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Mulheres na ciência: superar preconceitos e buscar a equidade

Pesquisadoras contam como conseguem superar barreiras e se manter em estudos focados no desenvolvimento socioambiental na Amazônia

Eduardo Rocha

Equidade é uma palavra feminina que significa senso de justiça e traduz toda uma história de luta de mulheres, em especial, na ciência desenvolvida na Amazônia, de vez que, por exemplo, na maior instituição pública de ensino superior dessa região, a Universidade Federal do Pará (UFPA), ainda existem barreiras no caminho dessas cidadãs. Uma delas é o fato de que menos de 50% dos professores da Universidade são mulheres. No entanto, elas não se deixam abater diante dos desafios a vencer e, a cada dia, conquistam novos espaços e aumentam a contribuição à sociedade em diversas áreas. E nesse ambiente de busca por novos horizontes, a Reitoria da UFPA instalou, na terça-feira (6), a Comissão para Equidade de Gênero (CEG), reunindo 20 profissionais de diversas áreas do conhecimento. 

De acordo com dados verificados pela Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal (Progep) da UFPA em dezembro de 2023, atualmente, a Universidade possui 1.386 mulheres em seu corpo docente, dentre servidoras efetivas e contratadas. Este número corresponde a 46,52% do total de docentes da UFPA.

Até porque, as conquistas vêm progressivamente à tona. Com relação ao corpo discente (de estudantes), a ‌Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento Institucional da UFPA (Proplan), informa que os dados referentes ao ano de 2023 indicam que há 21.143 discentes de graduação mulheres matriculadas na instituição. Este número corresponde a 53,29% das(os) discentes de graduação matriculadas(os) em 2023. Portanto, as mulheres são a maioria dos estudantes na graduação.  O Processo Seletivo 2024 da UFPA teve um total de 38.817 mulheres com inscrições homologadas, e 3.684 aprovadas, um total de 54.56% das(os) classificadas(os) convocadas(os).

Sobre discentes de pós-graduação, de acordo com dados verificados em 27 de janeiro de 2024 pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPA (Propesp), há 3.855 discentes ativos de pós-graduação mulheres. Este número corresponde a 50,49% dos(as) discentes ativos de pós-graduação da UFPA. Mulheres são novamente maioria. Os programas de pós-graduação possuem fluxo contínuo de lançamento de editais para ingresso de discentes, logo, este é um dado que possui uma grande variabilidade ao longo do ano.

Interação

Neste 11 de fevereiro, Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, histórias de caminhada para concretização de metas e de enfrentamento de preconceito revelam a tenacidade de algumas das pesquisadoras da UFPA, como Kátia Omura e Joyce Kelly. Kátia Omura, 38 anos, é professora do curso de Terapia Ocupacional da UFPA, terapeuta ocupacional formada pela (Universidade do Estado do Pará (Uepa) e doutora em Neurociências pela Universidade de Nápoles (Itália). Ela é casada, não tem filhos e mora no bairro da Pedreira. Kátia é docente desde 2015 e trabalha na pesquisa desde 2009. Atualmente, desenvolve pesquisas na área de Inovação em Terapia Ocupacional com criação de tecnologias que auxiliem na promoção da qualidade de vida das pessoas. 

Essa professora foi premiada pela Companhia 3M, em 2021, sendo uma das uma das cientistas escolhidas como destaque na Ciência na América Latina. Dois projetos, desenvolvidos desde que ela está na UFPA, foram submetidos à premiação. O primeiro é o "Memorylife, um aplicativo para treino cognitivo de idosos com Alzheimer. O outro projeto é o "Sexadapt", que se trata de um aplicativo em que são mapeados motéis e pousadas, na Região Metropolitana de Belém, que são acessíveis às pessoas com deficiência. 

"Eu me tornei pesquisadora de fato quando entrei no mestrado em Neurociências na UFPA. Participei de um grande projeto de pesquisa que teve como objetivo buscar marcadores bioquímicos para a doença de Parkinson e Alzheimer. Uma das coisas que me motivou foi o contato com os pacientes, principalmente quando fui voluntária das associações dos parkinsonianos do Pará e da Abraz. Ver as dificuldades dos pacientes e familiares me motivou em querer contribuir de alguma forma para atenuar o sofrimento deles", ressalta Kátia.

Ela destaca que desenvolve o projeto Memorylife desde 2016 na Universidade, um aplicativo para estimulação cognitiva de idosos com Alzheimer. "Acho que é uma pesquisa importante, pois temos tentado criar um recurso não farmacológico que possa auxiliar no retardo da doença. Outro projeto que tenho muito orgulho é o Sexadapt que trata de um aplicativo que mapeia estabelecimentos relacionados a atividade sexual que são acessíveis às pessoas com deficiência. Um outro projeto que estou trabalhando na publicação diz respeito às ocupações das pessoas transexuais, uma população negligenciada pelo poder público e que precisa de pesquisas que possam ajudar na criação de políticas públicas que possam atender as suas demandas", destaca.

Preconceito

Kátia acredita que o preconceito com relação às mulheres pesquisadoras é algo histórico. "Nós, mulheres, sempre fomos excluídas de ter acesso ao estudo, a uma carreira e, com o tempo, isso foi se transformando a partir da luta das mulheres para terem esse direito. Além disso, nós, mulheres, carregamos diversas responsabilidades impostas socialmente que dificultam o desenvolvimento de uma carreira acadêmica, fazendo com que sejamos vistas como menos capazes desenvolver ciência". 

Na avaliação da professora Kátia Omura, "ser pesquisadora mulher já é um desafio por conta de toda a sobrecarga existente em termos das tarefas domésticas, da família...e na Amazônia ainda mais difícil". "Pois o acesso a bolsas de pesquisa, o próprio acesso às pós-graduações que são poucas com poucas vagas já é um fator limitante. Além de acesso a recursos e tecnologias necessárias para o desenvolvimento da pesquisa, o que também é difícil na nossa região", acrescenta.

"Uma das barreiras que as mulheres encontram no mundo científico é o fato de ter que escolher entre a carreira e ter uma vida com a família. Eu não sou mãe, mas vejo o quanto as minhas colegas que são mães precisam se desdobrar para conseguirem desenvolver os seus projetos e que, muitas vezes, as universidades não dão o devido suporte, e não somente a universidade, mas todo um sistema como Capes, CNPQ e as fundações de fomento à pesquisa, que não levam essa questão em consideração. Somente há poucos anos, que as mulheres pesquisadoras "ganharam" a possibilidade de tirar licença maternidade durante o período da pós-graduação. Mesmo na graduação, por exemplo, não se tem previsto o momento do puepério da discente que acabou de ter o filho. É levado em consideração apenas o período da gravidez...", atesta a pesquisadora.

O preconceito à mulher na ciência, como aponta Kátia Omura, "vai desde uma não seleção da mulher para uma bolsa de pesquisa, pelo fato de essa pessoa ter planos de constituir uma família ou pelo fato de ter filhos, até comentários misóginos de outros colegas pelo simples fato de ser mulher". Para ela, esse tipo de barreira impede um maior avanço das pesquisas científicas na Amazônia. "Eu trabalho em uma instituição em que grande parte do corpo docente, discente e de técnicos são de mulheres e vejo o quanto temos que nos esforçar muito mais para conseguir desenvolver pesquisas em relação aos outros colegas homens. As mulheres precisam abrir mão de muito mais coisas para se destacarem e enfrentam preconceitos diversos e julgamentos constantes por conta das suas escolhas. O mais absurdo é que temos que fazer escolhas...e sempre somos julgadas por elas", enfatiza.

Essa pesquisadora revela o quanto é difícil exercer essa profissão. "Preconceito descarado, acredito que nunca sofri, mas julgamentos pelo fato de ter a minha vida dedicada à ciência e à docência, isso com certeza. As pessoas esperam que você tenha filhos, que você dê conta de uma carreira e que se dedique à família. Mas quando você opta por dedicar a sua vida à carreira, você é vista como ambiciosa, ou traçam comentários sobre a sua sexualidade...enfim, tentam te enquadrar de algum modo. Enquanto que os homens não sofrem esse tipo de julgamento e nem de cobrança", afirma. Para reverter esse processo, Kátia acredita na educação. "Devemos "letrar" as pessoas sobre a necessidade de termos políticas mais igualitárias e equânimes, de forma a oportunizar mais mulheres na ciência e mais mulheres em posições de liderança que são de extrema importância para abrir mais oportunidades para nós", completa.

Enfrentamento

Acerca de as mulheres serem ainda menos da metade (46,52%) dos professores da UFPA, a professora de Literatura, Maria Lucilena Gonzaga Costa Tavares, com atuação no campus do Tocantins/Cametá e coordenadora de projetos de pesquisa sobre mulheres e sociedade, destaca que "entre os inúmeros fatores que dificultam o acesso da mulher ao trabalho assalariado, estão a maternidade, o trabalho doméstico, o cuidado com os pais (crescente no Brasil), e, também o pouco tempo destinado ao estudo preparatório para concurso e as especificidades para seguir estudos na pós-graduação, em virtude dessa extensa jornada de trabalho mencionada". "Embora as mulheres sejam a maioria na graduação, só recentemente houve equiparação da presença delas na pós-graduação. Muitas concluem a graduação com grande esforço, e não conseguem acessar a pós-graduação, resultando na minoria ingressante ao trabalho remunerado", acrescenta.

image Professora Lucilena Gonzaga preside a CEG da UFPA (Foto: Divulgação)
 
Esse quadro tende a mudar, na interpretação de Lucilena Gonzaga, para quem o contexto político nacional tem se mostrado favorável à equiparação de gênero. "O projeto de lei 111/23 tornou obrigatória a igualdade salarial para homens e mulheres; o Ministério das Mulheres tem pautado políticas públicas para assegurar o direito das mulheres, e a Universidade Federal do Pará se mantem em consonância a essas políticas", pontua.
 
A professsora preside a Comissão para Equidade de Gênero da UFPA (CEG), estabelecida pelo reitor Emmanuel Tourinho. Essa comissão, como frisa a professora Lucilena,  mostra-se como fundamental para assegurar que as mulheres integrantes da Universidade, sejam discentes, docentes, técnicas, prestadoras de serviços, tenham seus direitos garantidos: a ampliação do tempo para a conclusão de curso de graduação às discentes, em virtude de maternidade; a licença-maternidade às discentes da pós-graduação; bonificação ou renovação automática de bolsa às discentes dos Programas Institucionais, como o PIBIC e o PRODOUTOR; mapeamento dos grupos de pesquisa que tratem de temas relacionados à equidade de gênero, a fim de promover maior visibilidade aos trabalhos e eventos; inclusão de critérios específicos que atendam as mulheres no Programa de apoio à qualificação de docente e técnica (PADT), considerando as interseccionalidades; garantia de 50% às mulheres na concessão de auxílio financeiro no Programa de Auxílio à Qualificação (PROQUALI). Quanto às mulheres que almejam ingressar na instituição, a Comissão deverá defender que os editais incluam critérios de desempate a fim contemplar mulheres negras, quilombolas, indígenas, trans e PcDs. 

Curiosidade

Uma outra história de conquistas na ciência tem como protagonista a professora Joyce Kelly do Rosário da Silva. Formada em Bacharelado em Química, com mestrado e doutorado em Química Orgânica pela UFPA, Joyce Kelly, 41 anos, atua como docente e pesquisadora da instituição há 14 anos. Ela trabalha com química de produtos naturais, especialmente com plantas aromáticas da Amazônia e seus óleos essenciais, em uma linha de pesquisa multidisciplinar, envolvendo profissionais da Botânica, Agronomia, Farmácia, Microbiologia, Bioquímica e outras áreas. "O objetivo das nossas pesquisas é encontrar novos óleos essenciais da Amazônia com potencial valor econômico, podendo ser aplicado em diferentes campos, como, por exemplo, alimentos, cosméticos, produtos de uso agronômico e medicamentos", destaca a professora Joyce.

Ela conta que no momento em que escolheu fazer Bacharelado em Química já sabia que queria ser pesquisadora, foco esse que se confirmou ao longo do curso. "A minha principal motivação, eu digo, que é a minha curiosidade. Eu sempre fui uma criança muito curiosa que buscava as respostas para as perguntas. E aí, nesse caso, por eu gostar muito de plantas e da química orgânica, da química de produtos naturais, eu me identifiquei bastante com essa área e, então, é a área em que eu atuo até hoje", pontua.

Vinculada ao Instituto de Ciências Biológicas (ICB), a docente atua nos Programas de Pós-Graduação em Biotecnologia, Química e Farmacologia da UFPA, foi premiada, em 2013, no prêmio Para Mulheres na Ciência, na categoria de Ciências Químicas e no ano de 2023 no prêmio “Mulheres Brasileiras na Química”. Suas linhas de pesquisa envolvem estudo da composição química, bioprospecção das atividades biológicas, variação de metabólitos durante a interação planta-patógeno e diferentes condições de cultivo, desenvolvimento de novos produtos a partir de óleos essenciais e graxos e Biologia molecular de plantas.

"Uma das pesquisas atuais que eu desenvolvo e que tem um retorno direto para a sociedade é focada no controle de pragas da pimenta do reino. O Pará é um dos maiores produtores de pimenta do reino do Brasil e perdeu bastante a sua produção por causa de doenças fúngicas que acometem a cultura no estado do Pará. Existem vários fungos que ocasionam perdas na produção. Então, eu venho trabalhando há bastante tempo com a busca de novas soluções tecnológicas para o controle dessas doenças fúngicas. Acredito que tem um retorno direto para a sociedade, uma vez que a pipericultura na nossa região, envolve muitos produtores. A agricultura familiar tem um impacto econômico para o nosso estado e para a sociedade", ressalta Joyce Kelly.

Superação

Para a professora, "ser uma mulher que faz ciência na Amazônia é difícil", por questões pessoais e profissionais. "Quando a gente olha a questão de ser uma mulher da Amazônia, pesquisadora, e que atua numa área que é a área das ciências exatas e naturais, que é dominada por homens, isso se torna muito mais difícil, por sermos minoria, por não termos uma política de inclusão de mulheres nessas áreas. Consequentemente, encontramos muitas barreiras e preconceitos, tanto por ser amazônida quanto por ser mulher". Ela observa que o preconceito contra as mulheres na ciência existe, sim, e muitas vezes é o preconceito velado, com poucas mulheres atingindo os níveis máximos da carreira. Joyce destaca que no mundo acadêmico em geral ocorre o chamado efeito tesoura, caracterizado pela limitação, impedimento de mulheres assumirem cargos de coordenação, de presidência de instituições e entidades. A maternidade é vista, muitas vezes, de forma preconceituosa, como algo negativo à inclusão das mulheres na ciência.

A pesquisadora defende que, para reverter esse quadro, é preciso não negar os dados, uma vez que as estatísticas apontam que a participação feminina na ciência do Brasil é baixa, sobretudo, em maiores níveis da carreira. "Além disso, as mulheres da Região Amazônica são sub-representadas na questão racial, também, e nas ciências exatas e naturais nós temos pouquíssimas representantes do Norte como bolsistas de produtividade do CNPq e tampouco mulheres. Então, precisam ser trabalhadas políticas de inclusão de mulheres pelas universidades, instituições de pesquisa e, programas para a inserção de meninas interessadas em ingressar na área acadêmica, científica", conclui a professora Joyce Kelly.

Pará