato inesperado. É um filme sobre a incerteza, ou, para sermos certos, é sobre a falibilidade do indivíduo e de suas instituições.

Justin Kemp (Nicholas Hoult) é um homem jovem, ex-alcoólatra que escreve para a imprensa local, sua esposa está em uma gravidez de risco e que é escolhido para participar de um júri popular que julga um caso de homicídio.

Ele descobre que o caso em questão está diretamente ligado à possibilidade de ser ele o verdadeiro culpado. Enredado pela situação, ele procura modificar a opinião do júri que, em um primeiro momento, vota unânime pela condenação do acusado.

Trancados em uma sala para deliberar sobre seus votos, após as dúvidas lançadas por Kemp, os jurados começam a se questionar sobre suas certezas em relação à culpa do réu. As particularidades de cada um dos votantes se afloram e interferem em seus julgamentos, levando o veredito a um impasse.

É claro que algum cinéfilo (sic) já deve ter escrito que a grande referência aqui é o maior filme sobre julgamento já feito, o incomparável “12 homens e uma sentença” (“12 Angry Men”, 1957), de Sidney Lumet, o clássico que se passa todo em uma sala na qual os jurados devem deliberar sobre um crime.

Se o estimado leitor puder faça uma grande sessão e veja os dois filmes. Você perceberá o quanto da genialidade de Lumet está presente no filme de Eastwood.

Mas o mais importante aqui é pontuar que “Jurado número 2” vai além dos julgamentos e interpretações dos jurados (e isso de modo algum é um defeito do filme anterior), mas se estende para uma contundente crítica tanto à nossa certeza sobre nossos julgamentos e escolhas, quanto sobre a legitimidade das instituições.

Afinal de contas, um provável inocente poderá ser condenado à prisão perpétua em um sistema que envolve não somente as decisões dos votantes, mas uma eleição para a promotoria do estado pleiteada pela advogada de acusação que tem como uma de suas bandeiras a violência contra a mulher.


As certezas dos jurados que começam a cair são acompanhadas pelas dúvidas lançadas sobre o sistema. Se Kemp não estivesse no Júri ele teria uma crise de consciência Uma injustiça se consumaria?

O começo do filme faz a alusão a essa dúvida quando a deusa da justiça aparece na tela iniciando a narrativa, provocando no espectador um questionamento sobre a infalibilidade dos homens e de seus sistemas.

Verdade e justiça, um dos binômios que formam a ética, a moral e a modernidade, são os temas em questão.

Mas a sociedade moderna nos levou a acreditar em muitas certezas, presos, de certa forma, em um princípio iluminista de que a razão é a dádiva que define o homem e a vida. Pela racionalidade e necessidade acreditamos no estado, no sistema de justiça no nosso bom senso e no dos outros.

Bom, isso em tese. Em tese porque a modernidade está longe de ser a fiel depositária do princípio cartesiano da racionalidade como a grande condutora da existência.

Estado, poderes do estado e poderes privados e indivíduos sempre suscitam dúvidas, inexatidão, incertezas em suas ações.

Diríamos que é assim, porque o humano é assim, mutável, incerto e não um autômato a reagir da mesma forma aos mesmos comandos.

Daí precisarmos de códigos, regras, padrões que forcem nossos atos a seguirem determinados caminhos.

Max Weber foi quem melhor analisou essa condição do ponto de vista do poder. Esse poder coercitivo que nos empurra para o cumprimento de normas, regulamentos e leis ele denominaria de poder (dominação) racional.

Ele demonstrou a conexão necessária para o desenvolvimento da modernidade e do capitalismo entre, por exemplo, o estabelecimento da necessária burocracia (um tipo ideal, na acepção weberiana, que estabelece padrões rígidos das ações e comportamentos) e do direito, fundamentados em uma racionalidade baseada nas instituições e suas leis como forma de objetividade e de previsibilidade.

A uma determinada ação fora dos padrões legais, um homicídio, por exemplo, deve corresponder, pela objetividade racional das normas, um tipo de punição, sustentada nos critérios previamente definidos que a norteiam.

O filme de Eastwood coloca em xeque exatamente o funcionamento desses pressupostos e da racionalidade que os sustenta. 

É preciso colocar a verdade e a justiça lado a lado novamente, ou para assegurar os próprios interesses e o funcionamento do sistema, verdade e justiça nem sempre caminham juntas?

VEJA MAIS

Pedro Veriano: um desbravador do cinema e da história
Leia o texto do professor e pesquisador Relivaldo Pinho, escrito especialmente para O Liberal.

Diferença entre Globo de Ouro e Oscar: conheça as características das premiações
No Globo de Ouro deste ano, Fernanda Torres conquistou o prêmio de Melhor Atriz em Filme de Drama pelo papel de Eunice Paiva em “Ainda Estou Aqui”

É isso que se questionam os jurados, o jovem casal e a advogada de acusação. Ela também começa a duvidar se está acusando o homem certo e, quando percebe que pode estar errada, questiona o próprio Kemp.

É Kemp quem agora traz essa argumentação para o filme, dizendo que ela, a advogada, poderá escolher entre prender um homem culpado, mas um bom homem e destruir sua família, ou um homem inocente, mas um homem mau.

Aqueles que estavam repletos de certezas sobre a culpa e a inocência do acusado já não as possuem mais. 

O indivíduo e os sistemas racionais foram implodidos por aquilo que caracteriza, mesmo que nós não admitamos, o humano e seus aparatos técnico-burocráticos, sua falibilidade.

Em uma das cenas finais do filme, após o veredito que condena o acusado, o advogado de defesa vai ao escritório da advogada de acusação, agora eleita promotora do estado.
Ele a presenteia com uma planta (parece a planta que no Brasil, em algumas regiões, chamamos de Espada de São Jorge, nada mais sugestivo) dizendo que a planta cresce com a indiferença.

É uma cena síntese. É um fala mortal para as convicções que eram inabaláveis sobre o indivíduo, sua moral e sua justiça.

Esse mundo agora está desencantado dessas ilusões. Sua única certeza é que a incerteza é a lei.

Relivaldo Pinho é pesquisador, escritor e professor do Centro Universitário Fibra.

Cinema