Pesquisa da Unifesp vai mapear o esgotamento de médicos por covid-19
Um em cada três médicos presenciou episódios de agressões a colegas e outros profissionais em áreas de atendimento ao longo da pandemia
Atuando em unidades de saúde da capital, no auge da pandemia da covid-19, o que o neurologista infantil e pediatra Vinícius - que pediu para omitir o sobrenome - mais temia aconteceu. Ele contraiu o coronavírus e viu seus familiares também se infectarem. Entre maio e junho, ele teve de lutar contra a doença e ser o médico da mulher, dos dois filhos - um deles recém-nascido -, da sogra e de dois avós. Foi um estresse intenso que deixou marcas, não só físicas. Só não foi pior porque a mulher, psiquiatra, o ajudou a manter o equilíbrio.
Para avaliar até que ponto a pandemia está mexendo com os nervos dos profissionais de saúde, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) estão selecionando 500 médicos da linha de frente contra a covid-19 para conhecer o impacto, entre eles, da Síndrome de Burnout. Também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, o problema afeta 32% dos trabalhadores brasileiros, segundo a International Stress Management Association (Isma-BR). Seus sintomas são cansaço extremo, sensação de incapacidade, dor abdominal e resistência a ir para o trabalho.
"Com a crescente demanda de pacientes infectados pelo novo vírus, com o risco de morte sempre presente, prevemos um aumento do estresse ocupacional no setor. A probabilidade é de que a situação seja mais grave nos epicentros da epidemia, como o Estado de São Paulo", explicou a autora da pesquisa, Gabriela Correia Netto. O projeto terá supervisão da professora Laura Camara Lima. Serão avaliados 250 médicos que atuam diretamente no covid-19 e outros 250 de outras áreas.
O cenário não é fácil. Pesquisa de junho da Associação Paulista de Medicina ouviu 1.984 profissionais em todo o País. O que revelou: 69% manifestaram ansiedade; 63,5%, estresse; 49%, exaustão emocional - 76% atendem mais de 20 pacientes por dia. E 60% trabalham na linha de frente da covid-19.
O desafio não para aí. Um em cada três médicos presenciou episódios de agressões a colegas e outros profissionais em áreas de atendimento ao longo da pandemia. A maioria dos 72% que admitem não ter pleno conhecimento da pandemia diz estar na linha de frente da doença por questão humanitária.
Um exemplo concreto: do início da pandemia até 30 de julho, 3.047 profissionais de saúde se afastaram do trabalho na Secretaria Municipal de Saúde paulistana. Reconhecendo a relevância do problema, a secretaria desenvolve desde abril um projeto piloto de assistência à saúde mental dos servidores que os atende no hospital de campanha do Anhembi.
A Síndrome de Burnout, diz a professora Laura, afeta profissionais que se relacionam com pessoas. "O trabalho do médico, do enfermeiro, implica lidar com a dor, o sofrimento e a morte. Médicos não podem errar. Têm de enfrentar escolhas éticas, como decidir por uma cirurgia, por um diagnóstico. Imagina o que é fazer uma escolha entre quem vai para a UTI e quem não vai."
Outra característica da Burnout é a perda no nível de confiança na profissão e na própria Medicina. "Embora o trabalho dos médicos esteja sendo reconhecido e exaltado, há casos de preconceito, de xingamentos e agressões", diz Laura. O terceiro fator, acrescenta a supervisora, é a despersonalização, quando o profissional não aguenta mais o contato com os pacientes. O sentimento heroico inicial se transforma em indiferença, aparecem a insônia e a irritabilidade.
A auxiliar de enfermagem Janaine Silva, que mora em Sorocaba, ainda luta para superar os traumas das semanas em que atuou na UTI de um hospital público referenciado para covid-19. "Muitos colegas estavam sendo afastados por causa do contágio e fomos chamadas para cobrir as vagas. Era desesperador. Antes de sair, tomava todos os cuidados para não levar para casa o maldito vírus, chegava e tirava as roupas, tomava banho, evitava meus filhos. Após meu primeiro plantão na UTI Covid lembro que, ao sair e subir na moto, meu único sentimento era de tristeza, medo, insegurança. Afinal, tinha dois filhos me esperando."
Apesar de todos os cuidados, a profissional de saúde não escapou do vírus. "Comecei a sentir uma terrível dor nas costas, acompanhada de uma tosse seca, não quis acreditar... Eu via de perto como era o progresso da doença. Estava com a covid. Fui colocada em isolamento, eu e as crianças, por 15 dias. Foram terríveis." Ela conta que, nesse período, embora tivesse apoio a distância dos colegas, teve de enfrentar sozinha a doença. "Começaram a surgir bolhas em meu tórax e rosto, era impossível dormir pela falta de ar e eu não conseguia levantar. O pior era ficar sem contato com ninguém, sendo cuidada só por meus filhos, apavorada só de imaginar que poderia contaminar as crianças."
A maior aflição, segundo ela, era não saber qual seria seu destino. "Afinal, quantos óbitos eu vi, quantos corpos levei até o necrotério, pessoas novas, velhas, magras, obesas, já não existia um padrão. Graças a Deus saí dessa. Só tenho uma certeza: após a covid-19, nunca eu e nenhum dos meus colegas de profissão seremos os mesmos."
Com as respostas aos questionários, as pesquisadoras da Unifesp vão comparar o estresse na linha de frente com o de não envolvidos diretamente e montar uma escala, comparando os dados com pesquisas anteriores à pandemia. Os médicos interessados podem acessar a pesquisa no site da Escola Paulista de Medicina.
O diretor de defesa profissional da Associação Paulista de Medicina, João Sobreira de Moura Neto, acha que os médicos sairão mais experientes e humanizados da pandemia. "Vai haver uma mudança de sentimento, vamos sair com uma necessidade de conhecer melhor as pessoas. Acredito que os médicos vão ter esse sentimento de humanismo mais aguçado."
Um estudo com 1.257 profissionais de saúde que atuaram no combate ao novo coronavírus em 34 hospitais da China apontou um risco elevado de aparecimento de danos à saúde mental. A pesquisa, publicada em março na revista da Associação Médica Americana (Jama), mostrou que pessoas que trabalharam na linha de frente da covid-19 relataram sintomas como depressão, ansiedade e insônia. A prevalência foi maior entre enfermeiras.
A maioria dos participantes tinha entre 26 e 40 anos (64,7%) e era do sexo feminino (76,7%). Mais de 60% dos entrevistados trabalhavam em Wuhan, onde os primeiros casos da doença foram registrados.
De acordo com a pesquisa, 71,5% dos profissionais relataram angústia, 50,4% falaram que tiveram sintomas de depressão, 44,6% disseram ter tido ansiedade e 34% relataram que sofreram com insônia.
Ansiedade e medo são os principais distúrbios apresentados por profissionais de saúde atendidos durante a pandemia do novo coronavírus por um sistema de consulta a distância criado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Chamado Telepan Saúde, o sistema já atendeu cerca de 300 profissionais em todo o País. Há casos em que houve a decisão pelo afastamento de profissionais atendidos, que chegaram a apresentar quadros de depressão e risco de suicídio.
A plataforma foi criada no início da pandemia, em março, a partir de artigos sobre o tema publicados em outros países, conforme explica o psiquiatra e coordenador do sistema, Helian Nunes, da Associação Brasileira de Neuropsiquiatria e professor da UFMG. O atendimento é feito por enfermeiros, psicólogos e psiquiatras, todos voluntários.
O atendimento e as orientações aos que recorrem ao Telepan acontecem por dois grupos - um para casos mais simples e outro para os mais graves, em que é recomendado atendimento presencial. Para ter acesso à consulta, os profissionais entram no site do sistema. De acordo com Nunes, os enfermeiros são os que mais procuram o serviço. "É o grupo mais vulnerável, não só pela carga horária, por estarem no front, mas também por vulnerabilidade salarial", diz o coordenador.
Assistente de um Centro de Atenção Psicossocial da Prefeitura de São Paulo, Adriana Domingos Ferreira, de 43 anos, recorreu ao Telepan com quadro de pânico e tristeza. Casada e mãe de uma menina, passou a trabalhar com medo ao longo da epidemia, mas a situação piorou depois de ter tido contato com quatro pacientes que contraíram a covid-19. "Temos caso de depressão entre parentes, e decidi que não passaria minha situação a eles." Na avaliação da assistente social, a busca pelo programa evitou o pior. "Não fosse isso, não conseguiria me recuperar mais".
Com dez anos de profissão, a fisioterapeuta Ivanízia Soares viveu em Natal, no Rio Grande do Norte, realidades opostas. Enquanto salvava vidas na UTI de um hospital público, o forte estresse do dia a dia a levou a crises de ansiedade e choro.
Ivanízia se divide entre dois hospitais públicos de Natal que se tornaram referência do novo coronavírus, o Municipal e o Infantil Maria Alice Fernandes. Desde março, viu o aumento de serviço e a escassez de profissionais intensivistas. "Houve um crescimento exponencial nos atendimentos, mas sem ampliação dos quadros", afirma.
A cada turno de seis horas, ela atende entre 6 e 10 pacientes. Durante a pandemia, a carga de trabalho aumentou em decorrência do estado grave da maioria dos internados nas UTIs. "A gente já não conseguia mais dar conta. Abriram leitos de UTI, mas não contrataram fisioterapeutas."
A fisioterapeuta passou 15 dias afastada dos hospitais e só retornou ao ambiente de trabalho após iniciar sessões de terapia com um psicólogo. "Hoje, sinto melhora graça a esse tratamento", afirma. As informações são do jornal
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