Pará registra aumento de 163% no número de casos de pistolagem de 2020 para 2021, diz CPT
Levantamento da Comissão Pastoral da Terra revela que registros desses casos no estado subiram de 1.032 para 2.720
Mesmo com a suspensão de despejos e desocupações em áreas urbanas e rurais em razão da pandemia da Covid-19, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) informou que houve um aumento considerável nos índices de conflitos no campo de 2020 para 2021, no Pará. Neste período comparativo, o registro de casos de pistolagem, por exemplo, subiu de 1.032 para 2.720, um crescimento de 163,5%. Vale ressaltar: a decisão do STF foi prorrogada até o dia 30 de junho deste ano.
A coordenadora nacional da CPT, Andréia Silvério, explica o que significa a pistolagem. “É quando o fazendeiro, o grileiro, que se diz dono de uma determinada área, contrata os grupos de pistoleiros para promover a expulsão das famílias e promover ameaças. Em muitos casos, esses pistoleiros são responsáveis também pelos assassinatos de lideranças rurais, de trabalhadores rurais, indígenas e assim por diante. E aí também temos um número alto de famílias que foram vítimas de invasão nos seus territórios no ano passado, foram 19.168 famílias que tiveram algum tipo de ação ilegal relacionada a invasão dos seus territórios”, declarou.
Outros números que assustam no que se refere ao estado são relacionados às casas destruídas, que passaram de 38 em 2020 para 404 no ano passado, um aumento de 963,1%; às roças destruídas, que subiram de 2 para 469 no mesmo período, registrando um incremento de 23.350%; e aos bens destruídos, que foram de 77 para 3.613, resultado em um percentual 4.592,2% maior.
De acordo com os dados enviados pela CPT ao Grupo Liberal, o Pará lidera o número de ocorrências de violência contra a ocupação e a posse na região Norte do país tanto em 2020, quanto em 2021, com 248 e 162 casos, respectivamente. Outro indicador negativo da CPT que o Estado lidera está relacionado à quantidade de famílias impactadas: no primeiro ano da pandemia, eram 2.608 grupos familiares, já no ano passado, esse total subiu para 31.445 famílias – consideravelmente maior do que o número registrado por Roraima (18.917) e Acre (10.567), que aparecem em segundo e terceiro lugar nesse ranking.
“As ocorrências registradas são a somatória das ações de violência contra as famílias e o número de ações de retomada e ocupação promovido pelas famílias. Para especificar melhor, esse número de 162 ocorrências está desmembrado da seguinte forma: 156 casos ou situações de violência praticadas contra as famílias no campo e seis ações de retomada de territórios reocupados por essas famílias. É quando eles reivindicam essas terras ou fazem a retomada das terras que foram ilegalmente invadidas por fazendeiros, grileiros e assim por diante”, detalha Andréia.
Também contém no relatório da CPT o quantitativo, em hectares, de áreas que estiveram envolvidas nessas disputas: no Pará, esse tamanho era de 28.755.708ha em 2020 e passou para 28.338.292ha, um pequeno recuo de área. O número de famílias ameaçadas de despejo, por exemplo, está relacionado às famílias que respondem a algum tipo de processo judicial e por isso pode ser despejada.
“Só para especificar, tem uma diferença entre o número das famílias expulsas e o número de famílias despejadas, o primeiro corresponde às situações em que as famílias são expulsas dos territórios por ações praticadas de maneira ilegal, no caso da pistolagem, em que os pistoleiros fazem a remoção forçada das famílias sem autorização judicial, sem envolvimento de qualquer tipo de órgão do estado, são as chamadas ações promovidas pelas agromilícias e isso está registrado aqui na coluna famílias expulsas. As famílias despejadas são àquelas retiradas desses territórios que ocupam tradicionalmente em razão de uma ordem judicial”, ressalta.
Ministério Público
A Promotoria de Justiça Agrária do Ministério Público do Estado (MPE) lembra que a muitos dos conflitos no campo são iniciados fora do campo e têm suas origens vinculadas a falhas nos registros públicos de terra. A promotora Helena de Melo afirma que há também uma forte influência advinda do processo de ocupação do território paraense, e que a Amazônia nunca foi desocupada como noticiado por décadas.
“A prova disso são as inúmeras comunidades tradicionais que vêm clamando por garantias até hoje, em relação a estes territórios, sejam estes ribeirinhos, indígenas, quilombolas, dentre outros. É neste sentido que o MP Agrário vem atuando, diretamente buscando evitar a consolidação da situação de enfrentamento, corrigindo pela via judicial as irregularidades identificadas nas cadeias dominiais destes imóveis que são objeto de reclamação por detentores de títulos, que muitas das vezes não possuem a regularidade necessária para constituir propriedade”, explica a promotora.
Ou seja, em outras palavras, os conflitos não nascem, necessariamente, por uma disputa por propriedade, mas sim pela sobreposição de títulos e matrículas sobre uma mesma parcela do território, provocando o enfrentamento entre quem está ali e tem o direito de ocupá-lo e quem detém um documento. É o que detalha Helena de Melo, ressaltando, ainda, que não raras vezes contém irregularidades na própria constituição desse documento, o que os invalida ou simplesmente prova que sequer deveria existir.
A promotora pontua que, além das ações judiciais, que passaram a atacar as questões fundiárias, o Ministério Público passou a atuar efetivamente na busca da solução legal dessas demandas na sua origem. Isso, de certo modo, desconstituiria o cenário de disputa, deixando de favorecer quem detinha acesso a instrumentos que os dava histórica legitimidade, muitas das vezes simulada sobre a terra, para desvelar a real e legal situação daquelas propriedades, garantindo e reestabelecendo a regularização naqueles territórios.
“Noutro momento, as questões que envolviam terras em disputa eram submetidas a uma generalidade de tratamento no sistema de justiça, os conflitos ficavam concentrados nos episódios de novas ocupações. Atualmente o tratamento passou à condição de especialidade jurídica, onde as Varas Agrárias foram criadas e passaram a ser processadas, bem como as promotorias agrárias, que atuam exclusivamente nesta temática. É importante destacar que, a temática agrária e fundiária não é tratada pelo MP Agrário exclusivamente no tocante aos conflitos, há um rol de atividades e articulações institucionais que tratam nas interseccionalidades que buscam a paz e a sustentabilidade no campo”, detalha Helena.
A promotora destaca, dentre estas, a atuação no controle e fiscalização das políticas públicas que auxiliam a fixação do homem no campo, assim como nas garantias e nos direitos dos povos das águas e das florestas na Amazônia paraense. Neste sentido, o MP Agrário realiza atividades que provocam outras instituições de governo à promover ações políticas tanto de regularização fundiária extra judicial, quanto de efetivação de garantias mínimas de infraestrutura para estabilizar as relações no campo com suas cadeias sustentáveis de desenvolvimento social e econômico.
Por não se tratar de uma realidade nova, ao atacar as origens desses conflitos, a estrutura de tratamento estaria sendo modificada, segundo a promotora. Helena afirma, por exemplo, que por meio das varas especializadas e promotorias agrárias, as liminares que garantiam a manutenção dos efeitos de títulos de terras irregulares deixaram de perdurar no tempo.
“A redução desse avanço criminoso vem sendo objeto de ações coordenadas entre o MP Agrário, Varas Agrárias e todo o sistema de justiça e registros públicos, Secretaria de Segurança Pública do Estado, Polícias Militares e Civil, Delegacias de Conflitos Agrários, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado, Incra, Iterpa, governos locais, enfim, esse enfrentamento vem se dando por instrumentos legais e que buscam garantir a solução pacífica e o respeito as decisões havidas nestes casos, assim como evitando conflitos diretos, garantindo a proteção de pessoas ou punindo os criminosos que os promovem. Esperamos dispor de cada vez mais estrutura para colhermos a paz no campo e as garantias previstas no texto constitucional, bem como o controle necessário nos registros públicos do território”, finaliza.
A reportagem do Grupo Liberal entrou em contato com a Defensoria Pública do Pará, para obter informações sobre as famílias despejadas após a decisão do STF de prorrogar a suspensão dessas ações até 30 de junho, mas não obteve retorno. Também foi procurada a Secretaria de Estado de Segurança Pública do Estado (Segup), que, até o fechamento desta reportagem, não se manifestou.