Adília Lopes: obra da poeta portuguesa reverbera em artistas paraenses
Ela faleceu às vésperas de 2024, aos 64 anos, mas sua obra poeticamente densa é referência na literatura mundial
A poesia viaja de navio e de rabeta, toca fado e carimbó e (re)cria tempos e mundos para falar das pessoas e de tudo. Assim, a morte da poeta portuguesa Adília Lopes, no último dia 30, finalzinho de 2024, não impede que a obra dela permaneça sendo apreciada na Amazônia, por exemplo, precisamente no estado do Pará, onde atuam o cantor e compositor Arthur Nogueira, que teve uma parceria literária com Adília, e o poeta Ney Ferraz Paiva, admirador do trabalho dessa autora lusa.
“Acabo de ler, com tristeza, a notícia da morte da poeta portuguesa Adília Lopes. Realizei o sonho de ser seu parceiro na canção 'A propósito de estrelas'. Recentemente, falei de Adília, li um poema e contei a história de nossa canção transatlântica no @peixevoador.podcast. Agora, torço para que sua crença esteja correta: “acredito que no Céu / haja bibliotecas / e se possa ler e escrever.” “, postou Arthur Nogueira tão logo soube do falecimento de Adília Lopes. No mesmo dia da morte de Adília, no dia 30 de dezembro de 2024, Arthur postou uma interpretação da música somente em voz e violão. Essa homenagem pode ser conferida aqui, além do single.
Arthur Nogueira conta como tomou conhecimento da morte de Adília. “Li a triste notícia da morte de Adília Lopes no jornal português ‘Público’ “. Ele revela como se deu a parceria com a poetisa. “Coloquei música no poema ‘A propósito de estrelas’, que considero um dos mais bonitos da Adília. Fiz a canção, mas pensei que jamais obteria a autorização para gravá-la, uma vez que a Adília, nos últimos anos, se tornou bastante reclusa. Suas aparições públicas eram raras, mesmo em eventos literários. Mostrei a canção para amigos no Brasil que pudessem ter contato com ela, mas não obtive sucesso. Até que a poeta Angélica Freitas sugeriu que procurasse a editora da Adília em Portugal, a Assírio & Alvim. Mandei a canção por e-mail e, alguns dias depois, recebi a seguinte resposta deles: "A Adília Lopes ficou com um sorriso quando ouviu o que enviou e disse que sim." Lancei ‘A propósito de estrelas’ como single em 2020”.
“Adília sempre reconheceu a influência de Sophia de Mello Breyner Andresen, por exemplo, mas construiu uma obra original, que se destaca entre os contemporâneos da poesia portuguesa. Fã de Clarice Lispector também, ela transitou, com personalidade e desenvoltura, entre a profundidade e a superfície, tratando de temas muitas vezes tristes e trágicos com crueza e humor. ‘Ficar com um sorriso’, como ela disse ao autorizar nossa canção, é o que acontece comigo toda vez que leio seus poemas. Quando penso em Adília, lembro da origem latina da palavra "esquisito", que tem o sentido de "requintado", referindo-se a algo raro, valioso ou altamente considerado”, diz Arthur Nogueira.
Despida
Ney Ferraz Paiva mora em Belém. Ele é poeta e autor dos livros “O desastre toma conta de tudo” (2019), “Não era suicídio sobre a relva” ( 2019 2ª edição) e “Ontem disseram que o mundo ia acabar” (2024). Ney destaca que “Adília Lopes publicou mais de 20 livros, nos quais manteve um diálogo inovador com poetas da tradição como Luís de Camões e Fernando Pessoa e autoras da contemporaneidade como Clarice Lispector (no livro “Clube da poetisa morta”, 1997), adotando uma escrita peculiar, lúdica, em que entrava também elementos da sua vida pessoal, procedimento que desestabilizou o traço ficcional da sua própria poesia”.
Poeta Ney Ferraz Paiva: uma poetisa com um estilo refinado (Foto: Divulgação)
“Adília estava interessada nos fluxos da vida, e nesse sentido manteve uma conversação aberta com o mundo, era nômade, estabeleceu vários campos de intercessores entre poetas e prosadores da língua portuguesa e da grande literatura, como Marcel Proust, fazendo uso de intertextualidades, jogos de ironia, e um anedotário cotidiano e humorístico”, aponta Ney Ferraz Paiva.
Ele observa que essa autora “interferiu na poética, sem ir aos pontos originários, comuns do debate”. “Ela não queria fazer andar a poesia, não queria fazer um movimento geracional, e sim indagar o poema, sua forma e concepção, colocando em dúvida os seus efeitos, legados e estilos, sem, no entanto, se tornar reflexiva. Ela tentava o tempo todo se forjar como poeta-criadora. Desde sua estreia em 1985 com o livro “Um jogo bastante perigoso”, utilizou sempre uma linguagem concisa, elaborada, que ia direto ao ponto, sem excessos retóricos e palavras de ordem. Era perceptivelmente uma linguagem de apelo erótico, que tentava “tirar dela” o máximo, no sentido mesmo de despir e expor (enfatizar e destacar) a figura feminina, e criar blocos de sensibilidade em recusa aos excessos das verdades e dos domínios sobre a mulher”, ressalta Ney.
Um dos poemas de Adília apreciados por Ney está este: “ Clarice Lispector / a senhora não devia / ter-se esquecido / de dar de comer aos peixes / andar entretida /a escrever um texto / não é desculpa /
entre um peixe vivo / e um texto / escolhe-se sempre o peixe / vão-se os peixes / fiquem os dedos / como disse Santo Antônio / aos textos” (Clube da poetisa morta, 1997)
Adília Lopes se manteve quase reclusa, não foi boêmia nem santa, seduzida menos pela tagarelice dos eventos e espetáculos e muito mais pelos silenciamentos e recusas, para daí talvez ter o que dizer, como diz Ney Ferraz Paiva. “Dela se falou mal, era apontada como ‘difícil’, evitada pelo seu tom irônico, que justamente utilizava para escapar às táticas de normalização e padronização da cultura de uma sociedade machista e conservadora. Essa era ela? Ela era outra? Não sabemos. O que estamos tentando ainda absorver são os aspectos de uma poesia que cintila força e intensidade e que permanece contra o seu próprio tempo. Adília Lopes não morre”.
Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira tinha como pseudônimo literário Adília Lopes (1960-2024) e estava com 64 anos quando faleceu, no Hospital de São José, em Lisboa, Portugal. Ela escreveu mais de 30 livros de poesia, desde o primeiro em 1985 intitulado “Um Jogo Bastante Perigoso”. Ela poetisa, cronista, tradutora e documentalista, segundo a biografia publicada pelo Centro de Documentação de Autores Portugueses, da Direção-Geral do Livros, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Confira o poema ‘A propósito de estrelas’:
A propósito de estrelas
Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas
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