Artigo: A cidade que Lemos nos deixou

Jussara Derenji

Antonio Lemos, Intendente de Belém de 1897 a 1911, é daqueles personagens para os quais os registros históricos não admitem meios termos. Desde os tempos de sua atuação na política do estado, principalmente na capital, teve admiradores e adversários com profundas convicções de suas opiniões a favor ou contrários a seu governo. Sinal de que trabalhava, e muito, porque só quem nada faz, nada produz, consegue não ter opositores.

Era um tempo de mudanças, o tempo de Lemos, na economia, nos hábitos, na política, na sociedade. Mesmo que as famílias oriundas dos proprietários de terras, uma nobreza criada pela generosidade em apoiar o governo imperial, ainda sustentasse aparência de mando, seu poder se esvaía perante a nova classe, a burguesia da borracha, se assim a podemos chamar pois não era apenas nela que a economia local se estruturava. Havia, no final do século XIX, uma classe formada por gente de fora, estrangeiros ou nacionais, às vezes simplesmente interioranos, desconhecidos poucos anos atrás, formando novas alianças, tão poderosas ou mais do que as anteriores. 

Como se explicaria, se não tivéssemos essa burguesia emergente, que militares de baixa patente, vindos do Maranhão, sem vínculos com a sociedade regional, alcançassem a ser governadores de Estado, como era Eduardo Ribeiro no Amazonas, ou Intendente da maior cidade da região, como Lemos? Como se explica a presença de um líder regional, como   Joaquim José de Assis, um médico mineiro recém-chegado, ou fortunas como as de Bento José da Silva Santos, vindo de família humilde de São Caetano de Odivelas, sem uma nova aliança de poderes?

Há na origem do poder político de Lemos, sem dúvida, a sua habilidade em se inserir no meio regional, mas também uma nova forma de comunicação: a imprensa.  Assis dominava a imprensa com seu próprio jornal e ao se aliar a ele, nisso se ancorou Antonio Lemos como se apoiaria na maçonaria, onde estão em postos relevantes o mesmo Joaquim Jose de Assis e também Lemos, no final do século XIX.

A ambição política, a habilidade em conseguir escalar os postos desejados, a colocação de aliados em cargos estratégicos, são fatos inegáveis na carreira de Lemos, assim como é indiscutível o fato de que ele conseguiu mudar a estrutura, ainda colonial naquele final de século, da cidade onde vivia. 

Enquanto a sociedade tradicional, oriunda do Império, alimentada por seus títulos e terras, viajava frequentemente para o exterior, Lemos apenas conhecera, durante a guerra cisplatina e quando era muito jovem, a capital do Uruguai. Como foi capaz de dar a Belém uma nova estrutura urbana, como se tornou um dos maiores, senão o maior, participante da tarefa de dotar a capital do Pará com os mais modernos serviços de limpeza, de saúde, de educação?

É essa equação difícil de explicar que sustenta o amor e o ódio a Lemos. Sua associação com Augusto Montenegro, jovem governador que já fora adido no exterior, conhece as grandes capitais e suas medidas de higiene e saneamento, permite que os recursos públicos sejam usados em reformulações urbanas, como a criação de novos bairros, cujos projetos já encontraram elaborados, em melhorias em escolas profissionalizantes, prédios para hospitais, asilos e em serviços de limpeza pública (lavagem de ruas e incineração de lixo  incluídas), calçamento de ruas, criação de avenidas arborizadas, parques e praças.

Por outro lado, a implementação dessas medidas de reformas profundas tem implicações em setores da sociedade que serão, sem dúvida, afetados adversamente por elas.

Uma das medidas de mais impacto é a que interfere na regulamentação das construções. Nunca antes, durante o período colonial ou imperial, o governo havia interferido no interior das residências.  As regulamentações impostas no governo de Lemos, inspiradas em modelos europeus, que incidiram nas dimensões mínimas dos ambientes, nas aberturas necessárias para a ventilação das casas, na altura das paredes internas, eram necessárias e visavam impedir a proliferação de epidemias frequentes e devastadoras no período.  Fala-se muito nas fachadas modificadas, uma das medidas mais efetivas na mudança da estética da cidade, mas talvez se esqueça o quanto Lemos mudou a forma de morar, mudando o interior das residências na cidade, dando modernidade e funcionalidade a elas.

Um dos sonhos do intendente era mudar o centro de poder, do antigo governo colonial tão bem representado pelos palácios e igrejas da Cidade Velha, levando-o para a praça junto ao teatro, construindo um prédio do poder municipal, encomendado a arquiteto europeu de renome, mas nunca sequer começado.

Parte dos seus sonhos de modernidade se expressaria na sua residência, prédio em ferro, pré-fabricado, trazido dos Estados Unidos, símbolo da modernidade desejada por ele.  O prédio foi destruído na queda do intendente em 1911, sendo invadido, saqueado e depredado. A cidade, no entanto, não perderia a marca imposta pelo Intendente, uma modernidade que favoreceu a muitos e a outros afastou. A cidade que Lemos nos deixou tornou-se apenas parte mínima de uma grande metrópole, desigual e problemática como já o era nos anos das grandes reformas feitas por ele. O julgamento da cidade atual será feito da mesma forma rigorosa como se fazem as das reformas de Lemos, espera-se que existam apoiadores e também opositores, registrando que a cada tempo a cidade se renova e se reconstrói.          

Jussara Derenji é arquiteta.

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