Acadêmica trans defende dissertação de mestrado sobre educação e formação de pessoas transsexuais
A mestranda Nitthaelly Ribeiro defendeu a dissertação "Trans’narrativas autobiográficas de escolarização de uma transexual" na manhã desta sexta-feira (30), usando a própria trajetória como um exemplo. De acordo com ela, é a primeira vez que uma mulher trans defende um trabalho no PPEB e na UFPA
"Uma trajetória gloriosa", é como define Nitthaelly Bonfim Ribeiro, mulher trans, de 30 anos, a conclusão do mestrado no Programa de Pós Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Ela, que é professora e formada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Pará (Uepa), recebeu, nesta sexta-feira (30 de setemebro), o título de mestra, apresentando o artigo de conclusão do mestrado com o tema “Transnarrativas autobiográfica de escolarização de uma transsexual”. O trabalho enfatiza a própria vivência no espaço educacional.
A recém-mestra, que é natural de Ipixuna do Pará, acredita ser a primeira mulher trans a obter o título na UFPA, após não encontrar registros de outras pessoas trans conquistando esse grau. Não há registros centrais da instituição que comprovem quantas defesas de artigos já existiram de pessoas trans. Por meio de informações enviadas à Redação Integrada de O Liberal, a UFPA afirmou que não pode confirmar o ineditismo do fato sem qualquer dado para comprovar.
“Acredito que seja um marco histórico no que diz sentido a questão do ocupar, protagonizar as nossas vivências. Nós temos muitos trabalhos acadêmicos riquissimos em que pessoas cis nos usam como sujeito das suas pesquisas e falam de nós. Ao narrar a minha passagem pelo processo de escolarização, assumo e afirmo o campo de existência trans”, diz a nova mestre em educação pela UFPA.
Conquista reafirma representatividade
Após persistir na tentativa de adentrar no mestrado ao longo de três anos consecutivos, o sonho de Nitthaelly se concretizou em dezembro de 2019, quando finalmente foi aprovada na turma de mestrado. O projeto desenvolvido para a pós-graduação foi uma extensão do trabalho de conclusão de curso, conta ela.
A estudante diz que ao começar o mestrado, “a intenção era produzir uma dissertação com perspectiva pós-estruturalista, apropriando-se da etnografia por meio da conversação que evidenciasse a relação com meu local de trabalho e a comunidade escolar”. Não é à toa que a conquista é muito significativa, como ela reforça.
“Minha dissertação de mestrado carrega a representatividade no sentido de que eu assumo e protagonizo minhas vivências e o campo de existência trans. Eu falo de nós, por nós e para nós. E sonho com que minhas irmãs de luta alcancem voos tão significativos como esse que eu alcei. Eu tentei em 2017, 2018 e 2019, sendo aprovada no processo seletivo de 2019 na linha de currículo da educação básica, discutindo a presença de um corpo trans em uma linha de pesquisa que discutia diferença e sendo a própria diferença dentro do programa de mestrado”, disse Nitthaelly.
Desafios
Nitthaelly ainda comenta que a presença no meio acadêmico, em especial no mestrado, é marcada “pela insubmissão de um corpo invisibilizado durante o processo de seleção do mestrado”. No processo seletivo para o mestrado o nome social dela foi desconsiderado, sendo divulgado em todas as etapas do processo apenas o nome civil. Outro momento difícil foi o falecimento do orientador, que após o fato precisou ser substituído por outra orientadora, que conduziu Nitthaelly durante o processo do mestrado.
“Com a morte do meu orientador, professor doutor Wladirson Cardoso, passei a ser orientado pela professora doutora Josenilda Maués, que desde o princípio me incentivou a produzir uma dissertação que dialogasse minha vivência em meu processo de escolarização com a filosofia da diferença, reafirmando meu trabalho como uma potência e legitimando o campo de existência transsexual. Em meio a todos os percalços conseguimos produzir este trabalho em 30 meses”, relatou.
Educação transformadora
Tendo a educação como base para a sua caminhada, Nitthaelly ressalta a importância do saber na vida dela. Para ela, que estudou durante toda a educação infantil, ensino fundamental e médio na rede pública, o conhecimento foi um elemento transformador. Em meio aos desafios enfrentados, como a morte de dois irmãos, ela fez dessas situações um motivo para seguir em frente e concretizar conquistas junto à família.
“A educação foi o meio pelo qual eu pude fugir das expectativas de morte que recaem sobre mulheres travestis. Eu pude realizar alguns sonhos junto de uma mãe que sempre investiu na educação dos seus filhos, tais como: ser a primeira filha a concluir o ensino superior,assumir um cargo em concurso público, a completar 30 anos e hoje me tornar mestra”, relatou.
Muito além de uma realização, a recém-mestra que atua como professora, conta que o mestrado despertou novas formas de conduzir a dinâmica dentro da sala de aula na escola em que atua, no município de Santa Maria do Pará. Ela analisa que o conhecimento é uma maneira de desconstruir comportamentos junto aos alunos do ensino fundamental.
“Eu consigo identificar certas ações, discursos e práticas que a escola produziu sobre mim, que eu vejo reproduzindo ainda hoje e eu compreendo que isso marca de uma forma muito significativa os corpos que demarcam o campo da diferença. Então, eu já consigo identificar e, de algum modo, dialogar com essas ações que produzem, reproduzem e atualizam a matriz heterossexual”, afirmou.
“A sociedade precisa compreender que nossa contemporaneidade é o tempo da diferença e das transformações e que nossos corpos são construções que perpassam pela linguagem e pelos discursos, além de atravessar os aspectos históricos, sociais, culturais, políticos”, ressaltou.
Planos para o futuro
O mestrado é mais uma das conquistas alcançadas. E para o futuro Nitthaelly já faz planos: “Quero terminar meu estágio probatório em meu trabalho e, ao mesmo tempo, alimentar meu currículo enquanto pesquisadora da educação. Após isso, eu penso o doutorado no Rio de Janeiro ou no Paraná, onde se tem a linha de pesquisa voltada para a discussão das diferenças”, finalizou Nitthaelly.
(Gabriel Pires, estagiário, sob a supervisão do coordenador do Núcleo de Atualidades, Victor Furtado)
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