Desafios da magistratura: morosidade, demandas e a revolução digital no judiciário
Em entrevista ao Grupo Liberal, Líbio Moura presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Pará, falou sobre as principais pautas da classe.
"Quando a sociedade cobra resultados rápidos, muitas vezes estamos diante de leis que foram criadas para responder a casos específicos, o que apenas aumenta a carga de trabalho do Judiciário e contribui para sua morosidade", diz Líbio Moura, presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Pará (AMEPA).
O Poder Judiciário enfrenta desafios significativos no Brasil, com a morosidade dos processos e a crescente demanda por soluções mais eficientes como tópicos centrais. Em entrevista ao Grupo Liberal, Líbio Moura afirmou que o principal entrave do judiciário é a necessidade de leis mais enxutas e menos burocráticas e destacou o papel da inteligência artificial na modernização dos tribunais.
Além disso, o presidente destacou que, no Brasil, a classe do magistrado discute pautas importantes para o fortalecimento da sua atuação, como a necessidade de reformas na estrutura remuneratória e a importância da tecnologia para agilizar processos, uma melhor valorização dos magistrados e as implicações da evasão de magistrados para a eficácia do sistema. Acompanhe a entrevista na íntegra:
P: Quais as pautas principais para a Associação dos Magistrados do Estado do Pará?
R: A AMEPA representa juízes e juízas estaduais, né? A magistratura do estado do Pará, ou seja, a magistratura que está capilarizada no estado. Pra você ter ideia, quando tiver um fórum chamado justiça estadual, nós lá estaremos. Atualmente, a AMEPA possui 455 associados. Desses, temos cerca de 103, 105 aposentados, e aproximadamente 390 juízes espalhados pelo estado. Essa é a nossa representação. Então, com base nisso, temos diversas demandas, das mais variadas possíveis. Porque é da justiça estadual que nasce a gente tem que fazer revisões do dia a dia na cidade, nos municípios, né? Desde a prisão de uma pessoa, a fixação de alimentos, divórcio, casamento, tudo passa pela justiça estadual. Portanto, temos variadas demandas no dia a dia.
R: Quais são as principais pautas para o magistrado atualmente?
R: Eu te dou exemplo de duas pautas atualmente em destaque, que estão na "bola da vez", como a gente poderia dizer. Uma é a classificação da nossa atividade, da magistratura e também do Ministério Público, como atividade de risco. Só pra você ter ideia, nós todo dia estamos decretando prisões, fazendo audiência de custódia - aquela audiência frente a frente com pessoas envolvidas em crimes -, determinamos prisões de pessoas, atuamos em processos que envolvem organizações criminosas, e por incrível que pareça, a nossa atividade não é classificada como de risco. Isso traz sérias consequências, inclusive do ponto de vista pós-aposentadoria. Essa é uma luta que tramita no Congresso Nacional, já passou pela Câmara, foi ao Senado, houve modificação e voltou para a Câmara. Estamos aguardando essa deliberação.
Nós temos um outro ponto que também é preciso que a sociedade compreenda: a nossa discussão sobre a valorização do tempo de carreira na magistratura e no Ministério Público. Hoje, com a fixação do subsídio, que é o nosso salário, todos na magistratura ganham o mesmo subsídio, o mesmo salário. Se você tem um ano de carreira e estiver no mesmo patamar que eu estou com dez anos, nós ganhamos o mesmo salário. Isso não valoriza a continuidade do serviço público. Estamos nessa batalha para que haja esse reconhecimento, que está no Senado, à beira da votação. A imprensa discutiu isso como quinquênio, representando um suposto enriquecimento desnecessário para essas carreiras, quando na verdade, isso é um reconhecimento do tempo de serviço. Não posso ter uma pessoa com um ano de carreira ganhando o mesmo salário que alguém com vinte anos de carreira. Isso desmotiva o exercício da magistratura.
Essas duas causas são fundamentais para a magistratura e para o Ministério Público, e consequentemente para a sociedade. Quando a sociedade tem um juiz ou um promotor de justiça bem remunerado e com o reconhecimento de seus direitos, ela tem instituições muito mais fortalecidas. Essa é a nossa luta: fortalecer essas duas instituições para que tenhamos profissionais muito mais motivados e alinhados com os interesses da sociedade.
P: E agora falando de evasão do magistrado isso ainda é um problema para classe?
R: Sim. A evasão é um dos maiores problemas que temos hoje. Só pra você ter ideia, o Conselho Nacional de Justiça recentemente realizou o Exame Nacional da Magistratura (ENAM). Havia uma previsão de 100 mil inscritos, mas tivemos apenas cerca de 39, 40 mil inscritos, e aprovados tradicionalmente são apenas 6 mil. Para ingressar na magistratura hoje, você tem que fazer o exame. Então estamos falando de apenas 6 mil pessoas aptas a ingressar na magistratura do Brasil todo. Isso mostra que a carreira não está sendo atrativa. Por que? Primeiro, você corre riscos na sua atividade. Segundo, há sérias discussões sobre remuneração. Você tem responsabilidades que são imensas. Isso causa evasão, sem falar que os melhores quadros partem para a iniciativa privada, onde os salários não têm limite ou teto.
Para você ter ideia, já perdemos magistrados para a atividade de influenciadores, que ganham mais postando nas redes sociais do que trabalhando na magistratura. A magistratura exige renúncia, tal qual um atleta de ponta. Alguém que renunciou muitas vezes para estar estudando, né? A partir do momento que se envolve com a magistratura, sua vida privada passa a ser fiscalizada. Só para você ter uma ideia, o nosso código de ética da magistratura, que é um procedimento formulado dentro do Conselho Nacional de Justiça, exige de nós uma conduta de vida irrepreensível. É um conceito subjetivo, ninguém sabe exatamente o que é isso, mas significa que você não deve se envolver em nenhum problema.
Quando você passa na magistratura, o primeiro impacto que você sente é o afastamento dos seus familiares. Você vive em uma cidade, mas obviamente vai trabalhar em uma cidade o mais distante possível. Esse impacto na vida pessoal não é suportado por qualquer carreira, exceto pela magistratura. E quando você chega em uma cidade, não é para ser amigo de ninguém. Você chega para distribuir a justiça, para desagradar interesses, às vezes de pessoas que estão acomodadas ali naquela cidade. Então, a pressão sobre você é muito maior do que em qualquer outro cargo que você possa escolher. Claro, eu repito, não há demérito, não há competição de cargos, mas há um peso muito grande em ser juiz. A gente costuma dizer que você não escolhe a magistratura, você é escolhido pela magistratura.
Mas além de tudo isso, tem um outro fenômeno que recentemente foi discutido no Congresso Nacional, que é a magistratura se tornando nacional. Hoje nós temos concursos estaduais, obviamente cada tribunal realiza o seu concurso, mas é inegável que, atualmente, qualquer magistratura estadual atrai candidatos de todo o Brasil. Ou seja, você tem pessoas de todo o país concorrendo nesses concursos.
Por exemplo, se você aprova cem magistrados no concurso do Pará, seis meses depois dessa nomeação, cerca de trinta podem ter voltado para seus estados de origem ou prestado concursos mais próximos. Essa movimentação não entra numa estatística verificável porque a saída é muito particular. Você aprova cem, mas cada um vai se movendo para onde lhe interessa.
Isso também motivou o Congresso Nacional, e agora o Conselho Nacional de Justiça está regulamentando a chamada permuta. Com a permuta, eu posso passar em qualquer estado e voltar ao meu estado de origem ou para o estado que me interessa. A permuta entre os juízes é um termo que está em voga. Foi aprovada no ano passado uma emenda constitucional, e agora está sendo regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça.
P: De que forma o senhor vê o uso da inteligência artificial na magistratura?
R: A utilização de inteligência artificial entra nessa visão e o Conselho Nacional de Justiça já regulamentou o uso dessa tecnologia nos processos. Hoje, a gente faz isso ou fica para trás, como disse a Ministra Cármen Lúcia. Obviamente, qualquer processo que seja artificial vai passar pela supervisão humana, do magistrado. Mas, nós, do Poder Judiciário, temos que estar sempre antenados com as mudanças da sociedade. Não podemos deixar a sociedade caminhar e nós ficarmos para trás.
O Conselho Nacional de Justiça já regulamentou o uso da inteligência artificial nos processos. Hoje, ou adotamos essas tecnologias ou ficamos para trás. Obviamente, não devemos nos assustar com isso. O que devemos fazer é garantir que qualquer processo que envolva inteligência artificial passe pela supervisão humana, especificamente do magistrado. Podemos usar a inteligência artificial para agilizar a correção de textos e a elaboração de textos jurídicos, sempre com a supervisão humana para evitar problemas, como a criação de conteúdo não relacionado ou plágio. Esse é um risco que precisa ser bem gerenciado pelo Poder Judiciário para que possamos tomar decisões cada vez mais rápidas, com menos custo e resolvendo os conflitos de maneira eficaz.
Um exemplo disso é o laboratório de inovação do Tribunal de Justiça do Pará, o ‘Lab Pai D’égua’, coordenado pelo juiz Charles Menezes Barros, que utiliza inteligência artificial para diminuir o tempo de tramitação de recursos sensivelmente. O sistema vai verificar se o recurso preenche os requisitos objetivos subjetivos. Só isso reduziria o tempo de tramitação de um recurso de noventa dias para algumas horas. Então são essas pavimentações que nós temos que pegar e vamos trabalhar pra que isso aconteça.
P: Além de se aliar à inteligência artificial e à tecnologia, que pode viabilizar e trazer a celeridade, o que mais o senhor acha que pode trazer mais agilidade para o processo do judiciário de modo geral?
R: O magistrado, o operador do direito, é um aplicador da lei, certo? Em primeiro lugar, a sociedade às vezes nos cobra por resultados. É engraçado, porque quando você recebe alguém da população no seu gabinete, antes mesmo de a pessoa entrar com o processo, ela já pergunta: “Vai demorar muito?”. Essa é a primeira pergunta que as pessoas fazem quando vão a um juiz, a um promotor de justiça ou mesmo a um advogado. Nesse aspecto, a principal questão é a necessidade de leis mais enxutas e menos burocráticas. O Brasil ainda é um país onde se cria uma nova lei para cada situação, mesmo que já exista uma legislação aplicável ao momento. Por exemplo, em casos de homicídios que ganham repercussão, a resposta da sociedade brasileira costuma ser a criação de uma nova lei. Recentemente, houve a morte de um recém-casado, e a mídia especulou que, se houvesse uma discussão ampla sobre isso, certamente aprovariam uma lei para aumentar a pena de quem mata pessoas recém-casadas, apenas para dar uma resposta populista.
Precisamos ter muito cuidado com essas respostas populistas e com legislações feitas para casos específicos, pois isso acaba inchando a máquina legislativa e, por consequência, a judiciária. Não estamos dizendo que não deve haver novos atos legislativos, mas já temos marcos legais para muitas situações que devem ser aplicadas. O que precisamos é aplicá-los de forma adequada e moderada. Se incharmos a máquina com várias normas, acabamos criando uma justiça cada vez mais morosa. Criamos uma infinidade de recursos, mas não somos nós, juízes, que os criamos; apenas aplicamos as leis. Portanto, se justificarmos essa situação, conseguiremos uma justiça muito mais eficiente.
Você deve se lembrar da discussão na Operação Lava Jato sobre considerar alguém culpado antes do trânsito em julgado. Esse é um dogma para os operadores do direito: ninguém pode ser considerado culpado antes de esgotarem todos os recursos. Aceleramos o trânsito em julgado sem mudar esse dogma da área jurídica.
P: E aqui no estado, o que você diria que mais sobrecarrega o judiciário? Os problemas são os mesmos em todo o Brasil, ou há alguma particularidade?
R: Não, se você pega a justiça no Brasil como um todo, ela sempre tem seus pontos de ‘estrangulamento’. Vou lhe dar um exemplo impressionante: as varas mais abarrotadas no poder judiciário são as varas de execução fiscal. O que é isso? É o Estado cobrando dívidas de cidadãos ou sendo processado por eles. Esse dado é fundamental para entender que, no Brasil, o que não funciona vai para o Poder Judiciário. Se os serviços públicos funcionassem adequadamente, haveria muito menos sobrecarga no sistema judiciário.