Acidente de percurso deixa de ser considerado acidente do trabalho MP nº 905/2019 revoga dispositivo da Lei 8.213/1991 Océlio de Morais 26.11.19 9h00 Não é rara a perplexidade de pessoas do povo, e até entre estudiosos das ciências jurídicas, diante de leis que se chocam dentro de um mesmo ordenamento jurídico. À primeira vista, parece algo ilógico, porque o legislador tem a tarefa de criar normas compatíveis entre si e subordinadas à Constituição, mas acontece, e com muita frequência na ordem jurídica brasileira. Ao choque de leis, tecnicamente a doutrina denomina de colisão, conflito ou antinomias de normas. E nesse sentido, por exemplo, as doutrinas de Maria Helena Diniz e Tércio Sampaio Ferraz Jr. - juristas brasileiros dos quais tive a honra de ser aluno no programa de doutorado em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - respectivamente nas obras “Conflito de normas” (SP: Saraiva, 2010) e “Teoria da Norma Jurídica” (SP: Gen/Forense Editora, 2009). Uma das mais recentes antinomias ou conflito de normas ocorreu com a edição da Lei 13.467 de 2017 (a lei da reforma trabalhista) em face da Lei 8.213 de 1991, no que se refere ao tempo à disposição do empregador e à respectiva tipificação do acidente de percurso. No meu livro “Previdência Social na CLT” (São Paulo: Saraiva, 2018, p. 30-32) analisei a antinomia ou conflito entre as regras previstas na alínea D, inciso IV, Art. 21 da Lei 8. 213 de 1991 e o novo § 2º, Art. 58 da CLT, acrescentado pela Lei 13.467 de 2017. A análise que fiz naquele livro, que é atualíssimo, considerou aspectos estritamente jurídicos, comprovando que já não se poderia, juridicamente, manter o acidente de trajeto na forma como até então prevista na alínea “D”, inciso IV, Art. 21 da Lei 8. 213 de 1991. “(...) Quando esse tempo de percurso deixa de existir, por lógica também deixar de existir o acidente do trabalho no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela então previsto no Art. 21, inciso IV, alínea “D”, da Lei n. 8. 213 de 1991. Assim sendo, o acidente que o empregado sofrer no trajeto da residência para o local de trabalho e vice-versa não será qualificado ou equiparado como acidente do trabalho” (2018, p. 31), assim escrevi no referido livro. Aliás, no congresso nacional do Instituto dos Advogados Previdenciaristas do Conselho Federal da OAB, realizado em São Paulo no ano de 2018, também abordei essa temática, questão que muitos ainda não haviam se dado conta. O novo § 2º, Art. 58 da CLT modificou o conceito de tempo à disposição do Art. 4º da CLT, ao considerar que “Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”. Com a nova redação do § 2º, Art. 58, da CLT, o tempo de trajeto entre a residência-trabalho-residência deixou de ser considerado tempo à disposição: “O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.” Com essa nova regra, revogando a anterior, juridicamente ficou impossível a tipificação do acidente do trabalho de percurso por uma razão lógica e simples: o tempo de deslocamento deixou de ser considerado tempo à disposição, salvo quando o empregado está executando ordens da empresa ou executando serviços. Apesar da regra no § 2º, Art. 58 da Lei 13.467 de 2017, Mas, persistia a regra da alínea “D”, inciso IV, Art. 21 da Lei 8. 213 de 1991. A flagrante colisão dessas duas normas vinha alimentando decisões judiciais divergentes, com evidente instabilidade jurídica às relações de trabalho no Brasil, com repercussão negativa ao próprio sistema jurídico. Por certo que uma compreensão sistemática das duas normas que integravam o ordenamento jurídico leva à conclusão segura de que o § 2º, Art. 58 da CLT revogara indiretamente a alínea “D” do inciso IV do Art. 21 da Lei 8.213 de 1991. Contudo, como no Brasil a lei é como cana-de-açúcar, porque, por qualquer modo que se aperte, resulta um caldo, foi necessária uma outra solução normativa: a edição de uma Medida Provisória. Quando um sistema jurídico não elimina suas antinomias, revela-se inseguro e contraditório e gera incertezas quanto às decisões judiciais. Nenhum sistema jurídico consegue manter coerência interna se não eliminar os conflitos de normas. Agora, a Medida Provisória nº 905, de 2019, publicada no Diário Oficial da União em 12 .11.2019, eliminou a referida antinomia: revogou a alínea “D”, do inciso IV, Art. 21 da Lei 8. 213 de 1991. PMas a revogação é temporária porque as medidas provisórias, nos termos dos artigos 62, § 3º, da Constituição Federativa de 1988, têm validade de 60 dias, prorrogável uma vez por igual período. Isso exige que o Congresso Nacional discipline, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. A MP nº 905 de 2019, apesar de seu caráter provisório, também tem outro objetivo sistêmico: dar sustentação ao§ 2º, Art. 8º, da CLT, que dispõe que “Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei.” Por outras palavras: a revogação da alínea “D” do inciso IV do Art. 21 da Lei 8. 213 de 1991, através da MP (o que seria desnecessário, na minha visão), também quer evitar a edição de Súmulas e outros enunciados de jurisprudência, dando o recado direto: a súmula que vier a ser editada criar obrigações que não estejam previstas em lei. Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱 Palavras-chave colunas océlio de morais Direito do Trabalho acidente de trabalho COMPARTILHE ESSA NOTÍCIA Océlio de Morais . Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo! 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