'O Humor me escolheu'
Alguma coisa acontece no meu coração quando ouço o nome da atriz Catarina Abdalla. E explico: fui uma criança e adolescente gordinha, desajeitada. Comumente me sentia deslocada, mas algo meio que começou a mudar em meados da década de 80, quando o seriado “Armação Ilimitada” foi ao ar, pela Globo, e que trazia inúmeras inovações à dramaturgia de um país que se redemocratizava: um trisal (ou triângulo amoroso) como protagonista da atração. Além dele, um jovem que queria ser adotado e Ronalda Cristina, personagem vivida por Catarina, que era sexy, mesmo sem estar no “padrão”: usava batom vermelho, roupas decotadas e ostentava um sorriso incrível. Ali, nossa convidada especial mostrava toda sua força e inspirava meninas igualmente fora da curva a se olharem com mais amor. Atualmente vivendo a dona Jô, no humorístico “Vai que cola”, do Multishow, a atriz tomou também para si empoderar mulheres mais maduras, mostrando que o belo, o amor, a resistência e a arte se confundem quase sempre. Neste bate papo, ocorrido na manhã da última quinta-feira, ela mostrou ser – mais uma vez – gente como a gente. Estava na cozinha. Com uma generosidade sem igual, dedicou à Troppo um tempo, sinceridades e emocionou-se (além de me emocionar).
Troppo + Mulher: Em qual momento você se percebeu atriz e que gostaria de fazer isso profissionalmente?
Catarina Abdalla: Olha, não tive esse divisor de águas tão forte na minha vida, não. Eu nunca sonhei em ser atriz! Sonhava, quando menina, em ser dançarina, uma chacrete ou coisa assim. [ela ri] Mas, como sempre gordinha e tal, não passou de um sonho mesmo! Não que não me acompanhe, porque adoro dançar e acho que danço muito bem! O fato é que eu trabalho desde muito nova, com 12 anos já me virava pra conseguir algum dinheiro. Aos 17 anos, já trabalhava com carteira assinada. Estudava e tentei vestibular para Medicina, Matemática... enfim, tentei, tentei e não passei. Morava num lugar onde havia uma quadrilha junina e dancei uma vez nela, meio a contragosto, porque achava super chato, mas fiz um monte de palhaçadas. No ano seguinte, dancei de novo e fiz mais palhaçadas... minha mãe, que me olhava da janela, quando cheguei em casa, me falou: “Você tem que ser atriz. Você tem que estudar Teatro e ser atriz!”.
T+M: Desde a Armação Ilimitada, o riso parece fluir muito naturalmente em você. O riso te faz mais feliz? Ele é mais desafiador?
CA: Antes da Armação, eu fiz a Cuca, no Sítio do Pica-Pau Amarelo [de 1981 a 1986].
T+M: Que era maravilhosa, debochada!
CA: Como o programa [O Sítio do Pica-Pau Amarelo] não foi um programa que fez parte da minha vida, fui fazer um teste para a Cuca e fui fazê-la num lugar muito livre, porque eu não tinha muita referência. Já cheguei levando uma graça para ela, uma coisa bem diferente do que tinha até então. Mas tenho que voltar à minha primeira peça, no Tablado, porque quando decidi que faria Teatro, achava que faria drama, né? Eu tinha vinte anos e minha diretora, a maravilhosa Thais Balloni, escreveu uma peça com uma personagem que tinha 40 [anos], porque foi assim que cheguei lá. O Teatro me rejuvenesceu! Cheguei para fazer Teatro muito velha, com uma roupa, um penteado, muita responsabilidade... então depois dessa peça, eu tive um processo de rejuvenescimento. A personagem, que recebeu meu nome, tinha 40 anos, o sonho de ser atriz. Ela era uma servente no Teatro e se apaixonava pelo galã da companhia que ensaiava lá. Coitada! Fiquei feliz da vida por estar fazendo um drama! Quando estreei, que eu abri a boca, o público começou a rir!
T+M: Que fantástico...
CA: Eu fiquei apavorada!
T+M: Jura?
CA: Veja que eu nunca havia feito aquilo e, pra mim, estava fazendo uma peça dramática, com uma coisa triste. Ela era uma servente do Teatro, uma mulher invisível! O importante disso tudo foi minha professora escrever a peça, em que eu tinha 40 anos e ela me matou em cena! Foi aí que ressurgi para minha vida, que voltei aos meus vinte anos! Cheguei com cara de 40 e renasci com vinte! Mas, bem, no que eu abri a boca e a plateia começou a rir, fiquei nervosa e achei o olhar dela. “Vai, continua!”. E eu vi minha potência na comédia, na tragicomédia. Não foi uma coisa que eu determinei. O humor me escolheu! Quantas vezes não peguei um texto muito sem graça, mas que ao falá-lo, ele se enchia de graça! Fui chamada, inúmeras vezes, para viver personagens sem-graça e quando os incorporava, foi assim que surgiu o humor, a comédia.
T+M: Conclui que é um dom ou uma visão de vida?
CA: Não é uma visão, não! Às vezes, minhas personagens são muito mais bem-humoradas do eu! [ela ri novamente] Elas são muito mais alegres e felizes do que eu! Elas me emprestam muito dessa felicidade! Isso foi a profissão que me escolheu! Não que eu não faça bem o drama. Acho que adaptei esse lugar! Não que eu não faça bem outras coisas. Tenho um filme, “Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe”, que eu adoraria que meu público, que tanto gosta de mim na comédia, visse para poder vislumbrar um outro lado da Catarina; uma atriz mais ampla, que habita outros lugares. Mas, realmente, a comédia é a tônica da minha história.
T+M: Eu preciso confessar que conversar com você me emociona. Quando você estava em Armação Ilimitada, você era a atriz fora de padrão que era linda, moderninha, bem vestida. Eu sempre me sentia representada e menos deslocada. Como uma menina fora de padrão que eu fui, eu amava ver você no ar!
CA: Eu fico muito emocionada, porque é muito feliz na minha vida isso! Eu vivi muito nesse lugar! Dentro do mundo artístico, eu luto muito! Na hora em que não tem dinheiro, fica tudo muito ruim, não é? A falta de dinheiro, às vezes, está muito nesse lugar. Como em todas as profissões, há os que se protegem, que são amigos. Há os padrões, há tudo! Então, de alguma maneira, acho que enxergo isso melhor hoje. Lá atrás, eu simplesmente fui! Olho pra mim, lá atrás, e digo para mim mesma: “Nossa, como você era bonita! E como foi importante você ser!”.
T+M: Isso é tão importante!
CA: Assim como é hoje a dona Jô! A dona Jô [personagem que Catarina vive no humorístico ‘Vai que Cola’, do Multishow] empodera tanto as mulheres maduras, para que se sintam bonitas, sexy e ela luta todos os dias! Nessa temporada, dona Jô vai fazer vestibular! O lugar do sexo, da alegria, da luta pelo não-preconceito é uma tônica da minha vida! Fui fazendo e fui levando isso para as pessoas. Com a minha luta na profissão, eu empoderei! Eu levei esse reflexo para todo mundo que me segue até hoje, que está comigo, com a dona Jô! Na “Armação Ilimitada”, tinha algo muito forte com os jovens e no “Vai que cola”, também tem algo com os jovens, mas serve para todas as idades. Tem algo muito forte com crianças e jovens. Isso me dá uma felicidade muito grande, porque meus maiores fãs são crianças, meninas adolescentes, entre 13 e 15 anos, além das mulheres mais velhas – mulheres da minha idade e que me dizem: “Cara, é muito bom ter você ali, porque chega até a gente a mulher brasileira e o melhor dela, em sua potência!”.
T+M: Ai, Catarina, eu fico tão emocionada. Fico tão grata...
CA: Nós duas então! [ambas nos emocionamos neste trecho] Isso é o que vale na vida! É o que, de alguma maneira, me mantém ali, entende? Porque eu recebo isso das pessoas. Acredito muito em energia! Torço para que seja isso mesmo, principalmente com os negros. Que eles tenham oportunidades, porque quando temos oportunidades, fazemos isso!
T+M: Sei que você tem uma filha e neta negras...
CA: Sim! Uma filha negra, uma neta negra. Um marido negro, um genro negro. Minha filha tem três irmãos negros, sobrinhos negros e é isso! [ela ri]
T+M: Como mãe, tudo que a gente vive, te dói...
CA: Isso é uma constante, sabe? Não que doeu, que doa, que vá doer: isso dói! É uma questão de cor e eu sei um pouco disso, porque eu, não pela minha cor, mas pelos padrões, habitei esse lugar. É claro que a cor da pele... meu Deus, é muito mais forte! Defendo e sempre defendi a minha filha, quando ela nem entendia o que era isso! Quando ela nem percebia o que os outros faziam com ela, eu tava ali para defendê-la! Fiz loucuras, como tirá-la da escola particular e voltar para uma escola pública, pelo fato de ela encontrar ali, outros iguais a ela, que não tinham na escola particular. A luta existe desde sempre, na família... Os negros sucumbiram muito, perderam as forças. Há muito pouco tempo que essa luta voltou com força total, mas eles caminharam escondidos por tempo demais! Como se fosse normal. A verdadeira liberdade ainda não chegou! Basta ver novamente um homem negro que levou sete tiros... É uma luta e a gente não pode esmorecer!
T+M: Neste sentido, a Arte tem o papel de nos ajudar a resistir, a empoderar, esclarecer?
CA: Eu sou da Igreja Messiânica. Meishu-Sama [fundador da Igreja], um japonês que é dos nossos tempos e que morreu um pouco antes de eu nascer, em 1955, tinha como premissa a Arte, o belo. São premissas fundamentais para que a gente alcance outros mundos. A vida seria uma prisão de pedra se não existisse a Arte. Seria monótona, insípida. A vida não teria cor, sentimento, não fosse a Arte. Pega a Pandemia: o que teria sido de todos que ficaram em casa, se não fosse a Arte.
T+M: Exatamente... e talvez não percebam o quanto ela salvou vidas.
CA: Eu acho que, aos poucos, as pessoas vão ter [essa percepção], porque elas precisam ajudar a gente em nossa luta. Ser artista é sempre lugar de resistência! Por exemplo, eu tô gravando o “Vai que cola”, em época de pandemia. Acham que é fácil? Não é! É feliz, é alegre presentear pessoas que fizeram o programa ser o que é, mas tô ali me superando – mais uma vez. É resistência! O papel do artista é, principalmente, humanizar! A gente só tem a percepção da vida, quando se humaniza cada vez mais! Quando passa por nós alguns sentimentos e os purificamos para o melhor! É uma luta! Não somos anjos! Enquanto atores, representamos bem isso, todos os lados do ser humano e isso é muito bom, na minha profissão, porque me permite ampliar muito. A minha alma é ampliada, para que eu possa, cada vez mais, conseguir viver o bem, o bom.
T+M: Antes da pandemia, vínhamos de uma longa estrada de criminalização da classe artística. E é impossível pensar que a Arte sairá igual ao que era – todos nós. Você sairá diferente? Como será teu ofício no tempo depois da pandemia?
CA: Olha, não só como artista... o ser humano ele tem que entender tudo de maneira coletiva. Ele [o ser humano] precisa entender que sozinho, ele não caminha! Nossa vida é coletiva. A questão da marginalização do artista está dentro do mesmo lugar das fake news, de todo um plano armado para desmobilizar. Esse negócio de “acabou a mamata”, “acabou a lei Rouanet”, as pessoas falavam de coisas que elas nem faziam ideia! Tudo isso fez parte de muita maledicência, porém, ser ator foi uma das primeiras profissões e a gente existe e dignifica o humano. A gente precisa parar de olhar para o próprio umbigo! Parar de proteger pequenos núcleos – isso tem que acabar! Nossa alma, energia, nossa empatia, carisma e talento são os elementos que nos conduzem: a mim e a todos nós! Eu não quero ter olhos para ver aquilo que a maldade quer que eu veja. Tem coisas que até hoje eu me recuso a aprender, como, por exemplo, a maledicência das pessoas! Não quero ver isso! Não quero me contaminar com isso! Sem perceber, a gente se contamina e quer reagir na mesma moeda! Não vou dizer pra você que não sinto raiva, que não choro, que não percebo um puxando o saco do outro, que empodera um e não o outro... isso é uma grande perda de tempo, porque o que é do homem, o bicho não come! [ela ri]
T+M: Algum plano foi momentaneamente adiado, em função da pandemia? Seu entorno foi ressignificados?
CA: Não vivi isso, não. A pandemia chegou quando eu estava voltando de umas férias e quando eu ia me preparar para o “Vai que Cola” em vários níveis. Seria uma volta à academia, algo no rosto... O “Vai que Cola” é um programa para o qual eu tenho que me preparar muito! Corporal, física, mental e emocionalmente. Quem vê o programa, não faz ideia do quanto a gente trabalha para levar tudo aquilo. Meu único projeto esse ano era eu, quando a pandemia começou. Eu malhar, eu fazer não sei o quê, para quando do retorno do programa, eu levasse meu melhor. Ficar em casa não é algo estranho para mim. Cuidar da casa, muito menos. A situação, em si, tudo que a gente viveu nos abateu. Quando vi, estava trincando tanto o meu dente, que o quebrei! Comecei a ficar com uma puta dor de cabeça. Dependendo do que eu via, minha pressão até subia um pouco. Emocionalmente, no começo até que não. Tinha aquilo de “vamos superar, sejamos fortes”. Mas à medida em que tempo passou, eu não conseguia mais ver TV sem chorar. Não entendi quem não se abateu e quem não se abate! O que a gente está vivendo é triste demais! Óbvio que não é para ter medo! Temos de ter coragem de enfrentar a vida. A situação que se apresenta, além do Coronavírus, é muito triste. Isso não é coisa de Deus! É coisa do homem! O homem que causou isso tudo, é o vil metal. É apavorante a quantidade de gente que morreu e isso tem que ser colocado na conta do homem! Temos que rezar muito e pedir muito à energia que habita o universo que o bem tenha força. Porque a maldade está aí soltinha, né?
T+M: Quando for 100% seguro sair de casa, o que queres fazer?
CA: Eu sou muito caseira. Gosto de bater perna na rua durante o dia [ela gargalha]. Quero mais é ver meus amigos, ter contato com a natureza. Mas o que bate mesmo em mim, é rever meus amigos e família, que não vejo há tanto tempo!
Para conhecer mais:
@catarinaabdalla
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