Marajó: a volta da 'normalidade' com velhos desafios da região após o pico da pandemia da covid-19
Dois anos após o auge dos impactos da covid-19, moradores do arquipélago lutam para voltar à normalidade – de dificuldades e desafios - nos municípios de Breves, Melgaço e Portel
"Parece que as pessoas daqui não aprenderam. E esqueceram tudo o que a gente passou”. Depois de 127 mortes causadas pelo coronavírus no município de Breves, o mais populoso entre os 16 que integram a região amazônica do Arquipélago do Marajó, a ponderação do dono de funerária Cícero Ferreira, 47, é direta e sem rodeios - como só faria quem viu bem de perto o ciclo completo da rotina de apuros e perdas do período mais duro da pandemia. Nas contas e listas, entre um silêncio e outro de testa franzida, são incluídos vizinhos, amigos, conhecidos e muitos outros, entre a gente com quem Cícero também nunca teve contato, na pequena localidade. Por isso, para ele, ainda é um sobressalto a constatação: é como se tudo tivesse voltado ao normal. Ou ao “novo normal”.
Cícero Ferreira é dono da funerária e mostra indignação com o relaxamento em relação à covid-19 em Breves (Tarso Sarraf / O Liberal)
Situada a 222 quilômetros de Belém, capital do Pará, Breves é a maior cidade marajoara, com 103 mil habitantes. Veja no mapa abaixo!
O município atravessava um cenário totalmente diferente em maio de 2020. No auge dos casos de covid-19, Breves produzia caixões em série - não só para a sua demanda, mas para suprir também as necessidades de enterros de outros municípios próximos da região ribeirinha. Acessada apenas por barco ou avião, em até 12 horas de viagem necessárias para se vencer a baía do Marajó, a cidade de Breves era sacudida por momentos nunca vividos. Explodia a demanda por internações e o vertiginoso crescimento dos óbitos causados pela doença apavorava as famílias da região.
Em meio ao desespero, restava uma peculiar luta diária para salvar vidas: se até os grandes centros urbanos tinham dificuldades para o enfrentamento à pandemia naqueles dias, imaginam-se as dimensões dos obstáculos enfrentados pelos moradores do Marajó para conter o coronavírus – em uma região historicamente marcada por graves problemas estruturais que impõem grandes desafios econômicos e sociais ao seu desenvolvimento. E isto ganha maior proporção justamente numa região onde as distâncias são enormes entre as comunidades ribeirinhas e as sedes dos municípios. Gastam-se horas e mais horas nesses deslocamentos, mesmo em embarcações mais velozes, como voadeiras e lanchas.
Era medo de pegar a doença. As pessoas se trancavam em casa. Tinha a questão do lockdown. O povo ficava em casa mesmo" - Ismael Ferreira da Graça, comerciante.
“Hoje, na administração, somos eu e o Zezinho. Antes, era o meu pai e o ‘Pelado’ [como o trabalhador, auxiliar administrativo, era mais conhecido]. Os dois faleceram de covid-19. Meu pai, de 71 anos, tinha problemas de coração”, conta Ismael Ferreira da Graça, 45, enquanto toca o trabalho, em meio a um movimento já considerado normal na feira livre e mercado de Breves, que fica na orla da cidade. Ismael virou o novo administrador do local, antes gerido pelo pai. “Naquela época a gente passou por um momento muito difícil. Aqui era silêncio total. Teve o lockdown. Hoje, está 90% voltando ao normal”.
Área comercial de Breves (Tarso Sarraf / O liberal)
Ao todo, três trabalhadores da feira e mercado morreram de covid-19. Por ser o administrador, Ismael tinha que arrumar coragem para ir à feira. Não havia outra opção. Para eles, ficar em casa não era uma opção. Era necessário trabalhar para garantir o sustento. “A gente vinha colocando a confiança em Deus, se protegendo com álcool em gel e máscara”, conta. Entre trabalhadores e as pessoas da administração, atualmente são cerca de 400 pessoas trabalhando hoje naquela movimentada área comercial de Breves.
No auge da pandemia, o movimento chegou a ser reduzido em 80%. “Era medo de pegar a doença. As pessoas se trancavam em casa. Tinha a questão do lockdown. O povo ficava em casa mesmo. Hoje já se vê o público sem a máscara entrando na nossa feira e mercado, sem preocupação. Muito diferente de dois anos. E a gente não vê mais aquela demanda de pessoas doentes nos hospitais”, pondera Ismael.
Medo desapareceu, embora letalidade ainda exija cuidados
Oficialmente, Breves já registrou até agora um total de 5.146 casos confirmados de covid-19, conforme o balanço da saúde pública estadual atualizado até 30 de maio. As 127 mortes atribuídas à pandemia no município expõem uma taxa de letalidade de 2,47% - um índice bem superior aos dos cenários da covid-19 na região, no Pará e no Brasil. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), no fim de maio a taxa de letalidade da covid-19 no Arquipélago do Marajó chegou ao patamar de 1,92%, enquanto no Estado do Pará o índice é de 2,37%, segundo os dados de 31 de maio de 2022. A média da taxa de letalidade da covid-19 para o Brasil era de 2,1% também em 31 de maio, aponta balanço do Painel Conass Covid-19, do Centro de Informações Estratégicas para a Gestão Estadual do SUS (Cieges) do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Ao fim de maio de 2020, nos piores momentos da pandemia, ao todo, o Arquipélago do Marajó inteiro somava 1.575 casos e 126 mortes por covid-19. E Breves ganhava naquele momento destaque nacional devido ao avanço do coronavírus - o que chegou a motivar a Promotoria de Justiça a ajuizar a ação pedindo prorrogação do lockdown -, aferido por dados da Universidade Federal de Pelotas (UFpel) que apontavam que a cidade tinha o maior índice de incidência de contaminação por coronavírus entre 133 municípios monitorados por estudo realizado em todo o País.
Na cidade, naquele momento, 24,8% da população estava com covid-19 ou já tinha sido contaminada pelo coronavírus: uma porção estimada em 25 mil pessoas entre os 103 mil habitantes, ou um em cada quatro moradores da cidade mais populosa do Marajó. Enquanto o Pará chegava aos 31 mil casos de covid-19 confirmados e às 2,5 mil mortes pela doença - apenas Belém somava 10.452 casos e 1.180 mortes, com índice de letalidade de 11.29% -, Breves somava 476 casos e 55 óbitos ao final daquele maio de 2020. E o índice de letalidade na cidade marajoara chegava a 11.55%, maior que o da capital paraense.
Apenas em abril passado, o Boletim Covid 2022, do Observatório Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ressaltou a manutenção da tendência de queda dos indicadores de incidência e mortalidade pela doença no Brasil. Na época, o documento destacou que, pela primeira vez, desde maio de 2020, nenhum estado superou a marca de 0,3 óbitos por 100 mil habitantes: para a Fiocruz, isso significou que a terceira onda da epidemia no Brasil estava em fase de extinção.
A gente não volta a ser o que era. Fiquei com sequelas. Tem dia que estou muito bem, tem dia que estou mal" - Shirley Morais, professora.
Dois anos depois da pior fase dos impactos do coronavírus sobre a população marajoara, e com os números estabilizados, fato é que a covid-19 já não é mais uma realidade assustadora em Breves. A maioria das pessoas não usa máscaras na cidade. E já não há mais a preocupação com a utilização de álcool em gel e nem com o distanciamento social. Os apertos de mãos voltaram a ocorrer naturalmente nas ruas, praças públicas e encontros casuais – e um espirro já não é mais motivo para se olhar assustado para a outra pessoa, como era comum no período mais intenso da pandemia.
Professora sempre chora ao lembrar dias de internação
A progressiva volta à rotina nas cidades marajoaras nos últimos meses, porém, não apagou o rastro de perdas e sequelas que a pandemia deixou. Nas cidades do Arquipélago do Marajó, há muitas pessoas com ansiedade. E a atenção à saúde pública vive um novo problema: outras doenças, relegadas a um segundo plano, já que a prioridade era o combate à covid-19, voltaram à tona com ainda maior intensidade na região.
Professora Shirley Morais foi transferida de Melgaço para o hospital de campanha de Breves, em 2020 (Tarso Sarraf / O liberal)
Em Melgaço, município marajoara de 28 mil habitantes, localizado a cerca de 13 horas de barco de Belém (250 quilômetros), a professora Shirley Lourinho Morais, 41, ainda chora ao citar os dias em que foi acometida pela covid-19, há dois anos. Com sua saúde agravada pelo coronavírus, ela precisou ser levada a Breves, numa viagem que dura uma hora de lancha. “Foi uma situação muito difícil. Desespero. Não gosto nem de lembrar”, conta ela, com lágrimas no rosto. “Na verdade, nem gosto de contar. Eu e a minha família sofremos muito. Lembro quando saí daqui do hospital de Melgaço até o porto de Breves. Fui para o hospital de campanha [em Breves]. De lá, lembro pouca coisa assim. Apaguei. Eu tinha muita tosse. Parecia que isso aqui meu [aponta para a garganta] era cheio de bicho, sabe? E canseira. Não me deu febre. Tosse e sede. Aqui fiquei três dias internada, e no hospital de campanha fiquei nove dias”, relembra.
Houve um momento em que Shirley achou que ia morrer. Ela contou emocionada:
Eu lembro 'malmente'... lá dentro, a gente não sabia se era dia ou noite. Lembro quando o enfermeiro falava da paciente, a A10. Que se a saturação dela não voltasse, ia ser intubada. Eu olhei para cima, no leito que estava e vi que a paciente A10 era eu. Fiquei desesperada” - Shirley Morais, professora .
Hoje a professora diz estar “muito bem”. E que, em primeiro lugar, agradece a Deus por sua vida. “Mas a gente não volta a ser o que era. Fiquei com sequelas. Tem dia que estou muito bem, tem dia que estou mal. Fiquei com cansaço, perda de memória. Estou fazendo uma coisa e, do nada, esqueço. Mas estou feliz. Estou viva”.
A filha de Shirley também contraiu a covid-19. Fez o tratamento em casa. Emagreceu dez quilos. “Ficou muito magrinha”, lembra a mãe. Shirley diz que, agora, todo dia é dia de celebrar a vida. “Todo dia é pra viver feliz da vida. Se Deus quiser, pretendo viver mais uns 50 anos”, anima-se.
‘Voltamos a receber visitas’
No vizinho município de Portel, há dois anos - no auge da pandemia e do medo que corria com as águas do Marajó, o autônomo Nilton Moreira Correia, 66 anos, colocou um aviso inusitado à porta da sua modesta residência: "Não estamos recebendo visitas". Dois anos depois, é o próprio Nilton quem abre a mesma porta da casa.
"Esava muito forte a pandemia. Aí, a gente não podia sair. E nem tampouco receber as pessoas em casa. Eu coloquei essa faixa para que as pessoas chegassem, lessem e não entrassem”, conta hoje em tom maroto. Enquanto seu Nilton fala, puxando pela memória, a cena lembra muito aquela que ficou no já distante maio de 2020. Mas há duas diferenças: hoje ele está sem máscara e não há mais aquele aviso à entrada de casa.
Seu Nilton mora há mais de 50 na cidade ribeirinha que soma mais de 63 mil habitantes. Naqueles piores dias da pandemia, o aviso ficou afixado à porta por mais de dois meses. A máscara e a plaqueta colocada à entrada de casa não adiantaram para deter o coronavírus. Ele teve covid, mas não foi grave. Outras pessoas da família também adoeceram. “Já tomei minhas quatro doses da vacina. A mulher tomou a dela também”, assevera seu Nilton, sem camisa - pois estava à vontade em sua casa, na tarde quente da sexta-feira, dia 13 de maio. “Hoje, estou bem tranquilo, graças a Deus. A gente já pode abrir a porta e receber as pessoas. Graças a Deus, está tudo bem”, diz ele, com um largo sorriso - mais um, entre os milhares que atravessaram a pandemia, e sobreviveram para seguir reinventando suas vidas no Marajó.
A série
Marajó: desafios e superação na Amazônia após auge da pandemia
Dois anos depois de relatar, nos municípios de Breves, Melgaço e Portel, o cotidiano e desafios no auge da pandemia da covid-19, em maio de 2020, O Liberal volta ao Arquipélago do Marajó e publica série especial, em sete partes, mostrando como a população enfrentou a pandemia e detalhando a rotina de superação e enfrentamento de velhos desafios - numa região ainda marcada com os piores índices socioeconômicos do Brasil. Personagens e suas histórias expõem contrastes do antes e depois no cenário imposto pelo coronavírus à saúde, economia e educação.
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