Brega, com orgulho. E pop também!

Lorena Filgueiras

Felipe Cordeiro é bom de conversa. Uma vez que a gente senta pra prosear, não quer findar tão cedo. Estudioso, sobretudo, do fazer musical e de suas raízes, a docência perdeu um professor de filosofia, mas a cultura paraense ganhou um artista engajado, que se debruça sobre a Arte e busca reparar injustiças. Neste bate-papo, Felipe nos conta sobre seu novo disco, Transpyra, sobre o começo de carreira, o Brega e política brasileira – uma conversa pra lá de bacana, que compartilhamos com vocês. 

Troppo + Mulher: Vamos começar falando do teu novo disco, Transpyra? Quais foram tuas inspirações?
Felipe Cordeiro: O Transpyra é meu terceiro disco de carreira, cantado [Felipe produziu muitos outros discos de outros artistas, antes de se dedicar aos vocais, como vai explicar mais à frente]. Risos. No primeiro, lá atrás, foi um disco de composições minhas nas vozes de outros artistas. Por isso, considero que tenho três discos, comigo cantando. O Transpyra foi gravado, em partes, no Rio de Janeiro, Belém e São Paulo, sendo gravada a maior parte no Rio, com produção do Kassin, que é um grande produtor de música pop brasileira dos últimos tempos e que trabalhou, por exemplo, com Los Hermanos, Adriana Calcanhotto, Caetano Veloso. Este é o segundo disco meu que ele produz e assinamos juntos essa produção. É um disco que tem uma sonoridade mais livre, no sentido de ser um pouco mais híbrido e de ser menos fiel às matrizes que trabalhei nos últimos dois discos, que foram a guitarrada, o brega e o carimbó. Esse lance da Amazônia caribenha está presente no disco, porém de um jeito mais híbrido, misturado com uma linguagem pop e indie rock. Neste sentido, é um disco mais solto e, até certo ponto, mais experimental.

image Felipe Cordeiro (Julia Rodrigues)

T+M: Era o que eu ia te perguntar. Te sentiste mais livre para fazer esse disco?
FC: Sim, sim. Pra mim, um disco é um retrato de um tempo, de uma época, de um momento de suas vivências, então, pra mim, foi muito natural que ele fosse híbrido, porque ele é resultado das minhas viagens mundo afora, né? Nos últimos tempos, eu viajei muito! Brasil e fora do Brasil. Toquei na Rússia, na Alemanha, em Portugal e quase que nos quatro cantos do país. Ao mesmo tempo, eu nunca perdi esse elo com o Pará. Alimento demais esse elo e ele me nutre o tempo todo! Também tive encontros muito significativos com outros compositores e músicos. O Transpyra é um pouco filho dessas andanças! Há músicas que abordam isso. Tem uma música, que a Tulipa Ruiz gravou comigo, “Perfil”, que a letra fala das cidades onde andei e que estão no meu coração. A música que dona Onete gravou comigo, “Onde é que eu vou parar?”, que é, inclusive, a primeira música de trabalho do Transpyra, também fala exatamente disso: da minha vontade de querer ganhar o mundo e, em algum momento, voltar pro meu Pará. O disco é muito influenciado por essas andanças, mundo afora, e, ao mesmo tempo, do elo com Pará, que se reinventa o tempo todo.

T+M: Conversando, um tempinho atrás, com o Arthur Nogueira [músico paraense], ele me revelou que você produziu o primeiro disco dele. E sei que produziste muitos outros artistas. És filho do Manoel Cordeiro, que eu considero um virtuose e um baita compositor e preciso saber quando foi que decidiste abraçar a música... embora, entendo eu, já estivesses, em função da tua trajetória. Aproveito o gancho pra perguntar, o contexto que te fez sair das mesas de mixagem para a frente do microfone.
FC: Eu decidi que a música seria minha carreira meio tardiamente. Venho de uma família de músicos, como você bem sabe. Meu pai e meu tio, Barata, são grandes músicos e há mais músicos na família. Engraçado que eu estudei Filosofia, achei que seria professor, e me dediquei muito a isso até um certo momento. Eu pensava em fazer música, mas não pensava em fazer isso profissionalmente, de ser a minha vida. Aconteceu de 2009 para 2010, quando eu estava saindo da faculdade. Um pouco antes desse período já trabalhava como músico e produtor. Tocava e produzia, mas não cantava! Produzi o primeiro disco da Aíla, o primeiro show da Juliana Sinimbú. Trabalhei com uma geração de artistas, amigos. Foi uma época de muita experimentação e aprendizados. De 2009 para 2010 foi quando eu decidi que seria cantor e viveria de fazer música! Aí, percebi que não daria pra ser cantor e professor [ele cai na gargalhada], porque são duas profissões que exigem muita dedicação das pessoas. Para ser professor, eu teria que me dedicar muito, muito mais e é bem como falaste: a música já tinha aberto um caminho em mim. Meus amigos e minha mulher me dizer que tenho algo professoral em mim. Vivi esse dilema em 2008, mas terminei a faculdade e assumi a música. 

T+M: E quando decidiste cantar?
FC: Então, já nesse período, eu tava muito misturado com um monte gente, fazendo música com todo mundo! Mas assumi um papel coadjuvante: tocava, produzia. E comecei a querer a cantar minhas próprias composições nessa época. Muita gente me ajudou e uma dessas pessoas, inclusive, foi a dona Onete. Ela dizia “meu filho, largue todo mundo, pare de tocar com todo mundo e vá fazer o seu trabalho! Vá-se embora daqui! Você precisa ganhar o mundo! Cuide de sua carreira porque você tem muito talento!”.

T+M: Conselho de um professor [dona Onete é professora] pra outro!
FC: E não é? Dona Onete ainda estava sendo descoberta pelas pessoas, mas eu me aproximei dela muito cedo. Ela meteu essa pilha e eu fui!

T+M: Enquanto conversamos, Felipe, há alguns minutos o filho do presidente sugeriu que “só um novo AI-5” deveria ocorrer. Como artista, como tens acompanhado esse momento político do país? Como enxergas o futuro do país e o futuro do brasileiro com a Arte?
FC: A situação política mundial é muito intensa e o planeta vive muitas transformações e muitas dificuldades. No Brasil, a situação é mais delicada ainda. O governo que assumiu o poder e não somente ele, mas toda uma mentalidade coletiva, se insinua hegemônica, mas é perigosa, difícil de engolir; uma mentalidade muito fora do seu tempo. Primeiro que tecnicamente falando, o que o Eduardo sugeriu é um crime, configura quebra de decoro. O fato é que os artistas estão no centro de uma guerra cultural que o Brasil vive hoje. Disputa política é uma coisa normal, sempre vai acontecer: uma hora a esquerda ganha; noutra, a direita leva o poder. O que está acontecendo no Brasil não é isso! O que o Brasil está vivendo é uma tentativa de caminhada para a barbárie! Um princípio de mentalidade anticivilizatória e que criminaliza não somente os artistas, mas a Ciência e basta ver essa loucura do terraplanismo, que criminaliza a educação e observe a perseguição sistemática aos professores e que criminaliza... que tenta. Apesar de tudo, tenho uma mania otimista: isso está tentando se impor, mas vai esbarrar em um limite. Embora esteja perigoso, muitas pessoas que votaram nessa filosofia, observo eu, que estão revendo suas posturas. Mas eu acho que só existe esse ódio à cultura brasileira, porque a nossa cultura é muito forte e ela não está morta! Todos os artistas tomaram para si o papel de resistir às barbáries sucessivas. Acho que eles ganharam a batalha, as eleições, mas a guerra continua e temos que resistir. 

T+M: Voltando ao teu novo disco, carreira, tem algo que tô pra te perguntar há algum tempo: qual o papel do Brega na tua vida? 
FC: Olha, dá uma dissertação isso aí! O Brega funciona, pra mim, como uma bandeira política, já que falávamos desse assunto há pouco. Dos anos 50 a 70, as pessoas taxavam a música de “brega” porque era a música que as empregadas domésticas ouviam, porque os caminhoneiros ouviam, porque as prostitutas ouviam. Havia, claramente, uma divisão entre a música que tocava na sala de estar e a que tocava na cozinha. Ainda não estou falando do Brega e chique no Brasil, mas da jovem guarda e os descendentes dela: Odair José, Fernando Mendes e Reginaldo Rossi, que, ao meu ver, funda o Brega, enquanto estilo musical. Nos anos 80, o Brega ganhou o Brasil inteiro. No Pará, ele conquistou, ao longo dos tempos, esse sotaque mais dançante, mais caribenho nesse sentido da dança. E o Brega foi se distanciando da sofrência como tema. No começo dos anos 2000, com o tecnobrega, ele vira uma levada musical – pouco importa se vai falar de chifre ou não! Não é dar a dor de cotovelo que conta, é o ritmo [e imita a pegada do Brega com a voz]. Filho de bregueiros, esse período coincide com meu começo. E achei que era muito importante levantar essa bandeira dentro do meio mais crítico, do meio das elites culturais brasileiras. Então, meio que fui trazendo o Brega para o meu universo pop, de música experimental, de música eletrônica. O Brega nunca deixou de ser uma música popular, na história do Brasil, porém nunca tinha sido respeitado. Quando eu comecei a fazer o “Kitsch, pop, cult” [segundo disco do cantor], isso era atípico em Belém! Havia rádios que tocavam brega e que não tocavam. Isso ainda ocorre, mas as pessoas respeitam muito mais! E veja só: de 4, 3 anos para cá, há muitos outros artistas que abraçaram o Brega! A banda Uó, Duda Beat, Jaloo, Pabllo Vittar, Mateus Carrilho, dentre tantos, que são recebidos como artista de música pop brasileira, cuja uma das matérias-primas é o Brega! Cada um com suas características, naturalmente. Há 10 anos atrás, quando eu comecei a fazer esse trabalho, esse cenário não existia! Existia os bregas dos bregueiros, a banda do Pio Lobato, o Félix Robatto com o La Pupuña... No “Kitsch, pop, cult” essa é a discussão central: o Brega, o gosto, o quanto a elite cultural brasileira o desprezava. Como o Brega sempre foi maltratado pela crítica era uma grande inquietação minha e queria “nacionalizar” essa discussão, esse debate. É uma coisa pessoal, porque eu andava no meio dos bregueiros e via a sinceridade, os talentos. Era lindo ver como eles falavam de um Brasil autêntico! O Brega paraense tem características próprias. Esqueci de falar da Gaby [Amarantos], mas ele teve um papel fundamental na assimilação do conceito do Brega. Então, o Brega é o tema central das minhas criações. Eu não faço Brega, mas faço música pop com muita influência do Brega. Falei muito, né?

T+M: Imagina, Felipe! Eu adorei! Foi uma baita aula!
FC: [ele cai na risada] 

T+M: Morando há um tempo aí, em São Paulo, em qual momento tu dizes: “está na hora de ver Belém!”?
FC: Olha, Lorena, se eu pudesse, eu iria sempre. Quis vir morar em São Paulo, tenho necessidade de rodar o mundo, mas são na mesma intensidade que sinto necessidade de me conectar a Belém. Essa cidade pulsa forte dentro de mim! Pra mim, só o fato de estar conversando contigo, já me carrega as baterias e me dá um pouco da brisa que é viver aí. Mais recentemente, passei três semanas aí, gravando um filme. Sempre que posso, eu vou.

T+M: Filme? Que filme?
FC: Ahhhhh isso é novidade! É um documentário chamado “Gente que sopra o Pará”, do documentarista Renato Barbieri. Vai passar num canal de Televisão e só não posso adiantar muitos detalhes. Fiz a curadoria e fui o personagem principal que conectava muitos outros artistas. “Gente que sopra o Pará”, em breve!

Para saber mais:
@ofelipecordeiro

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