Princípio da dignidade humana na reforma da previdência social Contradições teóricas que dissociam o Direito da realidade Océlio de Jesus C. Morais 23.04.19 8h34 O principal fundamento de todo Estado democrático livre e bem desenvolvido é o princípio da primazia da dignidade da pessoa humana. Este é o princípio universal que constitui a principal da defesa da vida humana e de todo ecossistema apto a proporcionar o bem-estar humano. Em sentido geral, princípio deduz, por si, o significado de início, de começo, de origem, isto é, o ponto de partida de onde tudo emana para um sentido lógico, coerente e comum. Ao âmbito do Direito, o alemão Robert Alexy, filósofo do Direito , que criou a teoria da proporcionalidade ou ponderação das regras e dos princípios, o qualifica como “comandos de otimização [que] conduz diretamente a uma conexão necessária (…) às possibilidades jurídicas” Então, o princípio é um esteio para a sociedade se desenvolver com equidade e com bem-estar, assim como assapatas e as pilastras são indispensáveis para a segura edificação de um prédio. Princípio, nessa perspectiva, é a base de uma sociedade bem organizada. Quando falo em sociedade bem organizada, desenvolvida e livre conceitualmente designo o tipo de sociedade evoluída que possui regras e princípios equilibrados entre si , destinadas a defender e a promover a pessoa humana em todas as suas dimensões. Sabe-se que uma sociedade é evoluída quando o nível do bem-estar humano é qualificado pela garantia dos direitos sociais, não apenas sob o aspecto da previsão constitucional, mas efetivamente pela vivência, pelo gozo, pelo usufruto desses direitos . É isso que significa, na prática, o princípio da primazia da dignidade humana que, aliás, a Constituição Federal de 1988, no Art. 1º, inciso III, adota como fundamento do Estado Democrático Brasileiro. Então, a dignidade da pessoa humana é princípio fundamente da sociedade brasileira. Por esse sentido, os direitos sociais fundamentais à saúde, à assistência social e à previdência social (Art. 6º, CF/1988) visam a “melhoria da condição social” dos brasileiros. Então, note-se bem: quando a Constituição de 1988 destina os direitos sociais fundamentais para a “melhoria da condição social”, precisamente ela está colocando a pessoa humana como prioridade do Estado, o que significa, por outro modo, que o que se visa é o bem-estar humano – este traduz uma condição básica de satisfação física, psicológica e espiritual da pessoa na sociedade. Por isso, a Constituição de 1988 adota o bem-estar dos brasileiros como meta , tando que utiliza esse substantivo masculino 8 (oito) vezes em seu texto: → 1. Logo no preâmbulo, como um dos “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”; → 2. Depois no Parágrafo único, Art. 23, como baliza para edição de leis complementares para cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ; → 3. No inciso IV, Art. 186, como parâmetro para a função social da propriedade e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores; → 4. No Art. 193, como um dos objetivos da ordem social brasileira ao lado da Justiça social;; → 5. No Art. 219, como bem-estar da população no mercado interno integra o patrimônio nacional ; → 6. No § 7º, Art. 225, nas políticas ambientais como garantia dos bem-estar dos animais envolvidos; → 7. No Art. 230, como imposição de dever à família, à sociedade e ao Estado para defesa da dignidade humana e do direito à vida; →8. No § 1º, Art. 231, como bem-estar para a necessária reprodução física e cultural das populações indígenas., segundo seus usos, costumes e tradições. Desse modo, o bem-estar é, no espírito da Constituição de 1988, o objetivo que a sociedade brasileira quer alcançar, experimentar, construir, vivenciar. O bem-estar é, por isso, a possibilidade de justiça social, ambos, portanto, essenciais para realização do princípio da primazia da dignidade humana. Juntos, os objetivos bem-estar e justiça sociais são destinados à proteção social brasileira a ser implementada pela seguridade social. E falar de justiça social e bem-estar me faz lembrar do que disse Amartya Sen , em “A ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado”: que esses objetivos não podem ser confundidos como simples “arranjos sociais”, ao defender a necessidade da equidade na realização e na distribuição dos direitos sociais. Não é de todos desconhecido que o Brasil tem esse problema entre o teórico garantista da Constituição e a inefetividade do princípio da primazia da dignidade da pessoal humana por falta de concretude dos objetivos do bem-estar e da justiça sociais. Agora, com a perspectiva da reforma da previdência , qual o tratamento que é dado ao princípio da dignidade da pessoa humana? Como são tratados os objetivos do bem-estar e da justiça sociais? Saber dessas respostas é fundamental porque, a partir da reforma previdenciária, se saberá qual a relação que será estabelecida entre o Estado e a sociedade brasileira. A Proposta de Emenda Constitucional nº 06/2019 – que modifica o regime de previdência social brasileiro e estabelece regras de transição como transição ao regime de capitalização individual – não menciona a palavra dignidade humana. Na Constituição Federal vigente, esse substantivo feminino [dignidade da pessoa humana] é usada apenas duas vezes: uma, no incisos III, Art. 1º, como antes já me referi. E a outra no Art. 226, 1º, § 7º, quando trata do planejamento familiar fundado nos princípios da “dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”. Essa estrutura não é alterada pela reforma previdenciária, o que é muito importante porque o princípio fundamente do inciso III, Art. 1º é cláusula pétrea da Constituição, portanto, é um bem jurídico inalterável. De outro lado, embora a reforma não se utilize do designativo “princípio da dignidade humana”, ela adota os “princípios constitucionais igualdade e distribuição de renda” como bases ao novo modelo de previdência social para a sociedade brasileira. Isso quer dizer que, do ponto de vista teórico, nesses dois princípios, a reforma pretende implementar os objetivos da justiça sócia e do bem-estar. “Com Proposta de Emenda Constitucional (PEC) aqui tratada, adquirem maior importância e centralidade no contexto de sua estruturação e funcionamento”, argumenta a justificativa da PEC”, para acrescentar: “As novas regras para concessão e manutenção de benefícios, além de evitar distorções, corrigir situações que não guardam conformidade com os objetivos da previdência social e promover a convergência com as regras do RGPS, também serão favoráveis à busca do equilíbrio financeiro atuarial dos RPPS, princípio fundamental para a sustentabilidade dos regimes.” Ocorre que o novo modelo modifica de forma substancial o regime atual de previdência, baseado no princípio da solidariedade entre gerações, para ir progressivamente caminhando para o regime de previdência de capitalização individual obrigatório aos novos servidores públicos e ao trabalhadores segurados do regime geral.. Veja-se: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual “, dispõe a PEC quando ao servidores. E mais: “Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal instituirá novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para o pagamento do benefício”, prevê ainda quanto aos trabalhadores do regime geral. Se a previdência social atual é marcada pelo princípio transgeracional, é evidente que a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana aqui depende do esforço coletivo de todos os segurados obrigatórios do regime geral para o custeio dos benefícios e prestações previdenciárias diante das situações de riscos laborais. De outro lado, me parece que o regime de previdência de capitalização individual, com contribuição definida, que se quer implantar com a reforma, percorre outro caminho, o caminho da poupança individual; portanto, retirando da sociedade brasileira aquele princípio transgeracional. É no mínimo questionável afirmar que o regime de previdência de capitalização – como defende a reforma – projeta “maior justiça social”. Por certo que, do ponto de vista da livre iniciativa, é inconcebível opor resistência à decisão de qualquer pessoa quanto à vontade de constituir a capitalização individual até porque a livre iniciativa também é um dos princípios fundantes do Estado brasileiro, previsto no inciso IV, Art. 1º, da Constituição de 1988. Mas a questão que coloco é esta: a eliminação progressiva do princípio da solidariedade entre gerações para a implementação do princípio individualista do regime de capitalização vai realmente promover “maior justiça social” aos trabalhadores segurados? Deveras, são contradições teóricas da reforma que aumentam o fosso entre o Direito e a realidade. Na lógica formal, quando há contradição teórica na formulação das hipóteses, o resultado é fadado ao fracasso. A questão subsequente ou decorrente disso é a perigosa afetação direta aos dois objetivos siameses da proteção social brasileira almejada pela seguridade social: o bem-estar e a justiça socais. E como o princípio da primazia da dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamente da sociedade, não se restringe ao bem-estar individual, mas coletivo, é bem lógico concluir que o regime de previdência de capitalização é incompatível com o princípio coletivo da primazia da dignidade humana. Por certo que o tempo trará as adequadas respostas com maior clareza, mas hoje sob a perspectiva da teleologia da inclusão social previdenciária, o princípio coletivo da dignidade da pessoa humana tem e exige como corolário o princípio da solidariedade entre gerações. 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