O Liberal em Kiev: uma família marcada pela história
A pouca idade pode ser sinônimo de inexperiência, mas esse conceito não encontra terreno na Ucrânia. Não há um jovem no país que, após anos de guerra e ameaças, não tenha amadurecido com o fardo que a vida jogou para cada um enfrentar.
Depois de algumas entrevistas em organizações civis em Kiev, a tradutora Diana Maslianchuk, de 25 anos, me convidou para jantar em um restaurante mediterrâneo na área comercial da capital. Em uma conversa informal e despretensiosa, Maslianchuk começou a me contar da sua vida desde a invasão russa em 2022, e quase não deu para acreditar como é possível acontecer tanto em um intervalo muito curto de tempo.
Assim como o resto do mundo, os ucranianos também não acreditavam que a ameaça russa se transformaria em uma invasão por todos os lados. Naquela madrugada de 24 de fevereiro, Diana acordou com um barulho de explosão e, assustada, avisou os pais, que não acreditaram porque bombardear Kiev era tão irreal que era preferível imaginar que a filha tinha acordado de algum pesadelo.
“Eu sei o barulho de uma batida de carro, de um poste explodindo ou até mesmo de um tiro. Aquele barulho não era nada disso, era uma bomba. A internet estava cheia de relatos de sons estranhos por todo o país, só não queríamos acreditar naquelas primeiras horas”, disse Diana.
Não demorou para o irreal se transformar em dura realidade. Sons de explosões começaram a soar e, logo depois, Zelensky fez um pronunciamento à nação para anunciar que o país estava em guerra. Diana relata que aquela madrugada continua viva na memória como se tivesse acontecido na noite passada porque, assim como na sua casa, a vida de todo o país mudou naquela noite.
A intensidade da guerra nas primeiras semanas assustou a família. Ela e sua irmã de 13 anos atravessaram a fronteira para viver na capital polonesa por mais de 1 ano, enquanto seus pais ficaram na Ucrânia porque a mãe é médica e ficou para ajudar em um serviço essencial, já seu pai não teve escolha, todos os homens foram proibidos de deixar o país sob a nova Lei Marcial decretada.
Entre o medo e a frustração de estar longe de casa por necessidade, Maslianchuk contou do baque ao deixar o país. “Nunca quis ser refugiada, nunca pedi por isso, e de repente me vi como uma”, disse. Dos tempos na Polônia, uma de suas memórias mais vivas era de comprar bilhetes de trem todo mês para Kiev e, no fim, precisar vendê-los porque a situação nunca melhorava. Esse processo se repetiu várias vezes no tempo em que esteve fora, até que, finalmente, voltaram para casa.
Diana fala um inglês quase perfeito e, aos 23 anos, já fala seis línguas e é responsável por liderar comitivas de oficiais vindos da Alemanha até o país. Entre histórias de vida e curiosidades sobre o país, descobri que o polonês é a língua mais similar ao ucraniano e não o russo. Dos tempos vivendo em Varsóvia, aprender a falar fluentemente o polonês é uma das boas recordações que ela carrega.
Quando imaginei que as histórias haviam acabado, ela começou a contar sobre o seu avô, Ivan Maslianchuk, um apaixonado por carros que viveu a vida trabalhando como motorista. Formado na Sarny DOSAAF (Sociedade Voluntária para a Cooperação com o Exército, Aviação e Marinha) em 1972, seus primeiros passos na profissão foram no kolkhoz Caminho para o Comunismo, onde transportava leite para o centro distrital de Sarny em um caminhão-tanque conhecido como “a bruxa”.
No outono daquele ano, ela contou que o avô Ivan foi chamado para cumprir o serviço militar obrigatório. O trem o levou para um país até então desconhecido: a República Democrática Alemã (RDA). Como soldado, serviu em um batalhão químico, onde recebeu um caminhão ZIL-130. Ele era responsável pela descontaminação de equipamentos militares, sendo conhecido entre os colegas por ser rigorosamente organizado.
Em 1986,a sua experiência o levou para ajudar no desastre de Chernobyl. Ele foi designado para transportar doentes, mulheres grávidas e crianças de Pripyat para locais seguros.
Durante os dez dias de operação, enfrentou condições extremas e retornou para casa com sinais claros de exposição à radiação, incluindo a perda precoce de cabelo.
Quando pensamos na Ucrânia, imediatamente pensamos na guerra com a Rússia, mas este é um país de cicatrizes muito mais profundas. Todas as gerações da família Maslianchuk foram afetadas por fatos históricos que o país e a população nunca tiveram a chance de escolher.
Aos 25 anos, Diana faz parte de uma geração que, assim como seus pais e avós, também foi ferida pela história. Agora quer ajudar o país a se reerguer e almeja, um dia, estar nos corredores do ministério da Defesa. Aos ucranianos nunca lhes foi dado o direito de decidir o seu destino, mas sempre estiveram lá para defender o que é deles.
*Esse projeto tem patrocínio da Máxima Segurança