O Liberal na Ucrânia: Acesso livre em Chernobyl
O sol ainda não tinha dado as caras quando Maxine, um taxista que se tornou um amigo nesta viagem, já me aguardava na frente do hotel. Pela primeira vez na vida e provavelmente a última, eu e ele estávamos a caminho de Chernobyl.
Desde a invasão russa em 2022, acessar a Zona de Exclusão se tornou missão quase impossível. O local, que sempre foi aberto para turistas, passou a ser uma área exclusivamente militar. Para ter acesso é preciso ter autorização do governo, e nós obtivemos.
Entre casas abandonadas e galhos nas janelas, sinalizando que a mãe natureza já tomou conta dos vazios deixados pelo ser humano, a guia que nos acompanhava explicou que estávamos diante do primeiro memorial da região. Um mar de 94 placas indicando todas as vilas que haviam sido abandonadas desde o desastre nuclear.
Seguimos até Pripyat, a cidade que chegou a abrigar 50 mil habitantes, todos ligados à usina, se transformou em um gigantesco cemitério aberto. Entre prédios abandonados, um supermercado que ainda mantém de pé as suas divisórias. Entre móveis destruídos pelo tempo, um carrinho de supermercado segue de pé, enferrujado, mas ainda posicionado como se alguém tivesse abandonado ele às pressas. E provavelmente foi exatamente assim.
No parque de diversões, o silêncio grita. A roda gigante e o carrinho de bate-bate ainda guardam as memórias de um local que nunca foi. A sua inauguração estava datada para o 1º de maio, dia do trabalhador, um presente ao estilo soviético para a população da pequena cidade de idade média de 26 anos. A tragédia aconteceu cinco dias antes do local abrir as portas e, hoje, é um parque fantasma que deixa para os poucos visitantes a imaginação do que ele poderia ter sido.
Próximo a ele, está o principal hospital de Pripyat. Ali foram recebidos os primeiros pacientes na madrugada da tragédia, perguntei à Helena, guia do governo, se poderia fazer registros lá dentro e ela prontamente disse que não poderia chegar perto. Desde o dia 26 de abril de 1986, as roupas dos bombeiros que atuaram em Chernobyl ainda estão no porão do hospital, portanto, o nível de radioatividade é elevado demais para arriscar chegar perto.
Os pedidos por um registro mais exclusivo não foram a toa, a história da usina sempre chamou minha atenção. Via filmes e documentários sobre o acidente e não queria perder a chance de ver aquilo de perto. Mal sabia que a visita ainda aguardava uma oportunidade indevida.
Agora, o local tem novos inquilinos. O exército ucraniano está por toda parte, diversas trincheiras foram estabelecidas e, as duas estradas que ligavam a cidade à Bielorrússia, foram completamente destruídas.
A guia não tinha mais autorização para seguir. Apenas eu e alguns funcionários da fábrica que, com muita disposição, me levaram de forma exclusiva para dentro do Reator N°4, responsável pela explosão em 86.
Foram seis checagens de segurança e de nível de radiação no corpo até chegarmos no local, completamente cobertos de roupas brancas para acessar o gigantesco sarcófago.
Nunca imaginei que ficaria cara a cara com os restos de um reator que, em uma madrugada, destruiu a vida de milhares de pessoas. Um dos pesquisadores me disse que a história de Chernobyl é, também, sobre mentiras.
Legenda ()“Tiraram os trabalhadores de Pripyat e prometeram que voltariam em três dias. Ninguém nunca mais vai morar aqui. É igual a história que contaram quando invadiram nosso país, disseram que em três dias tomariam Kiev e nunca conseguiram. São especialistas em mentir”, disse
No curto período em que os russos tomaram Chernobyl, segundo os funcionários, eles destruíram computadores e aplicativos usados para pesquisas sobre a qualidade do ar e da terra na região. Em Chernobyl, entretanto, não fizeram nada além de levar todos os dosímetros para medição da radiação e guardas como prisioneiros de guerra.
Enquanto estava frente a frente com o sarcófago, cometi um rápido deslize ao encostar o meu tripé no chão para bater uma foto. Foi suficiente para que, ao fim da visita, quatro funcionários viessem atrás de mim para descobrir o nível de radioatividade nele. Por muito pouco, o tripé quase ficou para sempre em Chernobyl.
Assim como a Ucrânia na guerra, a manutenção da usina é altamente dependente de ajuda externa. Quase todos os equipamentos e geradores mais novos levam a bandeira da União Europeia, além de muito auxílio dos japoneses no aprimoramento das pesquisas locais.
Não sei se a vida ainda vai me dar a oportunidade de voltar aqui, provavelmente não com o mesmo acesso que tive hoje, mas certamente ver a história daquele 26 de abril tão de perto, ficará marcado no livro de memórias.
*Esse projeto tem patrocínio da Máxima Segurança