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Intolerância religiosa: Pará teve quase 700 ataques registrados em 2022

Prática é melhor definida como "racismo religioso", por estar atrelada especialmente à matriz africana, pontua pesquisadora

Camila Guimarães

O assassinato de um homem na saída de um terreiro religioso de matriz africana, em Marituba, na Grande Belém, ocorrido no início deste mês, ainda não teve as motivações do crime esclarecidas pela Polícia Civil do Pará (PC), no entanto, o caso levanta questionamentos a respeito de intolerância religiosa - um tipo de discriminação que fere não só a Lei nacional nº 9.459/97, que prevê punição para discriminação religiosa, como também a Constituição Federal e os Direitos Humanos, que preconizam a igualdade e liberdade religiosa no território brasileiro. Em Belém, cidade com aproximadamente 3.500 terreiros religiosos de matriz africana (dado da Federação Espírita e Umbandista dos Cultos Afro-brasileiros do Estado do Pará - Feucabep), combater a intolerância para exercer livremente sua religiosidade é uma luta constante para pessoas de religiões afro-brasileiras.

No Pará, só de janeiro a outubro deste ano 697 delitos foram cometidos em locais como igrejas, templo religioso, centro espíritas, entre outros, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup). O balanço dá conta, ainda, de que, nos últimos dois anos (2020 e 2021) crimes nesses locais somaram 1.288 ocorrências. No entanto, a secretaria ressalva que o balanço é feito com base no local dos crimes, não podendo afirmar que em todos os casos o delito se enquadrou como intolerância religiosa. Ainda assim, o cenário preocupa pessoas de religiões de matriz africana. 

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Para o sacerdote umbandista, presidente do Instituto Religioso Umbandista (IRU), Marcelo Machado, pessoas de religiões afro-brasileiras, bem como seus espaços de culto e símbolos mais diversos, são constantemente alvos de violências motivadas por intolerância e racismo: "Não somente os locais religiosos afrodescendentes, mas todos que se identificam como tal passam por isso. Por todos os meios pelos quais externamos nossa religiosidade - seja nos trajes, nos objetos religiosos ou na própria identificação verbal - somos agredidos. A agressão vai desde um olhar e postura ostensiva, até missivas restritivas e palavras discriminatórias", afirma.

A pesar de nunca ter sofrido nenhum tipo de agressão física dentro ou às portas do terreiro, Marcelo conta que não é incomum gestos de violência nas ruas ou em outros espaços públicos, a começar pelo olhar discriminatório que recebe, principalmente se estiver fazendo uso de indumentária ligada à sua religião. Por esses e outros motivos, ele conta que já chegou a denunciar formalmente, em delegacia, vários crimes discriminatórios, inclusive acompanhando outras pessoas: "Sim, por várias vezes sou procurado para acompanhar religiosos de matrizes africanas à delegacia especializada, audiência conciliatória e até mesmo para dialogar com outros sacerdotes de outras religiões (principalmente as neopentecostais) para dirimir conflitos", ele conta.

Marcelo acredita que a liberdade religiosa ainda não é plenamente vivida pelas pessoas que, como ele, fazem parte de uma religião afro-brasileira. Ele explica o porquê: "Por parte da sociedade, falta uma conscientização da legitimidade de nossos direitos religiosos em um país laico. E, por parte do governo, faltam políticas públicas para um acesso mais célere, igualitário e respeitoso com o nosso povo cultuador de um sagrado milenar".

image "A intolerância religiosa é toda a ação de não aceitação da matriz religiosa diferente da minha. No caso das de matrizes africanas, a gente chama de racismo religioso", diz a antropóloga Taissa Tarvernar (Fabio Costa / O Liberal / Arquivo)


Pesquisadora diz que intolerância e racismo estão interligados

Para a antropóloga Taíssa Tavernard, coordenadora do curso de Filosofia da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e pesquisadora há 27 anos de religiões de matriz africana, é muito claro que a chamada intolerância ou discriminação religiosa, no Brasil, está diretamente atrelada ao racismo. Por isso, ela comenta que o termo 'racismo religioso' descreve de maneira mais adequada a maior parte das violências sofridas por pessoas de religiões afro-brasileiras.

"A intolerância religiosa é toda a ação de não aceitação da matriz religiosa diferente da minha. No caso das de matrizes africanas, a gente chama de racismo religioso, porque ela está diretamente relacionada ao racismo que faz parte da sociedade brasileira. Então as religiões de matrizes africanas sofrem duplo preconceito - o fato de não serem religiões cristãs e também por estarem relacionada à cor, às populações afrodescendentes", explica.

Para ilustrar, Taíssa faz um paralelo com religiões de matriz hinduísta ou budista ou de outras culturas que, diferentemente das de matriz africana, não costumam ser alvo de violência da mesma forma, pelo contrário, muitas vezes são admiradas em certos aspectos, chegando a ser pano de fundo de telenovelas, por exemplo. Por isso, segundo seus estudos, a intolerância ao livre exercício da religiosidade afro-brasileira e a livre expressão de seus praticantes por meio de gestos e indumentárias acaba sendo uma revelação explícita de racismo:

"Existem várias formas pelas quais esse racismo religioso se expressa, além da violência física explícita. Um exemplo é que, muitas vezes, no espaço escolar, as diretoras aceitam um aluno adepto de uma religião cristã que não pode usar determinada roupa, como as meninas, que as vezes não podem usar calça comprida. Mas, se porventura um aluno, que passou por um processo inicial em uma religião de matriz africana, precisar usar uma roupa específica, ele sofre bullying e discriminação. Da mesma forma, vemos a diferenciação entre a aceitação dos rituais ligados às religiões cristãs e a rituais de outras religiões: a certidão de casamento cristã é aceita, mas a certidão de casamento criada por um terreiro pode ser aceita ou não", exemplifica.

Taíssa descreve, ainda, uma terceira manifestação do racismo religioso que pode ser ainda mais difícil de distinguir, mas igualmente prejudicial - o racismo lúdico: "Muitas vezes somos racistas 'brincando', o que é um grande problema na nossa sociedade. Muitas pessoas são racistas sem perceber.  Ultimamente, por exemplo, a comparação dos manifestantes contrários ao resultado das eleições com a entidade do Tranca Rua é uma piada racista", esclarece.

Para a pesquisadora, a superação dessa realidade está atrelada à necessidade de lidar de forma séria com o assunto, mais do que à criação de leis, com um amparo especializado para atender pessoas vítimas de racismo religioso: "O problema não é tanto a criação de leis porque já existem leis que combatem racismo e racismo religioso. O problema não é o fato de passar por uma experiência dessas e chegar numa delegacia comum e isso não reverberar como que realmente é: racismo. O que a gente precisa criar é mais delegacias especializadas para tratar especificamente desse tipo de crime que muitas vezes não é considerado da maneira correta pelas delegacias normais".

A percepção da pesquisadora interpreta, paralelamente, a realidade observada no balanço solicitado pela reportagem à Segup que, quando demandada a respeito do número de registros de intolerância religiosa no estado, comenta que o balanço é feito com base nos locais onde ocorreram delitos, "não sendo possível afirmar que os delitos tenham sido praticados em virtude de intolerância religiosa".

image Pai Marcelo destaca que Belém tem cerca de 3,5 mil terreiros e a intolerância religiosa afeta mais gravemente afrorreligiosos (Sidney Oliveira / O Liberal)

Como denunciar

A Polícia Civil do Pará (PC) informa que as denúncias podem ser realizadas na Delegacia de Combate aos crimes Discriminatórios e Homofóbicos (DCCDH) ou em qualquer unidade policial. As denúncias podem ser feitas também via Disque Denúncia 181, WhatsApp (91) 98115-9181, o formulário e a caixa de diálogo com a atendente virtual Iara no site da Segup.

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