‘Ir lá embaixo’: a tradição que conecta gerações no comércio de Belém
A expressão popular, usada pelos antigos para referir-se ao comércio de Belém, revela a rica história cultural e econômica da capital paraense
A expressão popular, usada pelos antigos para referir-se ao comércio de Belém, revela a rica história cultural e econômica da capital paraense
Ir ao comércio de Belém sempre foi mais do que uma necessidade para o povo paraense. É uma experiência carregada de história, tradição e identidade. Entre as vielas e ruas do bairro da Campina, o coração comercial da cidade, encontra-se um patrimônio imaterial que atravessa gerações: o hábito de “ir lá embaixo”. Essa expressão popular, antes amplamente usada pelos moradores, está sendo esquecida pelas novas gerações, mas continua a pulsar na memória de quem viveu os tempos áureos do comércio de Belém.
O bairro da Campina, conhecido como o núcleo inicial do comércio belenense, remonta ao século XVIII. Segundo o historiador Michel Pinho, de 49 anos, a área era conhecida como Rua dos Mercadores, onde se concentravam as vendas de secos e molhados. “Ir ao comércio era uma tradição porque lá se encontrava tudo o que as pessoas precisavam. Durante o século XIX, com o ciclo da borracha, o comércio evoluiu, oferecendo tecidos europeus, sapatos e chapéus, marcando o início de um consumo mais refinado”, explica Michel.
Ele também destaca que a expressão “ir lá embaixo” está relacionada à geografia da cidade. “O termo refere-se à localização do comércio em áreas mais baixas da cidade, perto do porto e suscetíveis a alagamentos durante as marés altas. Era o ponto de encontro para comprar, vender e viver o cotidiano de Belém”, completa o historiador.
Para quem cresceu no comércio, como a comerciante Michelle Progenio, de 39 anos, “ir lá embaixo” é mais do que uma expressão, é parte da história de vida. “Eu fui criada por camelôs e ouvi muito meus pais dizendo que iam ‘lá embaixo’ comprar ou vender. Hoje em dia, essa expressão quase não é usada, mas para mim ela tem um significado emocional muito forte”, conta.
Michelle também observa que o comércio de Belém é uma oportunidade para aqueles que não tiveram acesso à educação formal. “Nem todos podem estudar ou esperar anos para se formar. O comércio dá uma chance imediata para quem precisa colocar comida na mesa. Por isso, uma revitalização do comércio é importante, mas sem tirar os ambulantes, que são parte dessa história”, reforça.
Ednay Almeida, pedagoga de 75 anos, compartilha memórias afetivas relacionadas ao comércio. “Eu cresci ouvindo meus pais dizendo ‘vamos lá embaixo’, e para mim isso significa ir ao comércio fazer compras. Até hoje, eu prefiro o comércio tradicional aos shoppings, porque aqui encontro tudo e ainda sinto aquele clima de Belém antiga”, comenta.
Ednay também destaca a importância do comércio em momentos festivos. “Minha família sempre vinha ao comércio nas épocas de Natal, Círio e Carnaval. É uma tradição que tento passar para as minhas filhas, mas os netos já não têm tanto interesse, eles preferem os shoppings”, lamenta.
A revitalização do comércio de Belém está sendo realizada em etapas e, segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo (Seurb), as obras já estão 70% concluídas na Rua Santo Antônio. O projeto também inclui a revitalização da Rua João Alfredo, mas, devido à transição entre a antiga e a atual gestão, os trabalhos estão temporariamente paralisados. A previsão é que as obras sejam retomadas no final de fevereiro de 2025, com conclusão total ainda prevista para este ano, embora sem uma data definida.
O projeto contempla a recuperação das calçadas, o alinhamento das pedras históricas e a instalação de equipamentos urbanos, como lixeiras, bancos e jardineiras. O objetivo é devolver à população um espaço funcional e que resgate a importância histórica do comércio de Belém.
O comércio de Belém não é apenas um ponto de venda; é um símbolo de identidade cultural e resistência econômica. Revitalizar essa área não é apenas preservar a memória histórica, mas garantir que gerações futuras possam experimentar o que é “ir lá embaixo”.
Para moradores e comerciantes, o comércio continua sendo um reflexo da essência belenense: acolhedor, resiliente e profundamente conectado às raízes da cidade. O desafio agora é conciliar a modernização com a preservação dessa herança, garantindo que o comércio de Belém continue a pulsar como o coração econômico e cultural da capital.